pub

Fotografia: Joanna Correia / Centro de Arte Moderna Gulbenkian
Publicado a: 13/09/2023

Aproximação à cultura japonesa.

Temporada Engawa na Gulbenkian: “Corpo da Alegria”

Fotografia: Joanna Correia / Centro de Arte Moderna Gulbenkian
Publicado a: 13/09/2023

Uma Centopeia. Uma centopeia que se desenrola, lentamente. Sem pressas. Está onde deseja ser. Nas extremidades, a longa folha de papel que vai sendo desenrolada e ocupa a totalidade de uma mesa alta. Posiciona-se, meticulosamente, à procura do centro. Aí, Ami Yamasaki. Centro relativo. A mesa como ponto de leitura. O gigantesco vidro, detrás. Jardim e patos. Tratado de zoologia. Este centro, o de Yamasaki, é universal, porque transcendental. Nele todos cabem. E abre-se diante de nós. Os que estiveram dispostos na plateia sobre o palco. Que privilégio este, o da proximidade. Christian Marclay desenhou com apurado sentido de ironia e maior cuidado a pauta. As suas onomatopeias remetem inapelavelmente para os textos em balões da banda desenhada. Têm lugar todos aqueles para quem as questões existenciais não são mero divertimento, antes razão para largos minutos em frente ao mar. Encontramo-nos. Somos onomatopeias da paixão. As diferentes camadas da voz de Yamasaki sem qualquer tipo de amplificação. Em flutuação, sem check-in ou excesso de bagagem. As praias da Sardenha [fotografias que Yamasaki partilhou na conferência “FluxFest Lisboa – Conversa sobre o Japão“]. Todas as coordenadas a um Eu. Em que longitude e latitude são as mesmas – 0/0, simultaneamente o ∞. Somente no conhecimento do nosso corpo e espírito nos aproximamos da universalidade da sua voz. No formalismo do exercício, da cultura japonesa – liberdade sem limites. Cada gesto, cada singelo levantar de mãos, cada passo de Yamasaki transporta-nos cerimoniosamente e ritualisticamente para o Engawa – um dentro e um fora.

Também assim, no primeiro dia, na sala 2 – Solo Performance, de Ami Yamasaki. Um final de tarde chuvoso, uma janela, um limite inexistente entre o jardim e a sala. O público sentado respeitosamente no chão. A convocação de vozes ancestrais, a iluminação de quem encerra em si o universalismo. Somos, enquanto seres humanos na sua plenitude, seres infinitamente frágeis. A incerteza assumida. A assunção que o futuro jamais poderá ser conhecido, sequer descoberto. Talvez e unicamente como hipótese de trabalho. Somos permanentemente parte de um colectivo que todas as espécies inclui. A nós, lampejos de adivinhação nos são concedidos. Abrir-lhes a porta na materialização de um “Corpo da Alegria”.

Na conferência de abertua, um sublinhado constante para o carácter englobante do movimento Fluxus. Performance, artes plásticas, música, happenings. É vida. E os artistas que intimamente se relacionam. Duchamp, Cage, Yoko Ono, Paik como tão oportunamente Marclay referiu. Fluxus como uma reacção do que se passa em volta. O abraçar de uma imperfeição numa sociedade rígida e formal como a japonesa. A tentativa de construção por territórios de proximidade. Acolher a cultura chinesa, indiana, coreana. Um lugar puro e absoluto para a improvisação. Um espaço lúdico como enfatizou Jaime Reis, mencionando como exemplo entre nós as obras de Jorge Peixinho e Ernesto de Sousa. O lúdico como desconstrução/construção. O desmoronar dos cânones. A improvisação como gesto quotidiano. E tantos no dia. Imaginemos contá-los. São muitos.

As caixas – “Endless Box” de Mieko Shiomi, elementos tão simples que se desdobram e se nos apresentam sob múltiplos prismas – a noção de cluster, os desejos de um pássaro, a radiografia de uma gata, peixes com pernas. A queda livre de ínfimas pedras em variações mínimas de altura e na mesma geografia. Pianistas, cordas, postais projectados, a roda de uma bicicleta, martelo e balões vermelhos – Pam! Pam! Uma breve descrição de tudo o que devemos, pois trata-se de obrigação, para nos expressarmos. Acrescentar “expressão cultural” é redutor. Fluxus é vida e vida é Fluxus. As duas peças pelo Ensemble DME – “From the Endless Box: obras de 1999 a 2023, por Mieko Shiomi – I & II“, sob uma perspectiva muito particular convoca-nos para uma cerimónia inicial.

Domingo. Vestimos o jinbei no Grande Auditório. Sem necessidade de amplificação. Um em frente ao outro – Ami Yamasaki e Ko Ishikawa. Nós em frente de nós. Gestos sublimes. Vocalizações abesbílicas. Sopros luminosos provenientes do Shō. Negação em firmeza absoluta do ego. O nada materializado. ‘Cântico final’.

P.S.: “Corpo da Alegria” é o título dado por Vergílio Ferreira ao livro que viria a ser publicado como Cântico Final.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos