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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 27/04/2022

Escuta humanitária.

The Secret Museum of Mankind na Culturgest: um passado que nos visita para recordarmos que somos humanos

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 27/04/2022

Do imaginário colectivo escapam-se rapidamente umas quantas representações de famílias em torno do rádio ou em volta de um gira-discos. Uma nova centralidade caseira que se cria, ligada ao lazer e plenamente democrática, uma vez que facilmente se juntavam os vizinhos dos vizinhos de diferentes gerações em torno dos discos favoritos. Além disso, ainda não se tinha inventado o ceptro do poder doméstico – o comando da televisão. Tardes e noites de verdadeiro deleite sonoro e que levemente passam de geração em geração.

Recentemente as sessões de escuta colectiva têm-se tornada mais ou menos frequentes – a propósito do lançamento de uma nova edição ou para dar a conhecer em maior profundidade a vastidão de uma determinada obra, exemplo de Félicie d’Estienne d’Orves/Éliane Radigue – Continuum (TBA) e Kyema, também de Radigue, por Caroline Profanter (OUT.FEST 2021). Na passada quarta-feira, 20 de Abril, no Grande Auditório da Culturgest, deu-se o cruzamento destes dois universos – uma sessão de “escuta caseira” e tomar conhecimento de uma obra maior de nome “The Secret Museum of Mankind“. Um grande auditório que assumiu a sua vocação universal e universalista e que, ao mesmo tempo, se encolheu como em raras ocasiões tornando-se lugar confortável e acolhedor. Tendo como consequência natural – o espaço para a atenção máxima. Para tais condições contribuíram, sem dúvida nenhuma, a vastíssima e variadíssima colecção de discos de João Nicolau, a enorme capacidade que tem em explicar de forma clara cada um dos discos apresentados, chamando aqui e ali a atenção para fenómenos de época – a menção a Leopoldville, em vez da actual Kinshasa, a referência a um cântico ainda hoje utilizado pelos adeptos do Chelsea Football Club, apontamentos biográficos de cada um dos músicos e as vicissitudes da vida pelo qual cada um passou ou ainda o caminho que João Nicolau teve de percorrer para encontrar determinada edição são disso claros exemplos, a mudança constante entre a escuta dos discos e a música ao vivo, contando com exímios músicos como o próprio (voz, ukulele, cuatro, percussão), Mariana Ricardo (voz, cuatro, cavaco, guitarra, percussão), João Lobo (bateria, percussão, voz), Luís José Martins (guitarras, machete, percussão, voz), Crista Alfaiate (voz, percussão) e as imagens projectadas pela Rita Sá, que não só conferiam mais um nível de leitura ao apresentado, como sobretudo permitiam construir uma relação diferente com o som, trabalhando para tal não só o aspecto arquivístico das mesmas, como jogando com os efeitos de repetição, acentuando assim o carácter rítmico de um ou outro tema.

Assiste-se a uma cumplicidade entre os bravos e aventurosos ouvintes, os bravos e aventurosos músicos ali presentes e os músicos e não músicos de distintos tempos e longínquas paragens. É na capacidade de dar vida a um arquivo, tornando-o vivo pela partilha, tornando-o vivo porque está cheio de referências contemporâneas e dando a conhecer as multiplicidades de usos que pode servir um disco (78rpm, neste caso, os chamados discos de grafonola, feitos em goma-laca), como por exemplo uso publicitário ou de carta entre familiares, que se estabelece uma relação tão próxima com territórios tão distantes. Há um tempo marcado, de uma época longínqua, mas longe de ser passado. É um passado que nos visita para lembrar que o caminho muitas vezes não é por aí. A música a ser vida. Um auditório a ser sala comum. A condição humana a aproximar-se do que se exige.

Agradecemos a gentileza profunda que João Nicolau teve em nos disponibilizar os temas passados/tocados:

1. “Carta de Arthur Sullivan a Thomas Edison” (vídeo)

Registo gravado em cilindro de parafina da mensagem que o compositor inglês Arthur Sullivan enviou a Thomas Edison, em 1888, felicitando-o pela invenção do fonógrafo, o primeiro dispositivo que permitiu a gravação de som.

2. “Feira de Santana”, Tom Zé (Brasil) (música ao vivo)

Primeiramente editada em 1978 com o título “Correio da Estação do Brás” foi revista e regravada pelo autor em 1992 com o título “Feira de Santana”.

3. “Mwana talitambula”, tradicional (Uganda) (música ao vivo)

Canção de embalar da comunidade judia Abayudaya. 

4. “Take A Message To Mary”, Everly Brothers, (E.U.A) (música ao vivo)

Editada em 1959. 

5. “Clementine”, Leon Bukasa & Albino Kalombo (República Demócrática do Congo) (disco + vídeo)

Música gravada entre 1949 e 1954. Editada pela N’Goma, uma das principais editoras responsáveis pelo “boom” da rumba congolesa.

6. “Udan Mas”, anónimo, (Indonésia) (disco + vídeo)

Música gravada no final da década de 20. Parte do álbum “Music of the Orient” lançada em 1934 pelas editoras Odeon e Parlophone. (os “álbuns” do tempo das 78rpm são, na verdade, uma série de discos – cada disco só tinha duas músicas, como os singles vinil. Provavelmente a primeira compilação editada comercialmente daquilo a que hoje chamamos “world music”.

7. “I Wish I Was Back In Liverpool”, Leon Rosselsson & Stan Kelly (Escócia/Inglaterra) (música ao vivo)

Composta em 1960. Foi celebrizada pelo grupo irlandês “The Dubliners”.

8. “Guabi Guabi”, George Sibanda (Zimbabué) (música ao vivo)

Música gravada em 1952. Foi um grande êxito no Sul e Leste de África. Pouco se sabe sobre George Sibanda. A música foi gravada por Hugh Tracey, etnomusicólogo autodidacta que entre 1931 e 1977 fez cerca de 35 mil gravações de toda a África sub-sariana.

9. “Malaika”, Adam Salim (Tanzânia) ou Fadhili Williams (Quénia)(música ao vivo)

A música foi gravada em 1960 por Fadhili Williams. Mas a sua autoria é/foi disputada pelo compositor Adam Salim que reclama tê-la composto 15 anos antes. É possivelmente a canção de amor mais popular no Leste de África.

10. “Rolete de Cana”, Dilú Mello (Brasil) (vídeo + disco)

Música gravada em 1955. Esta canção é uma apropriação de sons extra musicais, neste caso dos pregões dos vendedores ambulantes de doces nos comboios. 

11. “Tom Hark, Elias and his Zig-Zag Jive Flutes”(África do Sul) (vídeo + disco)

Música gravada em 1956. Estilo: kwela, música urabna de dança nascida nos subúrbios de Joanesburgo. Em 1958, a música foi usada no genérico de uma série na televisão britânica e o disco permaneceu 14 semanas nos tops de vendas.

12. “Kikori”, tradicional (Papua Nova-Guiné) (música ao vivo)

Excerto de um ritual de iniciação da tribo Iatmul.

13. “O la pago yo o la paga ella”, Marino Pérez (República Domincana) (música ao vivo) 

Gravada no início dos anos 70. É uma “bachata”, ritmo hibrido do Bolero com influencias do Cha-cha-cha e do Tango surgido no final dos anos 50 nos cabarets e bordeis de São Domingos.

14. “A Perfect Day”, Jan Tromp (Holanda) (vídeo + disco)

Início dos anos 50. Música em que a voz principal é a do assobio do artista.

15. “My Good Old Man”, tradicional (E.U.A.) (música ao vivo) 

Balada tradicional dos Montes Apalaches (Carolina do Norte). História de fantasmas. 

16. “Carta a Adélia” (vídeo + disco)

(Disco-carta gravado por um emigrante português no estado de Massachussets (E.U.A.) e cujo destinatário seria a sua família localizada no Minho. Finais da década de 1940)

17. “Anúncio Alfaiataria Estoril” (vídeo + disco)

(Anúncio radiofónico emitido pelo Radio Clube Português, década de 50)

18. “Engine 54”, The Ethiopians (Jamaica) (música ao vivo)

Música gravada em 1967. É já um exemplar da transição entre o ska e o rocksteady. 

19. “Acende a Luz”, Jararaca & Ratinho (Brasil) (música ao vivo)

Música gravada em 1931. Uma das gravações da primeira fase desta dupla de cantores e humoristas nordestinos.


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