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Publicado a: 10/12/2015

The Weeknd: Ainda é só o começo

Publicado a: 10/12/2015

[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Direitos Reservados

 

Há algo de profundamente perturbador na obra de Abel Tesfaye, que o mundo agora conhece como The Weeknd, e que se pode adivinhar no contraste entre o universo lírico construído sobretudo nos seus três primeiros registos – as mixtapes House of Balloons, Thursday e Echoes of Silence, lançadas num espaço de 9 meses durante o ano de 2011 e depois reunidas em Trilogy, o triplo CD lançado pela Universal Republic no final de 2012 – e os títulos das canções. Se, por um lado, as letras desenhavam um pouco iluminado mundo de excessos nocturnos com sexo e drogas embalado em autocomiseração, por outro, os títulos das canções pareciam aí revelar um paradoxal sonho pop – “Wicked Games”, “Heaven or Las Vegas”, “Rolling Stone” ou “Valerie” são referências directas e auto-explanatórias (Chris Isaak, Cocteau Twins, Stones, Mark Ronson/Amy Winehouse…), mas mesmo títulos como “D.D.” (iniciais para “Dirty Diana”) ou “The Party & The After Party” remetem para as obras de Michael Jackson e R. Kelly, dois nomes que, juntamente com o de Prince, fazem parte de um confessado tríptico que lhe serve de altar: “Os três são uma forte inspiração e isso pode ouvir-se no novo álbum”, confessou Tesfaye em Agosto último à Pitchfork. Ou seja, é como se Tesfaye usasse a história da pop como ponto de partida para as suas derivas poéticas, mas estivesse condenado a cantar sobre a única vida que até então conhecia.

 


 


O mundo de Abel Tesfaye entretanto alterou-se e passou de artista praticamente anónimo mas ainda assim elevado aos píncaros das efémeras montanhas da internet a estrela de pleno direito no muito real mundo das vendas e dos números. Beauty Behind the Madness, o seu trabalho mais recente, tem quebrado recordes e conseguiu a proeza de transformar The Weeknd num inegável furacão pop, muito graças à força de temas como “The Hills” e, sobretudo, “Can’t Feel My Face”. O planeta pop pulverizado com a explosão da internet parece, finalmente, estar a assistir uma vez mais à concentração das suas partículas num corpo coeso capaz de gerar fenómenos, necessariamente diferentes dos de outros tempos, mas não tão diferentes que falem uma linguagem radicalmente nova. Como “Can’t Feel My Face” deixa claro, ainda é acerca de colar palavras, melodias e ritmos que saibam encontrar um caminho directo para os ouvidos das pessoas. E isso, sem dúvida, The Weeknd parece ter aprendido, encaixando as lições de mestres pop como Max Martin ou Kanye West e assumindo que quer voar muito mais longe do que o que a música do seu arranque de carreira permitiria prever. Ainda na já citada entrevista à Pitchfork, Tesfaye explica que Prince conseguiu a proeza de transformar música experimental em música pop, que Michael Jackson construiu um corpo coeso com a sua obra em que cada canção contava uma história e que R. Kelly é um filho de Michael e Prince: “E eu quero ser algo de equivalente para a minha geração. Quero dizer, espero conseguir sê-lo”.

 


 


Abel Tesfaye é um produto do milénio: nasceu em Scarborough, Ontario, em 1990, filho de pais etíopes emigrados para o Canadá na década anterior. Criado pela avó e mãe, Tesfaye cresceu a ouvir a língua amárica natural da Etiópia, bem como música popular etíope – cantoras como Aster Aweke ou músicos como Mulatu Astatke – e o que quer que estivesse na rádio. Naturalmente, Kanye West foi uma influência decisiva: quando o rapper americano se estreou em 2004 com The College Dropout, Abel Tesfaye tinha acabdo de celebrar o seu décimo quarto aniversário. Talvez isso lhe tenha servido de inspiração, porque Tesfaye abandonou a escola aos 17 e , juntamente com um amigo, mudou-se para a zona boémia de Parkdale, mesmo antes da gentrificação a transformar num íman para liberais endinheirados de Toronto. Pouco depois, Kanye lançou 808s & Heartbreak, corria o ano de 2008: “é um álbum que recebeu críticas mistas, mas é uma das obras mais importantes da minha geração”, explicou, recentemente, The Weeknd, numa entrevista em que se referiu a ter trabalhado com Kanye West no seu próprio Beauty Behind The Madness: “Há muito detalhe nas sessões de estúdio com ele e ele definitivamente ajudou-me a ser, subconscientemente, a pessoa que tenho sido nos últimos anos. Poder de facto estar com ele, falar com ele e trabalhar com ele é como aprender a viver”, confessou o cantor canadiano na entrevista da Pitchfork, antes de rematar: “O Kanye precisava de estar neste álbum porque eu sinto que estou a atravessar o que ele já atravessou – ser capaz de se reinventar e de forçar os limites”.

 


 


Há uma outra comparação que se pode fazer: entre Abel Tesfaye e Jean-Michel Basquiat e o penteado de ambos é apenas o ponto mais fácil e superficial que se pode evocar para sustentar essa comparação. De facto, o invulgar penteado de The Weeknd tem sido alvo de inúmeros memes e de múltiplos comentários, mas a forma mais directa de ler essa opção de estética pessoal por parte do cantor canadiano passa por compreender que há nele um elemento de rebeldia e de inconformismo que não se encaixa com as normas a que se curvam até as maiores estrelas pop. E como Basquiat, também Tesfaye carrega uma pesada herança cultural étnica. O malogrado pintor tinha ascendência haitiana e também percorreu o caminho entre o anonimato de uma assinatura artística colectiva – SAMO, no seu caso – numa época de pobreza extrema na grande cidade até um mais celebrado momento de exposição, depois do apadrinhamento de figuras centrais no universo das artes plásticas como Andy Warhol, quando as portas dos mais importantes museus e galerias se abriram à sua particular visão artística que parecia viver do impulso de colar extremos – o primitivo e o futurista, o violento e o infantil, o interior e o exterior. Os paralelismos com o percurso de Abel Tesfaye são por demais evidentes: ele mesmo um jovem anónimo a viver nas franjas da grande cidade, envolvido em excessos: “Na maior parte das noites, eles drogavam-se com o que quer que estivesse à mão – ecstasy, xanax, cocaína, cogumelos, cetamina. ‘Miúdos, sem a SIDA’, disse Tesfaye. ‘Sem regras’”, escreveu Jon Caramanica recentemente no New York Times num artigo em que procurava responder à pergunta exposta no título – “Poderá The Weeknd transformar-se na maior estrela pop do planeta?” Foi nessa época que Tesfaye carregou as primeiras três canções da sua carreira para o YouTube, creditadas apenas a The Weeknd, corriam os últimos estertores de 2010. Durante um bom pedaço, até mesmo gente no circulo de relações mais próximas de Tesfaye desconhecia ser ele a voz que se escondia por trás da designação The Weeknd. As primeiras críticas da Pitchfork começaram a surgir pouco tempo depois – House of Balloons foi alvo de recensão em Março de 2011 – e ainda se entendia a designação como a marca de um colectivo onde além de Tesfaye se encontravam ainda os talentos dos produtores Doc McKinney e Illangelo: “Não se pode comprar um “buzz” assim”, escrevia Joe Colly, “e a rápida subida de The Weeknd à fama da internet, tanto em círculos indie como em certas partes do mainstream, levantou questões fascinantes sobre as cada vez menos nítidas linhas que dividem essas duas audiências e a recente paixão do underground pelo R&B”. As “certas partes do mainstream” a que o escriba da Pitchfork se referia tinham a ver, claro, com o apadrinhamento imediato de Drake, outra mega-estrela com passaporte canadiano que foi dos primeiros a perceber o talento de The Weeknd, ajudando a propagar o sinal ao apontar num dos seus tweets o link de download para a primeira mixtape.

 


 


Seguiram-se muito rapidamente outras duas mixtapes – Thursday e Echoes of Silence – que tornaram evidente uma fórmula: uma abordagem pouco convencional ao R&B, com letras de uma franqueza extrema e pouco lisonjeadora da personalidade de Tesfaye, apoiadas em instrumentais que olhavam para fora das convenções R&B para construir uma nova paleta sónica – samples de Siouxsie & The Banshees ou Beach House, tempos decididamente afastados da pista de dança, mais complacentes com a solidão dos minúsculos auscultadores brancos com que uma nova geração parecia mediar a sua relação com a música. A Universal pegou nas mixtapes, embalou-as como Trilogy em 2012 e usou a atenção da new media como trampolim para a carreira de Tesfaye. Mas Kiss Land, o primeiro álbum a sério de The Weeknd para uma major, não cumpriu as expectativas falhando em transformar a sua visão estética numa força comercial óbvia. O ponto de viragem surgiu em finais de 2014, quando “Earned It” fez o click: uma canção que mantém as marcas do som de Tesfaye – arrastado, denso, sufocante – as mesmas palavras encharcadas em sexo – “you’re my favourite kind of night” – mas que beneficia do contexto de um filme que é uma espécie de Nove Semanas e Meia para a geração do novo milénio. O tema está obviamente incluído em Beauty Behind the Madness juntamente com “The Hills” ou, claro, “Can’t Feel My Face”, a bomba pop carimbada pelo verdadeiro Midas Max Martin. Essa canção revelou ser a chave mestra que abriu todas as portas que até aí se encontravam cerradas para Tesfaye: valeu-lhe um dueto com Taylor Swift, valeu-lhe a benção de Quincy Jones, que conheceu durante um concerto em Las Vegas, valeu-lhe impagável tempo de antena no programa de Jimmy Fallon que validou o poder pop do tema quando o transformou em ponto de partida para recorrentes piadas (“Can’t Feel My Face” interpretada por Fallon enquanto Sting ou pelos Roots como “Black Simon & Garfunkel”, para dar só dois exemplos). Poderá, como queria saber o NY Times, The Weeknd transformar-se, como Basquiat um dia se transformou, num fenómeno pop? A verdade é que a transformação já aconteceu e The Weeknd já não é a misteriosa crisálida dos primeiros tempos das mixtapes. “Can’t Feel My Face” é apenas o começo…

 

*Texto originalmente publicado na edição 113 da revista Blitz.

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