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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/03/2021

Sonho ou pesadelo?

Teeth Agency: “Não estamos a tentar perturbar as pessoas, mas tendemos a criar obras assim por causa das nossas influências”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 17/03/2021

Mariano Chavez, artista visual, e Jesse Hackett, multi-instrumentista e teclista da banda que em palco secunda os Gorillaz, partilham o gosto pela criação de peças surreais. Em Teeth Agency, o duo convida-nos a entrar em águas tão coloridas quanto arrepiantes, revelando um universo fragmentado, mas também uma arte segura daquilo que quer comunicar.

A proposta audiovisual do seu primeiro álbum, com artworks de Mariano a acompanhar a música de Jesse, é distinta por si só. Mas as próprias composições merecem destaque. Afinal, este é um projecto de quem se inspira no boneco Chucky para compor uma balada de jazz. You Don’t Have To Live In Pain foi editado pela Stones Throw e tem convidados como ESKA, Bullion ou Adriano Rossetti-Bonell (Melt Yourself Down).

O videoclipe do single “Do You Like Bunnies”, da autoria de Scorpion Dagger e fermentado com as ideias da dupla, é um óptimo cartão-de-visita para os Teeth Agency. Fomos conhecer melhor os processos, as referências e os segredos sujos desta misturadora de sons e imagens do nosso inconsciente.



A vossa música consiste numa combinação particular de sons de brinquedos, ambiências assustadoras e gravações caseiras. Como reúnem estas ideias?

[Jesse Hackett] Este projecto é audiovisual. Eu trabalho mais a parte musical e o Mariano a parte visual, sendo que interferimos na parte um do outro. Eu próprio venho de uma família ligada às artes visuais. O meu pai é escultor, a minha mãe era pintora e fazia colagens, eu estudei pintura, BD e fotografia.

O nosso processo consiste num diálogo solto que geralmente começa com um título, um tema ou uma imagem. Não utilizamos métodos mais concretos do que isto, uma troca de ideias espontânea e impulsiva, como se estivéssemos a improvisar. Reagimos às ideias um dos outro e movemo-las para a frente e para trás.

[Mariano Chavez] Acho que tudo muda de projeto para projecto. Quando a pandemia começou, o Jesse estava a enviar-me imensas ideias e peças, e a primeira coisa que reparei e com que trabalho são os títulos. O Jesse mandava-me títulos estapafúrdios como-

[Jesse] “Chucky’s Terror Vision”.

[Mariano] Exacto. Títulos como esse influenciam automaticamente a minha visão estética. Neste caso comecei logo a basear-me na personagem e no seu universo. Na verdade, essa música estava num álbum com o mesmo nome, que por sua vez foi tirado de um livro meio kitsch e pornográfico. Enviámos o livro para várias pessoas com a sensação de estarmos a fazer uma traquinice.

Acho interessante referirem esse lado kinky, por vezes perverso, do projecto. Musicalmente vocês são coloridos, utilizam instrumentos e sons cheios de vida mas, ao mesmo tempo, pressinto uma sombra constante nas vossas peças.

[Mariano] Não estamos a tentar assustar ou perturbar as pessoas, mas tendemos a criar obras assim por causa das nossas influências. Como o Chucky, por exemplo.

[Jesse] O Mariano adora o Chucky. Eu descobri por causa dele que o Chucky é um ícone para algumas comunidades hispânicas e mexicanas na América. Muitas pessoas da diáspora mexicana têm bonecos e brinquedos do Chucky nos seus carros, jóias, diamantes, e outros objectos associados a gangues.

[Mariano] Acontece algo parecido com o Scarface. Esse filme e o Chucky tornaram-se modelos para alguns imigrantes. Quando vou a casa do meu pai e vejo figuras do Chucky não consigo processar. Eles [os imigrantes] têm grandes cobertores, chamados “colchas”, com figuras do Al Pacino ou do Scarface, do Chucky e da Virgem Maria. São os três grandes [risos].

Eu consigo perceber como é que o Scarface se tornou num símbolo, mas com o Chucky não consigo.

[Mariano] Eu perguntei ao Fredo, com quem já trabalhei, e ele disse-me: “Porque ele mete medo” [risos]. Também conheço pessoas com tatuagens do Jigsaw. Alguns gangues usam-nos para provocar medo, e tornou-se uma referência a partir daí.

[Jesse] Acho que ele representa um arquétipo anárquico e rebelde, e isso está vinculado à mente criminosa. Ele é um sacaninha maldoso que não se importa com o que faz, e isso pode ser inspirador [risos].

[Mariano] E tem one-liners muito fixes.

Consigo ver uma atitude “não me importo com o que faço” em algumas das vossas músicas. São rítmicas mas não orientadas para o corpo, atmosféricas mas não guiadas pela emoção.

[Jesse] Acho que isso parte da minha vontade de experimentar e brincar quando estou a compor. Certos acordes que tocamos num piano são bastante sugestivos, devido às associações inconscientes que fazemos entre acordes maiores/alegres, acordes menores/tristes… Há certos acordes que te levam imediatamente para lugares familiares. Como artista, tento não utilizar os estados de espíritos para fazer divisões rígidas. Sempre gostei do agridoce, do cinzento, do que habita no meio das associações evidentes. Eu tento utilizar harmonias abertas e móveis, compostas por melodias entrelaçadas, em vez de progressões de acordes. Tento mantê-las simples, com espaço, e torná-las um pouco misteriosas. Evito ser excessivamente cliché ou cheesy, sendo que às vezes procuro ser cheesy de propósito. É com estas condicionantes que crio o mundo sonoro dos Teeth Agency.

Esse mundo sonoro é bastante vivo e específico. Na verdade, músicas como “Wolf Jams”, “You Don’t Like Like Bunniesou “Fazer Folk” pareceram-me a banda sonora de um sonho. Isto foi intencional?

[Jesse] Não directamente intencional, mas provavelmente intencional ao mesmo tempo. Se olhar para os nossos lançamentos anteriores, consigo ver uma espécie de narrativa ecléctica, e quase todos parecem uma sequência de sonhos. Os estados de espírito explorados podem ser muito diferentes uns dos outros, mas encaixam-se para criar uma atmosfera surreal, que parece vinda de um sonho ou pesadelo.

Para You Don’t Have to Live in Pain, o Mariano concebeu um surpreendente livro de 24 páginas, repleto de visuais que também parecem vindos de sonhos ou pesadelos.

[Mariano] Parte deste álbum é resultado de uma pesquisa de seis anos do Jesse, onde eu entrei a meio. Quando nos juntámos para começar a esboçar o álbum em si, tivemos uma ideia visual de base, na qual eu trabalhei em torno.

[Jesse] Independente da imagem da capa [do álbum], que também tem uma história interessante.

[Mariano] A fotografia original é a de um jovem de Winscosin, que apanhava tarântulas no Verão para os cientistas estudarem. Ele tirou uma foto para a imprensa muito fixe. Nós gostámos tanto dela que se tornou num ponto de base para as ideias que estávamos a desenvolver e acabou por se tornar na imagem central do projecto, juntamente com o título. Eu escrevi-o enquanto andava na escola. Costumava escrever títulos de quadros imaginários, e imaginava se se tornariam em quadros fixes [risos]. E tive uma sensação semelhante com a expressão “You don’t have to live in pain”. Lembro-me de pensar que era uma afirmação ambígua.



De facto.

[Mariano] Mas também é algo que uma farmacêutica poderia dizer. Quando o Jesse vem à América, diz-me que a TV é bombardeada com anúncios farmacêuticos. Este título podia vir de um anúncio, mas também de um amigo.

Estas foram a imagem e ideia de base para o trabalho. Para mim, com o tempo, o projecto também se tornou numa pesquisa de trabalhos antigos. Peguei em trabalho que tinha feito há 5, 10, 15 anos e que nunca tinha mostrado a ninguém, mas que reactivei. Adorei reutilizar ideias com 15 anos.

Por falar na representação visual de YDHTLIP, o videoclipe de “Do You Like Bunnies” tem um storyboard e animação muito interessantes. Porque é que é um loop?

[Jesse] Dinheiro, meu amigo [risos]. Não tínhamos dinheiro para fazer um vídeo completo.

Não estava à espera dessa resposta [risos].

[Mariano] Dinheiro e tempo para o orçamento que tínhamos. Nós tínhamos bastantes ideias e queríamos fazer um videoclipe em condições, representado pelo Jesse, mas isto aconteceu no pico da pandemia e fomos obrigados a pensar em alternativas.

Eu sempre quis trabalhar com o Scorpion Dagger. Ele adorou a “Do You Like Bunnies”, mas impuseram-se as nossas condições logísticas… Mesmo se tivéssemos o dinheiro, ele não tinha o tempo. Mas ele queria trabalhar connosco, e disse-nos que podia fazer um minuto de animação. E nós aceitámos [risos].

É um minuto muito criativo. Um dos comentários ao vídeo no YouTube diz: “Eu não percebi que era um loop até ao terceiro loop”. Eu também!

[Mariano] Ouvimos muito isso. Acho que isso acontece porque há um monte de coisas estranhas a acontecer ao mesmo tempo, faz o vídeo parecer mais longo do que é.

Li esta descrição da vossa música: “Lizard lounge jazz and French noir sleaze with sinking ship piano improvisations in underwater organ suits“. Gosto muito das sonoridades jazz de algumas faixas, como na “Wolf Jams”. Contudo, a vossa abordagem ao género é pouco clara.

[Jesse] Eu toco a minha própria forma especial de jazz, que chamo de “jazz do armário”. Não a partilho com ninguém e mantenho-a em segredo. É um pouco como um segredo sujo, um sobre o qual não quero que a minha namorada ou a minha mãe saibam muito [risos]. Sempre adorei jazz e aspirava ser um músico de jazz. Colecciono muitos discos do género e adoro as harmonias. Quando me refiro às minhas tendências do armário, refiro-me a um hobbie semi-profissional. Não faço muitos gigs de jazz, infelizmente. Às vezes pego no Real Book e tento tocar, mas não sai muito bem. Acho que preciso de trabalhar mais um pouco para tirá-lo do armário, e de me tornar um pouco mais corajoso e deixar as pessoas saberem sobre ele [risos].

Não te sentes suficientemente à vontade para o trazer à tona?

[Jesse] Nem é isso. Estar no meio do jazz ou ser um músico de jazz, em certos círculos musicais, é quase como um segredo sujo. Por exemplo, os músicos de rock costumam ficar apreensivos. “Ah, tu tocas jazz?…”, o que é ignorante. Mas eu gosto desse sentido de humor à volta do jazz, e isso é um tema recorrente no meu trabalho. Por exemplo, tive uma fase em que andava fascinado com instrumentos enormes, passava horas a pesquisar vídeos de músicos a tocá-los. Achava-os muito engraçados. Criativamente, eu sobreponha-os em fundos estranhos com free jazz. Mesmo que as tente evitar, não há forma de fugir às minhas tendências jazzísticas. Elas vieram para ficar.

[Mariano] O nosso EP anterior, Piano Man Breeds Love, tem um pouco mais desse elemento.

Esse elemento é bem-vindo. Um dos meus elementos favoritos do álbum foram as tiras de saxofone, como na “Queen of the Night”. Lembrou-me muito Morphine.

[Jesse] É o poder do Adriano Rossetti-Bonell! Ele é incrível, é um dos grandes saxofonistas britânicos da actualidade. Se o ouvires nos Melt Yourself Down percebes o que estou a dizer. Foi uma sorte tê-lo neste álbum.


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