Em Janeiro de 1961, Max Roach lançou We Insist! Freedom Now Suite, um dos mais ousados marcos da história do jazz moderno — uma suite militante em que o ritmo, a palavra e a voz se fundiam para refletir a luta pelos direitos civis e o trauma histórico da escravatura. Mais de seis décadas depois, esse grito continua a ecoar, reimaginado em We Insist! 2025. O projeto é liderado por Terri Lyne Carrington, baterista de exceção que desde cedo se afirmou como uma das mais versáteis vozes da sua geração, distinguida com Grammys, professora em Berklee e autora de álbuns que questionam constantemente o papel do jazz no presente. Carrington não é apenas intérprete: hoje também assume funções de A&R na reactivada Candid Records, com uma missão clara de abrir espaço para uma nova geração de criadores, aproximando o jazz de outras linguagens e garantindo-lhe relevância futura.
Ao seu lado está Christie Dashiell, cantora que cruza jazz, R&B e gospel, e cuja voz transporta a herança de Abbey Lincoln para o século XXI. Juntas, procuram honrar Max Roach e Abbey Lincoln, mas também repensar o lugar da música como ferramenta de resistência e esperança. Na conversa que se segue, falam sobre o impacto que We Insist! teve nas suas vidas, sobre o modo como a alegria pode ser uma forma de insubmissão e sobre os perigos políticos do presente — inclusive na Europa. Revelam ainda os bastidores do projeto, a escolha dos músicos envolvidos e a convicção de que o jazz precisa de novas categorias e novos públicos para continuar a crescer.
Começo com uma pergunta muito natural: lembram-se da primeira vez que ouviram We Insist!?
[Terri Lyne Carrington (TLC)] Eu não me lembro porque estava simplesmente na colecção do meu pai e eu ouvia os discos quando ele os ouvia, por isso realmente não me lembro da primeira vez.
Então esteve sempre lá?
[TLC] De certa forma, sim.
E quanto a si, Christie?
[Christie Dashiell (CD)] Bem, um dos meus professores apresentou-me Abbey Lincoln na universidade, e por isso penso que uma das canções que acabei por encontrar foi “Freedom Day” — por isso deve ter sido, não sei, há uns 15 anos.
Max Roach e Oscar Brown Jr. começaram a desenhar o álbum em 1959, olhando em frente para o centenário da Proclamação da Emancipação [que se celebraria em 1963]. Foram tempos muito duros e transformadores, quando artistas, como todos os outros, tinham de lutar por direitos básicos. Terri, teve contacto com Max Roach, tocou com ele. Alguma vez partilhou histórias sobre essa época?
[TLC] Não, ele realmente não partilhou histórias sobre essa época. Penso que a maioria dos músicos está a tentar ser actual e estar no presente e, sabe, ele não estava realmente a tentar voltar atrás assim tanto. E não era como se eu estivesse na banda dele e pudesse ouvir esse tipo de histórias, depois do concerto ou assim.
Sim, ouvimos sempre falar da sabedoria dos mais velhos, como os mais velhos partilham as suas experiências, era por isso que lhe estava a perguntar. Pode dizer-me como se conheceram as duas?
[TLC] Nós? A primeira vez que nos conhecemos foi num espectáculo em torno da música do Nat King Cole em que eu era directora musical. E isso foi, penso, há quase dois anos. Mas já tinha ouvido falar da Christie antes disso. Ouvi-a pela primeira vez num disco do Wynton Marsalis. Qual é o nome desse disco, Christie?
[CD] The Ever Fonky Lowdown.
[TLC] Sim, esse mesmo. E depois a Dianne Reeves falou-me dela também.
[CD] E eu senti como se já conhecesse a Terri… Só por acompanhar o seu trabalho, como alguém que estudava a música, senti-me como se conhecesse a Terri desde sempre. Então, quando nos conhecemos, não pareceu que fosse uma coisa completamente nova.
[TLC] Exactamente, eu senti a mesma coisa. Simplesmente, quando as pessoas estão verdadeiramente na música, há uma camaradagem e um entendimento, há uma ligação que está lá. E por isso pode-se conhecer alguém, e eu conheci muitos músicos, num concerto. E de repente éramos simplesmente amigas.
Christie, pode falar-me da sua relação com a música de Abbey Lincoln? Ela já era uma referência para si?
[CD] Bem, sim e não. Como disse, fui apresentada a Abbey Lincoln quando estava na universidade. Mas eu era sempre uma daquelas cantoras que adoravam a Sarah Vaughan e a Ella Fitzgerald, só porque realmente estava a tentar entrar na improvisação e no scat como cantora. E eu simplesmente adoro a maneira como elas cantam tão verticalmente. Mas, depois da universidade, e uma vez que comecei eu própria a ensinar, percebi que, se vou ensinar, realmente preciso de compreender a linhagem vocal. E então comecei realmente a mergulhar nisso e na música dela. Na verdade, toquei com o Michael Bowie, que costumava tocar baixo com ela. Ele é como um mentor para mim e fez-me aprender que a música é magia. E, a partir daí, comecei realmente a olhar para a sua música e a entrar nas suas letras, a maneira como conta as histórias, as texturas que usa. Por isso, não foi só mais tarde que ela se tornou uma influência. Mas foi através deste projecto que ela se tornou definitivamente uma influência bastante grande, não só em como me expresso, mas também em como estou a tentar incorporar a liberdade na maneira como canto.
A Terri elogiou a sua voz, o seu instrumento, e sublinhou o facto de ouvir jazz, mas também blues, gospel e R&B na sua interpretação. Ao ouvir a sua versão de “Driva’ Man”, pensei imediatamente na teatralidade da sua interpretação, da sua voz. Já algum produtor da Broadway lhe ligou?
[CD] Eu na verdade gostaria de fazer alguma representação. Fiz uma leitura de teste para um espectáculo uma vez, mas essa é a única pequena experiência com a Broadway que tenho. Mas, de certa forma, nós cantores temos de representar. Muitas vezes, há letras que estamos a cantar em que talvez não acreditemos ou que talvez não ressoem connosco. E por isso realmente temos de chamar essa parte da nossa arte onde estamos a exprimir emoções e a contar uma história. Então, na verdade, gostaria de representar — mas não tenho nenhuma experiência.
Outra pergunta para si: a Terri mencionou o que ouve na sua voz. O que é que ouve na bateria dela?
[CD] Uau, essa é uma grande pergunta. Hum, bem, eu oiço muita alma, muito poder. E também oiço as suas influências… Penso no meu irmão, que é um baterista realmente excelente, e noto como ele toca um certo padrão que me faz lembrar a Terri, especialmente agora que tocamos juntas em contextos ao vivo. Estou agora a começar a ouvir as cores que a Terri usa na sua forma de tocar e como a influência dessas cores está agora a permear, de certa forma, toda a geração actual de bateristas. Eu oiço muitas coisas na bateria dela, tem muito alcance. Talvez às vezes toque de forma realmente intensa, e depois outras vezes toque de maneira suave e delicada. Então oiço muitas coisas.
Terri, parece que os tempos presentes exigem um esforço semelhante dos artistas e da sociedade em geral, enquanto estamos a passar por mudanças políticas muito perigosas, mesmo aqui em Portugal. Essa noção teve algum papel na decisão de fazer We Insist 2025!?
[TLC] Bem, a ideia original era celebrar Max Roach e o seu centenário. E o facto de eu estar na Candid Records e também fazer A&R para eles, e eles terem o We Insist! original, senti que isto era uma boa combinação, uma boa forma de celebrar o Max. Na altura em que começámos o disco, pensei que a eleição iria acabar de forma diferente. Por isso, não sabia que estaríamos neste aperto.
Que iria continuar válido neste sentido.
[TLC] Continua, havia ainda coisas de que falar, porque não importa quem esteja no poder, ainda temos uma extrema-direita que gostaria de oprimir continuamente. Cujo amor pelo capitalismo lhes retira grande parte da sua humanidade. Então senti que o álbum ainda seria relevante, mas não percebi quão relevante seria, dado o nosso actual clima político.
Acabou de mencionar que é a responsável de A&R da reactivada editora Candid Records. Ser responsável pelo gabinete de Artistas & Reportório é muito semelhante a ser um organizador comunitário, pelo menos é a minha visão tendo em conta a minha própria experiência. Como é que está a lidar com esse trabalho?
[TLC] Bem, eu não sou a chefe, estou apenas a fazer A&R para eles. Tecnicamente, o presidente da editora é o patrão, e ele ainda faz A&R também, o John Burk. Mas a maneira como o vejo é que sinto que o jazz precisa de, não sei, uma carga de energia. Precisamos de mais público. Precisamos realmente de abraçar mais os músicos actuais, as pessoas que estão a misturar diferentes estilos com a sua música. Porque faz sentido se alguém cresceu numa era em que o hip hop e o R&B ou o rock eram as forças musicais dominantes, e ouviu essas coisas ao crescer, e depois começou a aprender e a tocar jazz, faz sentido que essas coisas estejam a influenciar a forma como se ouve jazz. E é para aí que a coisa está a mover-se. E então só queria que as minhas contribuições para a Candid fossem mais viradas para o futuro do jazz, em oposição ao passado. Tenho um programa de rádio chamado Future Flavors, e estive envolvida em levar a Recording Academy a criar uma nova categoria nos Grammys chamada Alternative Jazz para, de certa forma, honrar isto, para que não haja um disco do Kenny Barron ao lado de um disco do Robert Glasper — e para que essas pessoas não ficassem sem casa no jazz e fossem para o R&B ou outros sítios. Então é nisso em que realmente tenho pensado: como trazer jovens para o meio, que estejam a fazer coisas importantes e influentes nesta nova era do jazz.
E também trouxe muitos talentos que assinaram pela Candid até este projecto. Pode falar-me um pouco sobre alguns dos músicos que convidou para participarem neste disco?
[TLC] Sim, a maioria deles está no We Insist!, mas não todos, na verdade. Morgan Guerin, Milena Casado, Stanley Moulier, Matthew Stevens, Zacchaeus Paul e a Christie… Há mais alguns em andamento, um par de outros, que ainda não se concretizaram. Mas essas são as pessoas que eu trouxe. O Morgan é um multi-instrumentista incrível, ele é um génio, toca tudo. Toca baixo connosco, mas saxofone e bateria são os seus instrumentos principais. Mas também toca teclados com a Esperanza Spalding. Quer dizer, ele toca literalmente tudo. Não sei se já o viu tocar guitarra. Mas até havia um vídeo dele a tocar trompete ou trombone quando era miúdo. Então até tocava um pouco de metais. Mas os seus instrumentos principais são saxofone, bateria, baixo e teclas. E a Milena Casado toca trompete, ela é de Espanha.
Sim, acabei de a entrevistar há uns dias.
[TLC] Ah, óptimo. E o Zacchaeus Paul, ele é tipo o rapaz do R&B que funde jazz no seu R&B. Então é difícil realmente definir o que é a sua música. Ouve todo o tipo de influências. Mas tem muito a ver com a igreja. E o Matthew Stevens é um guitarrista canadiano, tocou muito com a Esperanza Spalding, assim como com a Linda May Han Oh. Mas a primeira coisa que o pôs no mapa foi tocar com o Christian Scott. E pode-se ouvir uma influência de indie rock e tradições folk e tudo isso no seu jazz. E depois a Christie, que já conhece. E o Simon, um vibrafonista francês.
Então podemos esperar, num futuro próximo, mais discos destes artistas que assinou, como álbuns a solo ou tê-los como líderes dos seus próprios projectos?
[TLC] Sim, das pessoas que acabei de nomear, todas já lançaram um disco, excepto a Christie, e o do Matthews que está a ser feito agora. Todos os outros já lançaram. E depois é uma questão de serem escolhidos para outros projectos.
Além dos novos arranjos para as peças que o Sr. Roach e o Sr. Brown escreveram, o disco também teve composições suas. Estas diferentes tarefas, arranjar e compor, complementam-se na sua cabeça?
[TLC] Ah, sim. Arranjar e compor são quase a mesma coisa. É um bocado como co-escrever, quando se arranja. A não ser que seja um arranjo mínimo. Porque, quer dizer, geralmente, pega-se na melodia e adiciona-se toda uma nova harmonia e fica drasticamente alterada. Então é um bocado como co-escrever. E, não sei, sempre gostei de arranjar coisas porque é sempre reimaginar algo que já viveu consigo durante algum tempo… Não sei, sempre gostei de reimaginar o trabalho de outras pessoas.
A propósito, parabéns por haver notas de capa no álbum. Sempre disse que escrever notas de capa seria o meu trabalho de sonho. Mas, estava a dizer, as notas de capa do álbum apontam para o facto de que a alegria pode ser vista também como um acto de resistência. Lembrei-me imediatamente do título de uma banda britânica de jazz, os Ezra Collective, que tem um álbum de 2019 chamado You Can’t Steal My Joy. A alegria é uma força poderosa, não é? E esta é uma pergunta para ambas.
[TLC] Ah, sim, isso foi poderoso. Também gosto dos Ezra Collective, passo-os no meu programa de rádio. O meu ponto é que a alegria é uma forma de resistência porque, especialmente para pessoas que lidaram com opressão, todo o conceito de oprimir outros é tentar roubar-lhes a alegria. É tentar fazê-los miseráveis. É tentar pôr o pé no seu pescoço. Tentar obliterá-los. Às vezes é isso, mas noutras vezes não o querem fazer, porque precisam de si para trabalhar e consumir e fazer todas essas coisas. Mas querem que esteja miserável no processo. E sinto que, mesmo durante a escravatura, há uma imagem ou uma ideia da escravatura como um período em que as pessoas estavam tão oprimidas que não tinham alegria. Nós não acreditamos que isso seja verdade. Eram seres humanos completos, a lidar com estas circunstâncias terríveis, mas ainda assim a ter um espectro total de humanidade e vida que nunca é realmente reconhecido. Então sabemos que havia o domingo e havia a igreja. E depois havia alegria nas refeições de domingo e toda essa tradição. Mas penso que, se é um ser humano completo, mesmo nestas circunstâncias terríveis, vai também encontrar um sentido nisso. Mesmo pessoas que estão encarceradas, não se pode pensar que não riem.
[CD] Eu concordo, quer dizer, disseste tudo tão perfeitamente. Definitivamente, como pessoa negra, penso que às vezes ficamos presos na recontagem do nosso sofrimento e nas histórias do sofrimento e esquecemos que não podemos diminuir a nossa humanidade só a isso. Mesmo eu fiquei presa nisso, quando estava a falar sobre “oh, isto é porque sou negra, ou não tenho isto porque sou isto”. Eu não tenho por causa destes sistemas, o que é verdade. E posso chamar essas coisas para a minha vida se simplesmente continuar a dizê-las, a falar do meu sofrimento, a falar da minha opressão. Mas uma coisa em que realmente me tentei focar recentemente é no meu bem-estar. E parte do meu bem-estar é a minha alegria, a minha liberdade e a minha esperança, que descobri recentemente. Então, sim, sou um ser humano completo que tanto experiencia sofrimento, tempos tristes e sombrios, como tempos realmente frutíferos e incríveis, felizes.
Para terminar, este projecto já foi tocado ao vivo? Planeiam fazer uma digressão com ele na Europa, nomeadamente?
[TLC] Bem, acabámos de tocar no [festival neerlandês] North Sea. Esse foi o único concerto europeu que fizemos. Mas já fizemos vários espectáculos aqui nos Estados Unidos.
Com um grande ensemble?
[TLC] Não, tem sido maioritariamente com um grupo de cinco. Vai haver alguns concertos que terão tanto guitarra como vibrafone, mas, na maior parte do tempo, é um ou o outro. E estou ansiosa por fazer mais actuações completas disto, com mais pessoas. Há muitos convidados no disco. E neste espectáculo que vamos fazer agora [aconteceu a meio de Agosto] em Nova Iorque, no SummerStage, no Marcus Garvey Park, no Harlem, também vamos ter alguns convidados. Vamos ter o sapateador Ayodele Casal a juntar-se. E o Morgan vai tocar saxofone porque o Rashaun Carter vai tocar baixo. Então vai ser uma experiência um pouco diferente, com dois bailarinos. Já temos uma bailarina, a Christiana Hunt, que está no álbum a recitar poesia. Então vai ser uma versão bastante alargada do espectáculo.