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Fotografia: Vera Marmelo / Gulbenkian Música
Publicado a: 08/08/2024

Um bioma denso de máxima interioridade sonora.

The Selva no Jazz em Agosto’24: como povoar o espaço criado

Fotografia: Vera Marmelo / Gulbenkian Música
Publicado a: 08/08/2024

Sejam do tipo camarões-girafas, num matagal exuberante dentro ou fora de água, entrar em The Selva é imergir num espaço sónico para observar criaturas. A surpresa é um factor predominante, amedronta uns quantos e a muitos outros atrai pelo fascínio do desconhecido. Assim se desenham os primeiros instantes do concerto no Anfiteatro ao Ar Livre nos jardins da Gulbenkian, na marca do dia charneira da extensa programação do Jazz em Agosto.

The Selva são um trio de músicos portugueses que cultivam o desconhecido. É uma formação composta por Ricardo Jacinto no violoncelo preparado e electrónica, Gonçalo Almeida no contrabaixo e apetrechos e Nuno Morão em bateria e acessórios tímbricos. Jacinto comenta a feliz coincidência da data em palco: “Faz hoje 8 anos que fizemos o primeiro concerto, e aqui estamos a tocar”. Como The Selva, têm editados quatro (3+1) preciosos álbuns sob o selo imprescindível Clean Feed — primeiro com The Selva em 2017, Canícula Rosa em 2019, em 2021 inscrevem Barbatrama no criativo e subsidiário selo Shhpuma (onde se aliam a Rutger Zuydervelt para o trabalho autoral de pós-produção e electrónicas), e em 2023 surgem com Camarão-Girafa

O trio desenvolve um espaço múltiplo, na dimensão e nos idiomas, que decorre da exploração construtiva das cordas em corpos ressoantes que vão muito além das estruturas de madeira de tampos, costas e ilhargas do violoncelo e contrabaixo de Jacinto e Almeida. Aliás, o violoncelo apresenta-se preparado com um vão metálico que estende o potencial de trabalho nos domínios das interações sonoras electroacústicas, é essa a linguagem autoral de Ricardo Jacinto desde que se faz ouvir. O corpo de bateria que Morão monta em seu redor permite contar mais elementos metálicos para o timbre que peles de percussão. Os sons erráticos de propagação ínfima que vão e vêm dos confins do metal marcam e definem melhor o espaço no tempo de abertura. Joga-se nos intervalos das cordas, beliscam-se os elementos que ressoam e desenham-se ciclos de repetições edificantes, o que leva à construção de texturas e padrões que se assemelham à imagem dos fractais — um todo feito partindo de características elementares semelhantes. As estratégias empregues por mecanismos que propagam o som e o desenho do tempo entre o contrabaixo e bateria tornam o espaço criado num processo dinâmico e evolutivo. O que aparenta vir de uma música de câmara reconfigurada é antes o propósito para definir um bioma sonoro no sentido do espaço electroacústico e cuja precisa definição é um desafio permanente que acompanha a fruição da escuta e a intromissão. O inclassificável Camarão-Girafa é o arquétipo de animal que é proposto em desafio e que motiva a experiência sonora que se torna a vivência da música em The Selva. 

A particularidade do espaço na envolvente em palco permite uma extensão suplementar de diálogos que estes três superlativos músicos envidam em aproveitar. Momentos há em que as ramagens das frondosas árvores do jardim da Gulbenkian motivam o espectro da música para um orgânico-electro-acústico ressoar, ou ainda como o lastro sonoro rompante da passagem dos aviões é a combinatória acústica do espaço fronteira palco-ar. Verdadeiramente notáveis nos recursos e no uso do léxico, em que a música está à frente e é servida pelos instrumentos. Há desenvolvimentos em que os arcos são preteridos e o fraseado circular no violoncelo ouve-se ancestral, arabesco soando a alaúde, com a profundidade do violoncelo a impor uma linha de tempo anacrónica. Para noutro relevante uso dos mesmos instrumentos passarmos para uma tríade de percussionistas. O violoncelo é utilizado na horizontal, passando para o campo estético que o aproxima dos kotos japoneses e às sonoridade dos saltérios. O contrabaixo é preparado com elementos que lhe são estranhos, que urdem as cordas para, entre o tampo e a nova entretela que ressoa, também Almeida se juntar ao ritual do ritmo convocado por Morão, alimentado por Jacinto e “dançado” por todos. 

No que se ouviu, fruiu e vislumbrou do espaço criado, como se de um movimento só se tratasse, foi realmente composto por várias peças que incidiram sobre o último álbum, com retoma de um tema inscrito em Canícula Rosa e um promissor inédito. Assim foi-nos revelado um certo futuro ancestral, num diacronismo sonoro povoado de desafios e imaginados animais que rugiram forte no final desde a corda grave do violoncelo até às cravelhas, sem nunca esquecer quem habita o sitio onde se esticam as cordas do contrabaixo de Almeida na vez da voluta. The Selva ouviu-se num abrir e fechar de olhos, num ápice, como uma fragrância volátil que se derrama e, por instantes, é palpável até se evaporar para o lado mais fresco da memória.


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