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The KLF

Come Down Dawn

KLF Communications / 2021

Texto de Rui Miguel Abreu

Publicado a: 09/02/2021

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Os KLF de Jimmy Cauty e Bill Drummond são seguramente um dos mais fascinantes casos de estudo da música pop das últimas três décadas: numa clara atitude de desafio, o duo misturou arte performativa da mais disruptiva natureza, uma atitude absolutamente libertária perante o sampling, uma decidamente intelectual abordagem ao acto criativo e um desprezo total pelas convenções que regiam o mundo da mais refinada “arte”.

Sem formação musical convencional, o duo entendeu o estúdio como um laboratório, convocando para as suas próprias experiências, e sem qualquer tipo de hierarquização, as ideias revolucionárias de cut up de John Cage (a “Williams Mix” seria, seguramente, uma referência) e Pierre Schaeffer (impossível não identificar nos samples de comboios de Chill Out uma ligação directa a “Étude aux Chemin de fer” do criador da música concreta) , a funcionalidade prática das manipulações de fita analógica do Radiophonic Workshop (enquanto Timelords, em 1988, ano da explosão da cultura rave, levaram a sua própria versão do tema que o mítico colectivo ao serviço da BBC assinou para a série Dr. Who até aos tops sob a forma de “Doctorin’ The Tardis”), a colagem via gira-discos de Grandmaster Flash, a gestão do espaço aprendida a escutar álbuns de dub de Lee Perry e King Tubby e as avançadas ideias de sampling pioneiramente ensaiadas pelos conterrâneos Art of Noise ou Brian Eno (neste caso na obra-prima My Life in the Bush of Ghosts em que repartiu créditos com o músico americano David Byrne, líder dos Talking Heads).

E, em 1990, nas vésperas do arranque da última década do século XX, Cauty e Drummond lançaram (após vários casos notórios de tribunal impostos por advogados e bandas, como os Beatles ou os Abba, pouco convencidos da validade criativa dos seus gestos de apropriação que os forçaram a queimar discos em paisagens campestres e a atirar sobras de prensagens dos seus álbuns ao mar) o álbum Chill Out, registo inaugural de um novo género a que resolveram chamar ambient house.

Supostamente, a proposta estética aí avançada pelos entretanto renomeados KLF (“Kopyright Liberation Front”, garantiam algumas fontes…) procurava não tanto actualizar as pistas etéreas da new age, as experiências ambientais de Brian Eno ou as derivas kosmische dos Tangerine Dream ou Harmonia, antes fornecer à experiência da rave de exaltação do corpo por via da combinação de ritmo e drogas um reverso mais espiritual de acalmia e revigoração. Claro que tratando-se dos KLF tudo ali era manifesto: do press release oficial que parecia gozar com as convenções da comunicação corporativa de música (“Ambient house makes love with the wind and talks to the stars”) à capa do álbum, directamente inspirada pela de Atom Heart Mother dos Pink Floyd.

Mas se tudo o que rodeava os gestos públicos dos KLF tinha um impulso de desafio e de provocação, a verdade é que a música era ali resultado de sério trabalho criativo. Com o alinhamento contínuo concebido como uma viagem, tal como indicavam os títulos originais (“Six Hours to Louisiana, Black Coffee Going Cold”, “Dream Time in Lake Jackson”), o álbum cruzava sons de insectos, gravações de rádio, ruídos de comboios (vários desses sons vinham do álbum de efeitos criado por Jac Holzman, patrão da Elektra, Authenthic Sound Effects Volume 2), com o som da deep throat singing de Tuva e samples avulsos de tudo e mais alguma coisa, de Elvis Presley aos Fleetwood Mac, de Acker Bilk aos Jesus Loves You de Boy George e daí aos Van Halen ou 808 State. Guitarras slide (da responsabilidade de Graham Lee), reverberações criadas em estúdio devedoras dos ensinamentos do dub, sintetizadores atmosféricos e até uma piscadela de olho ao futuro conseguida com a inclusão recorrente de um pequeno excerto de “Last Train To Trancentral” entrelaçavam-se num caleidoscópio que procurava traduzir uma ideia pastoral da América das vastas paisagens. Era a ideia de “viagem” que animava este álbum, algo que saía reforçado pelo uso de vozes que pareciam entrar e sair de campo vindas de espectrais emissões de rádio, como se o receptor cujo botão Cauty e Drummond foram aleatoriamente rodando em estúdio captasse não apenas estações de diferentes origens geográficas, mas também de diferentes épocas. Os KLF estavam, na verdade, a sintonizar a passagem do tempo.

O álbum foi pensado em estúdio como uma espécie de DJ set, com uma base electrónica conjurada pelo duo numa jam sintetizada, passando depois o material recolhido para dois DATs, um par de leitores de cassetes, gira-discos e mesa de mistura, orquestrando um flow contínuo ao vivo para o master que resultaria no álbum.

Parte do natural fascínio exercido por Chill Out reside no facto de se saber hoje, especialmente tendo em conta a normalização do streaming, que a sua criação já não seria possível, numa era em que ferramentas como o Shazam expõem de forma quase instantânea o material usado. Não que, na verdade, os KLF alguma vez tenham feito o mais singelo esforço para esconder a origem do material alheio a que foram recorrendo nas suas criações. Foi precisamente por terem criado o que na prática resultava numa impossibilidade legal à luz das leis do copyright — que no essencial se mantêm nos dias de hoje — que o duo decidiu em 1992 retirar do mercado toda a sua música, descatalogando-a e remetendo-a irremediavelmente para os domínios da arqueologia física em lojas de segunda mão ou no Discogs. Essa relação de Jimmy Cauty e de Bill Drummond com as “regras” do mercado nunca foi pacífica e o muito discutido gesto tão dramaticamente simbólico que o grupo protagonizou ao queimar 1 milhão de libras representa bem a sua combativa atitude face à indústria em que decidiram deixar uma marca.

Foi, portanto, uma excitante surpresa o aparecimento de música dos KLF nas plataformas de streaming no início deste ano, facto anunciado, em típica estratégia “klfiana”, com graffiti e posters de papel colados clandestinamente debaixo de uma estação de comboios em Kingsland Road, no este de Londres. Primeiro foi Solid State Logik, compilação de singles retrabalhados que foi lançada a 1 de Janeiro, a primeira vez em quase 20 anos que o grupo voltou a disponibilizar música de sua autoria. E agora, no passado dia 4 de Fevereiro, eis que os serviços de streaming receberam Come Down Dawn, uma “re-imaginação” de Chill Out que recebe o sub-título Brooklyn To Mexico City 1990, com as faixas devidamente renomeadas e samples mais “problemáticos” de artistas como Elvis Presley, Fleetwood Mac, Boy George e Acker Bilk removidos dos arranjos.

Mais de 30 anos após a sua edição original, e sobretudo tendo em conta caminhos percorridos pela música electrónica mais desalinhada nesta última década, esta revisão de Chill Out mantém inalterada a sua vibrante visão do mundo, mesmo tendo sido subtraída de alguns dos seus elementos originais. Aqui encontra-se música que evoca movimento e viagens a lugares onde nunca se esteve (originalmente, Jim e Bill orquestraram uma banda sonora para uma ideia, muito mais do que para uma experiência real) e que por isso mesmo parece mais apropriada do que nunca tendo em conta a situação pandémica em que o mundo está actualmente imerso: no final do tema “Atlanta to Mobile”, logo após um enfático “Amen” dito por um qualquer pregador, a frase “the test came back negative” dita pela anónima autora de uma chamada para uma estação de rádio ganha uma estranha relevância e sintoniza-se de forma aguda com este presente. E aos naturais tremores derivados da incerteza que tudo o que agora vivemos representa, os KLF contrapõem uma música de planante elevação, de recentramento espiritual e de bem-vinda fantasia de contornos utópicos.

Deixem-se ir.


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