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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Francisco Gomes
Publicado a: 09/07/2021

Olho por olho.

Tekilla: “A evolução é que te permite abordar temas que outrora te constrangiam”

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Francisco Gomes
Publicado a: 09/07/2021

Já lá vão oito anos desde o seu último trabalho a solo, mas também já são mais de vinte anos a estabelecer pontes no núcleo do hip hop, quer a nível nacional ou internacional. Tekilla não esteve parado — longe disso. Mas quis o destino que Olhos de Vidro chegasse a seu tempo, um álbum que vinha a ser preparado há um par de anos, a par de outro. E se é por pontes — artísticas e humanas — que Telmo Galeano acumula vastos quilómetros pelo hip hop e além-fronteiras, o seu quarto disco surge, precisamente, de um encontro frutífero com Frederico Pinto Ferreira (também conhecido por Fred em alguns projectos bastante familiares desta nossa praça como Orelha Negra e 5-30), ele que produziu na íntegra este LP.

Da produção surpreendentemente multifacetada ao rap brutalmente honesto, Olhos de Vidro apresenta-se como um trabalho ambicioso que nada deve nem à velha, nem à nova escola. Mais do que apenas um regresso aos projectos, Tekilla fez questão de renovar a sua pele musical e de dispor todas as cartas na mesa, para o bem e para o mal. E depois de uma longa conversa na antevisão do lançamento deste novo álbum, ficou assim respondida, em grande medida, a pergunta que se impunha: afinal, o que dizem os Olhos de Vidro de Tekilla?



Este é o teu quarto álbum em mais de duas décadas activo no núcleo do hip hop. Como vês esta fase da tua longa carreira em que te encontras? Passados oito anos desde que lançaste um projecto a solo, este álbum chega como uma afirmação do teu valor enquanto rapper no presente?

É sempre uma benção continuar relevante e estimulado, porque, infelizmente, nem todas as pessoas conseguiram manter esse estímulo que eu mantenho nos dias de hoje. E a base principal é conseguir actualizar, não só a nível de temas, mas versatilizar a nível de melhorias, seja na selecção de beats, seja na zona de conforto, seja na abordagem de outros temas. Tudo o que tem a ver com, artisticamente falando, ainda sentir-me apto como se fosse um newcomer. Portanto, para mim, é apenas uma benção continuar sólido, a ver rappers que ainda inspiro e estimulo, e gostaria de manter isso durante ainda mais algum tempo, porque não sinto que a idade tenha passado por mim [risos]. E é agradecer a todas as pessoas que continuam a apoiar-me e a estimular-me de alguma forma; aos artistas com quem eu lido, nova e velha geração; pessoas de outros meios — porque eu não bebo só da cultura hip hop. Então, são sempre vários factores que me estimulam à criação e a desenvolver a minha criatividade. Por isso, simplesmente, o que eu tenho a dizer é: benção e gratidão!

Pergunto isto porque sempre tiveste um estilo de rap assertivo, mas neste disco sente-se uma especial agressividade, como se tivesses algo a provar.

É sempre bom… Tens quantos anos?

Tenho 23.

É sempre bom ver pessoas da tua idade, que vêm de uma geração diferente da minha, passadas duas décadas, a conseguir ver e avaliar esse ponto de vista. Requer pesquisa, uma boa avaliação e um acompanhamento do meu percurso para estares a dizer isso. E consiste exactamente nisso: é não deixar que a idade ou o peso dos anos seja um factor prejudicial, mas sim um factor estimulante. E, para mim, eu sinto isso de uma forma positiva e evolutiva; sinto-me rejuvenescido, como se fosse um puto novo; sinto-me com fome. Gosto de… eu não sou uma pessoa de criar ideias mirabolantes. Gosto da vivência, e como tenho uma vida activa, permite-me desenvolver vários temas que eu próprio vivencio. Quem dera a todos os artistas da minha geração continuarem com a mesma fome que eu, mas acho que também tem a ver com vivências. Há pessoas que… filhos, mulher, essas coisas não permitem isso. Ainda não estou nesse game [risos], por isso tenho a liberdade para manter esse equilíbrio. É necessário haver essa fome. Acho que isso é o expoente máximo na cultura. Se há alguma coisa a dizer sobre esse aspecto, acho que as pessoas têm de arranjar formas de se estimularem e não de se lamentarem tanto pelos que passam, pela nova geração que toma conta, mesmo com menos mensagem e mais diversão, mais hype — acho que perdeu-se um bocado isso. Eu, felizmente, gosto de manter-me firme aos meus princípios e às minhas raízes.

Nesse sentido, mesmo não tendo acompanhado toda a tua carreira ao longo dos anos, o álbum não deixou de me surpreender.

Surpreendeu-te pela positiva? Em que aspectos, já agora?

Sobretudo pela variedade da produção, mas mesmo pela fome com que rimas.

Há um factor prejudicial nas pessoas da minha geração: muitas delas não conseguiram acompanhar a mesma linguagem sonora. Eu estou a falar-te mesmo ao nível de bars, temas, experiência e maturidade. Tu que não acompanhaste tudo consegues sentir a evolução, a maturidade na abordagem dos temas, a composição minuciosa em temas mais delicados que, provavelmente, contam-se pelos dedos os artistas que podiam abordar esses certos temas e não abordam. Eu sou conhecido por ser um rapper sem filtros. E nos dias de hoje é mais do que necessário nós preservarmos essa integridade artística e liberdade ao mesmo tempo, de conseguirmos expor aquilo que nós queremos realmente dizer, sem ter que polir tanto o diamante. Às vezes, o diamante tem mesmo de ser vendido em bruto; não pode ser lapidado. Alguém que o lapide, mas tu queres vendê-lo em bruto. E essa lapidação tem de ser feita como tu fizeste — não deixas de ter o diamante, mas lapidaste-o à tua maneira; é a tua avaliação, ou seja, a tua avaliação foi a lapidação desse diamante.

Infelizmente, não posso dizer isso de todas as pessoas que eu gostaria que estivessem activas da mesma forma do que eu, e que não se queixassem ou lamentassem ou viessem com a história da nova geração. Ainda há muito para dizer, ainda há muito para fazer, e acho que, quando as pessoas estão focadas nas suas metas e nos seus objectivos, tudo o resto acaba por ser secundário. Eu nunca fui muito um ouvinte de hip hop tuga mesmo para não ouvir certas afiliações ou semelhanças. Eu tenho prazer em ser o Tekilla. É triste tu ouvires hoje vários rappers que não sabes quem são. Tu ouves o ‘Killa e parece o ‘Killa, ouves o Sam e parece o Sam, ouves o Gula e parece o Gula. Isto são características que se perderam um bocado nos dias de hoje. As pessoas são muito a favor de influências, mas eu sou contra 100% uma réplica. Ou seja, eu gosto muito de um artista, mas eu não posso imitar aquele artista; isso é uma falta de respeito à cultura em si. Tu copiares rappers… isso na minha geração isso era considerado biting. “Bitar” era uma coisa feia, e hoje em dia tornou-se uma coisa comum.



A abordagem maioritária neste LP é de egotripping e punchlines, mas, por contraste, há faixas dedicadas e direccionadas a alguém em específico. Houve alguma motivação que falou mais alto do que a de fazer um statement neste regresso?

Várias, talvez… São vários factores, nem vou conseguir enumerá-los todos, mas posso precisar alguns: a perda de um irmão fez-me ver as coisas de um prisma muito amplo — nunca tinha passado por certas coisas na minha vida; mudança de ambientes; oscilação emocional; abordagem de temas que, por norma, olhei ao redor e vi que eram essenciais; a necessidade de tocar em aspectos que outrora acabaram por ser negligenciados, e que acho que são muito essenciais nos dias de hoje — estou a falar de factores como, não apenas racismo, mas todos os factores que englobam LGBT e essas coisas, onde as pessoas acabam por elitizar certos meios, enquanto deviam estar a tratar mais de inclusão e não exclusão; é tudo muito tendencioso e efémero. Neste álbum, a minha finalidade é que tu oiças exactamente aquilo que eu quero dizer — as minhas bars, as minhas metáforas, que assimiles a minha mensagem e que te possas rever nela. O mais engraçado, que aos anos as pessoas dizem-me, e este álbum é o selo de aprovação para isso, que é: “quem te ouve parece que já te conhece”.

Sim, tu neste álbum mostras muito da forma como pensas.  

Transparência. Perdeu-se isso, um bocado, no hip hop. A evolução é que te permite abordar temas que outrora te constrangiam. Hoje em dia, sinto-me confortável para abordar qualquer tipo de tema do meu ponto de vista, sem ser excluído, sem ser escrutinado, sem que me apontem o dedo. Eu quero que toda a gente oiça, seja qual for o género musical, quero que as pessoas oiçam, se identifiquem e que, acima de tudo, possam reflectir sobre certos temas. Tornei-me minucioso na minha composição. Eu sou uma pessoa extremamente exigente; não gosto de lançar por estar a lançar, não gosto de fazer por estar a fazer, não gosto de escrever por estar a escrever. Eu gosto da excelência. O facto de não estar a lançar por uma label nacional, o facto de poder ir para além-fronteiras, o facto de eu achar que tenho capacidades para e continuar a estimular-me sozinho, para que eu atinja essas metas e não depender de A, B ou C. Então, tens de criar veículos de solidificação para atingir as tuas metas ou objectivos. Tens de estar focused. E houve vários factores que me estimularam a esse foco; de vivência, não só de perdas, mas de coisas sérias na vida, de altos e baixos; de atrasos, de ouvir, reouvir, fazer, refazer, tocar, retocar. É necessário, cada vez mais nos dias de hoje, eu estar atento a esses factores. Com o tempo tornas-te mais exigente. O que te fazia rir antigamente já não te faz rir hoje, as coisas que te estimulavam antes já não te estimulam. É necessário nós termos essa consciência e conseguirmos exteriorizá-la da melhor forma possível. E se eu conseguir arranjar um veículo de comunicação, que é a música, compete-me fazer da melhor maneira para as pessoas que merecem e acompanham e que, automaticamente, fazem-me ser quem eu sou hoje passadas duas décadas. Há artistas que não passam um Verão, quanto mais duas décadas.

Pegando no ponto da transparência, o título Olhos de Vidro vem também no sentido dessa visão sem filtros daquilo que queres transmitir através do rap?

Também. Mas o que é um olho de vidro?

Um olho de vidro há-de substituir um olho em falta…

Um olho de vidro está a substituir um buraco, uma lacuna, uma deficiência que tens a nível visual. Falta-te um olho, e o olho de vidro serve para substituir esse buraco no olho. Então, o “olho de vidro” é isso, meu irmão. O “olho de vidro” é para colmatar essa lacuna que a indústria tem; é tapar o buraco que a indústria cultural geral tem. Esta é a última cultura onde a integridade artística é posta em causa, e não devia ser posta em causa. Nós temos de ter, realmente, a consciência do que dizemos, de onde viemos, de onde estamos e para onde vamos, mas sem ter que andar com base no que os gajos da rádio vão passar. Eu venho de uma linguagem das ruas e consigo colmatar a linguagem que eu aprendi de rua com a linguagem que tive em casa, a educação severa que os meus pais me deram. Tu consegues sentir isso na minha linguagem como eu estou a falar contigo e consegues perceber isso na minha musicalidade.

Estás a trabalhar neste longa-duração há quanto tempo com o objectivo definido de fazer um disco?

Para aí há uns dois, três anos. Porque eu já tenho outro álbum ready. Chama-se Pai Deles Todos, estás a saber pela primeira vez. Sabes, eu sou um gajo que está sempre em estúdio; tenho muita música. A única finalidade é que eu tenho de ter a música cá fora da melhor forma possível, com a comunicação, com o marketing, com a promoção, tudo adequado. Acabou a história de eu sozinho a tentar fazer essas coisas. As pessoas sozinhas não chegam a lado nenhum. Por isso tive de constituir uma equipa, posicionar-me, filtrar o meu núcleo de amigos e pessoas com quem eu trabalhava, e realmente tomar conta da minha carreira com cabeça, tronco e membros. Quero outros patamares, quero outras coisas. E, quando tu és ambicioso nesse aspecto, tens que isolar-te um bocadinho, de vez em quando, e planear a tua vida. 

E o que aconteceu foi que eu já estava a fazer o Pai Deles Todos — por isso é que saiu o “Tudo Duma Vez” com o meu brother Laton —, já estava a fazer esse álbum quando, depois, passei pelo estúdio do Fred, que ele já me andava a dar o toque para ouvir umas coisas e ver umas ideias, e parei o álbum para fazer o Olhos de Vidro. E o que aconteceu foi exactamente isso: desde o início que eu não fui com ideias, não fui com planos de nada, porque, aliás, eu não conhecia muito bem o Fred a nível sonoro, e o que eu ouvia dele não gostava muito, para ser sincero — não era muito a minha lane. Mas ele lá sabia o porquê de me estar a convidar para o estúdio. Foi isso, e o factor surpresa foi esse: eu descobri um Fred que poucas pessoas descobrem. E eu como produtor-executivo gosto de tirar as pessoas da sua zona de conforto — porque ele vem do alternativo. Eu podia pegar no Sam, no Beatoven ou no meu puto Filetes e fazíamos um álbum. Não era isso que me interessava. Eu queria tirar pessoas da zona de conforto que pudessem integrar elementos sonoros e musicais, e mesmo a nível de visão, que não fossem tão comuns na cultura. O Fred tem uma sonoridade muito própria, que, quando ele me mostrou, eu não gostei nada — beats, restos de 5-30 e cenas que ele tinha feito para a Blaya. Até que o gajo foi até às catacumbas e tirou de lá uma pasta. O primeiro tema chama-se “90’s”, foi o primeiro tema a ser mesmo gravado, gravei no estúdio a primeira vez e disse “esta é a sonoridade, é por aqui que é a direcção”. Esse foi o primeiro tema, e ele tinha aquilo ali num bunker, numa pasta que não queria mostrar a ninguém porque achava que aquilo eram atrofios dele. E eu disse-lhe: “man, os teus atrofios são a minha sonoridade”. A partir daí foi limar arestas, ouvir coisas, enviar referências, ele próprio trazer outras coisas. Ficaram sons de fora do Olhos de Vidro que são bangers. Só que acho que há uma leitura do álbum; tem que haver um sincronismo sonoro, porque acho que perdeu-se um bocado a cena de fazer álbuns. Os álbuns soam a compilações. Tem que haver uma coerência musical, e eu venho dessa geração. Eu venho da geração de fazer álbuns, de saber o que é que fica de fora, o que é que fica dentro, o que vale ou não a pena, o que falta e o que não falta. E essa geração é reflexo do Olhos de Vidro — manter essas raízes, onde consegues ouvir o álbum do princípio ao fim sem estar a fazer zapping. Esse álbum foi um bocado isso. Não tenho uma data de quando é que comecei, mas tive que parar porque estou sempre a fazer temas. Esse é o meu problema: se eu não parar, temos ali dois ou três álbuns. 

Foi o Fred quem ficou encarregue da produção toda?

Certo, com a minha coordenação. Eu sou o gajo que gosta de estar a fazer essa parte, a produção-executiva. Se faltar alguma coisa, não quero que haja pós-produção — eu consigo ter essa percepção e leitura. Eu já faço isso há muito tempo, para mim e para outros artistas. 



Na última faixa do disco são músicos que estão a tocar, certo? 

Sim, todos. São quatro: o Frederico Pinto Ferreira — o Fred —, o Gabriel Muzak, o Ricardo Pinto e o Bruno [Silva], o violinista do Rodrigo Leão. E o Gabriel Muzak é multi-instrumentista; ele é que, depois, levou vários instrumentos para o estúdio e está a tocar. Aquilo era um tema que eu queria fechar com a Mallu Magalhães e já tinha a ideia, e ele é um dos elementos da banda dela. Então, fizemos aquela jam, que me faz lembrar Fela Kuti.

E é bastante inesperado o álbum acabar assim.

Mas é lindo, porque a malta se calhar está à espera que eu vá estar a rimar. Isto é como uma bonus track como se fosse uma ovação à sonoridade toda. Acabas em festa, acabas em grande. É algo que eu revejo como álbuns da BBE. A BBE foi conhecida… conheces a BBE?

Ia, justamente, perguntar-te sobre isso. Gostava que falasses sobre a tua relação com essa editora que trabalhou com nomes respeitadíssimos no hip hop.

Tais como?

Tais como J Dilla, acima de tudo.

Mas mais: Questlove — um álbum de Questlove, Babies Makin’ Babies —, Madlib, Pete Rock, will.i.am, DJ Jazzy Jeff… todos esses artistas são artistas com o selo BBE. A BBE foi conhecida por dar oportunidade e destaque a producers, para dar mesmo essa visibilidade aos producers. Tu ouvias beats e ouvias um álbum de beats, e não um álbum com rappers que ofuscavam os producers — ali quem brilha são os producers, e eles depois é que viam artistas que faziam sentido. Por exemplo, sabes quem é o Elzhi?

Sei, sei.

O Elzhi é um dos últimos membros que foi integrado pelo J Dilla de Slum Village, e a primeira vez que eu ouvi o Elzhi foi num álbum do J Dilla, o Welcome 2 Detroit, pela BBE. Assim como o Phat Cat — malta de Detroit. Portanto tu acabavas por ser reeducado por aquela label, e estar a sair por uma label dessas é uma benção. Eu fui assinado por causa de uma sonoridade — é isto que interessa. E por haver uma editora como essa, icónica, a ter essa percepção, independentemente da língua que eu me expresse (que é o português), é um fenómeno. It’s all good, it’s all love, thank you. Foi para isto que andei a trabalhar muitos anos, para que pessoas possam olhar para a minha arte de uma forma mais ampla, e não restringi-la. Eu gostaria mesmo muito que Portugal tivesse pessoas também com essa visão — tem, mas não tem o mesmo poder e não estão tão bem posicionadas. São pessoas do nosso meio que, infelizmente, perderam-se na “batata-doce”; começaram como batata-doce, mas acabaram como puré de batata [risos]. Era bom que houvesse mais pessoas que percebem da cultura em si, para estar a coordenar e a dirigir carreiras, projectos que dignifiquem a cultura negra, a cultura de rap e do hip hop sem ser um bocado washed-up, muito lavadinha. Parece que há sempre um filtro. Não pode haver filtros em algumas coisas; tem de ser raw

Do afro ao jazz, a produção deste álbum é variadíssima, e na véspera do lançamento deste trabalho revelaste uma playlist de canções que te inspiraram ao longo do processo, com nomes desde Joey Bada$$ e A$AP Rocky a Sade, John Coltrane e Duke Ellington. Nesse sentido, fiquei impressionado por saber que a produção de um álbum tão variado foi levada a cabo apenas por uma pessoa, ainda para mais havendo esse preconceito de que falaste sobre a sonoridade do Fred.

No meu ponto de vista, eu acho que é o melhor trabalho que o Fred fez na vida, porque permitiu-lhe respirar nas entranhas dele, não pela pop dele. Ele é um artista a quem lhe pedem muito trabalho e é conhecido por ser baterista, mas toca outras cenas; é um multi-instrumentista. Ele é um gajo que consome e bebe de muitas coisas, lê muito; é uma pessoa isolada no seu mundo. Mas é um fruto que, espremido, tu nem sabes que fruto é aquele. Tem é que haver a paciência, a partilha, e percebê-lo. Ele é uma pessoa muito fechada, mas se ele perceber que estás a tirá-lo da zona de conforto e que aquilo vai ser um factor benéfico para ele como pessoa e artista, não te vai ver a ti como artista. Hoje em dia, posso dizer que ele é meu amigo. E são poucas as pessoas que posso dizer que são minhas amigas. 

Ao dizeres-me isso, é eu ver que estou no caminho certo — ir buscar um artista que eu vejo que tem capacidades para muito mais e que, se calhar, não é exposto. Eu acho que o Fred é um producer underrated; ele é como eu — um rapper underrated. Porque, se calhar, não nos dão os créditos devidos, mas também é o business. E quando há esta oportunidade de nos expormos da melhor forma possível, sem filtros… Aqui ninguém trabalhou para singles, ninguém trabalhou para as rádios. Há temas que têm um apelo mais radiofónico, [outros] um mais underground, mais funky, mais sujo, mais Griselda, mais Fela “Kutizado”, mais “Coltranezado” ou “Sadezado”. Todos os temas que tu falaste são temas que eu oiço há mais de vinte anos; são artistas que eu cresci [a ouvir] com os meus pais. Eu venho de uma educação musical muito rica. Tu estás constantemente em mutação, e nesta constante mutação tu bebes de várias coisas, experiencias imensas coisas. E como não reflectir isso na música?



Em relação à variedade da produção, acredito que essa diversidade tenha aberto espaço às diferentes colaborações que surgem neste disco. Queria falar de algumas delas, como a AMAURA ou a SaraSoulfull, com quem senti que tinhas uma especial química. Como é que surgiram estas participações?

Em relação ao álbum, eu não pensei sequer em ter rappers no álbum. E se tivesse, tinham de ser rappers que me dissessem mais do que eu, realmente, quisesse procurar; que viessem para agregar algo à sonoridade. Na altura que eu estava a gravar isso, estava lá toda a gente: Bispo, Slow J, Gula — estavam lá todos. O álbum do Sam com o Beware também estava a ser lá gravado. Eu nunca queria estar quando eles estavam, eu não queria estar a ver essa semelhança. Eu não gosto de estar em ambientes onde haja muitas pessoas semelhantes no mesmo meio, para não haver aquela influência ao ouvir, porque chegou a uma altura em que essa fusão era boa para criar laços, mas não para a minha criatividade. Eu gosto de estar isolado, para que não haja mesmo semelhanças. Aliás, o Fred gravava toda a gente e nunca me mostrou nada de ninguém, porque eu não queria que me mostrasse. 

Essas pessoas que entram no álbum… por exemplo, a AMAURA era uma rapariga que já trabalhava com o Fred noutros aspectos, até ao nível de publicidade e cenas do género. E, de certa forma, eu, quando fiz o “Sintonia”, senti a necessidade de um vocal feminino, mas queria um vocal específico, com uma vibe soulful. E a AMAURA tem essas características. Quando gravámos esse som, eu mal a conhecia, mas tinha uma boa vibe, mega simpática, assim meio nervosa. Gravámos a cena mesmo juntos; eu deixei a minha referência, para que ela pudesse acompanhar e fazer a cena dela com liberdade total.

A SaraSoulfull é amiga de um amigo meu que anda de skate. Ela tinha uma banda e eu gostei bué da voz dela; ela tinha uma voz soulful, mega doce. E eu falei com esse rapaz, o Zenildo da Ementa SB, e ele apresentou-me a miúda. Quando a pus no álbum, eu queria lançá-la como artista; eu queria tê-la como minha artista, queria produzir o álbum dela — produção-executiva minha. Este álbum Olhos de Vidro devia ser Tekilla e Sara — que ela entra algumas vezes — porque eu achei que ela ia ter esse destaque. Lembro-me quando o Sam ligou a dizer: “Quem é essa miúda? Grande voz!”. São esses factores, não só a questão do Fred; é a questão, também, da SaraSoulfull, de ter o Gabriel Muzak e o Ricardo Pinto do jazz — isso só veio estimular a minha criatividade. A química existe sem ninguém ter de fazer parte do meu meio. Cada um faz a sua cena, mas eu saber que eles vão agregar algo à minha sonoridade é uma benção. Por isso chamo-os, convido-os, partilhamos o estúdio e ideias, partilhamos musicalidade. Gosto de estabelecer um relacionamento saudável com as pessoas, porque gosto de deixar essa porta sempre aberta para tudo. É um prazer olhar para um álbum que demorou tanto tempo a ser feito, mas que tem muito amor, muita dedicação e muita maturidade e experiência. Tu ouves temas ali que o Fred chorou. Essa sensibilidade requer uma comunicação muito familiar. 

Sobre o tema “Lendas”, a pergunta é inevitável acerca da polémica relativamente aos primeiros versos desta faixa. Queres falar sobre isso?

Há aqui um problema muito grave que é: as redes sociais têm sede de sangue. Quem percebe o hip hop sabe que aquela dica não tem nada a ver no sentido literal. Aquilo é linguagem de rua. Aliás, aquilo é a minha realidade, e vinda de mim é mais do que óbvio que eu nunca pensei em ofender ninguém. A maior parte dessa informação veio de pessoas que não fazem parte desta cultura, que não ouviram nem vão ouvir a minha música. É por isso que eu não quis sequer entrar em detalhes ou pormenores ou ir comentar. Tu não ouviste nenhum tipo de comentário ou manifestação minha. Decidi não entrar em nenhum tipo de despique. Mas está tudo certo, eu percebo que as pessoas possam ter ficado ofendidas, mas faz-me reflectir da forma como eu digo as coisas, como é que eu posso criar. Mas há uma coisa que as pessoas têm que entender, e que já falámos desde o início, que é a integridade artística. É mais do que preciso preservar a liberdade artística que há no hip hop e que provavelmente é a última cultura no movimento onde, realmente, é livre para criares o que tu quiseres. Se lamento a interpretação que as pessoas têm? Lamento. Se isto faz parte da cultura? Sempre fez. Eu sou o centésimo ou o milésimo a dizer este tipo de dicas. As lutas e as causas que eu abraço reflectem-se nas minhas músicas, em Olhos de Vidro, reflecte-se em mim como pessoa. Não é numa rede social. 

Ainda assim, o Carlão tomou uma posição pública a demarcar-se do conteúdo desses versos, alegando que, quando foram gravar o vídeo, ele não conhecia a letra. Para as pessoas que o seguem — que hoje em dia até nem são, necessariamente, consumidores de rap — essa tomada de posição dá um certo peso extra à polémica em si.

É verdade, mas eu posso complementar-te com estas palavras: nós somos amigos há mais de vinte anos. Eu respeito-o, ele respeita-me. Por isso é que está no vídeo, por isso é que o convidei. Tivemos um diálogo os dois; é claro que não vou expor aqui o que falámos, mas estamos bem, somos amigos. Lamento, mais uma vez, o sucedido, da interpretação das pessoas. E não posso fazer nada em relação a isso; vou continuar o meu trabalho focado a atingir as minhas metas e a preservar algo que tu e eu fazemos parte, que é a cultura do hip hop. 

Então, no seguimento de tudo o que falámos até agora sobre o disco, se este fosse o teu último álbum, ficava tudo dito para ti enquanto artista?

Não. Primeiro, foquemo-nos no presente. Estou feliz com o trabalho que eu fiz, com a equipa que eu tenho, com o que tenho feito ao longo destes anos — o contributo que tenho dado e o tributo que tenho feito. Não há forma melhor de honrares a tua cultura sem oxidá-la. Gostaria que houvesse, realmente, mais artistas que não dependessem de terceiros ou de opiniões; pessoal que vive no hoje, mas não consegue garantir o amanhã. Eu faço música para sempre, para a eternidade. Eu posso não durar para sempre, mas a minha música vai durar para sempre — essa é a única garantia que eu vou ter. E tendo em conta estes vinte anos que se passaram, é uma honra eu ainda estar aqui relevante. 


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