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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 06/06/2025

Há 50 anos atrás, a banda norte-americana despejava rajadas de raiva a partir do palco do CBGB no seu primeiro concerto de sempre.

Talking Heads: quatro nerds no Verão do punk

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Publicado a: 06/06/2025

Donna Lauria e Jodi Valenti foram as primeiras vítimas de David Berkowitz, na madrugada de 29 de Julho de 1976. As duas amigas tinham vindo da discoteca Peachtree e encontravam-se no interior de um Oldsmobile, no circunspecto bairro de Pelham Bay, no Bronx, quando Berkowitz se aproximou. Reparando no homem que caminhava nervosamente na sua direcção, Lauria saiu do automóvel e foi atingida mortalmente. Valenti levou um tiro numa perna e sobreviveu para contar a história que assombrou Nova Iorque nos meses seguintes. A imprensa chamou-lhe Son of Sam.

Algumas horas antes, os Talking Heads tocaram no CBGB, o clube de East Village, em Manhattan, que haveria de se revelar o epicentro do terramoto punk que assolou Nova Iorque na mesma época. Essa foi a segunda apresentação de uma série de quatro com que o então trio de David Byrne, Chris Frantz e Tina Weymouth fechou a agenda desse mês de Julho. Curiosamente — pelo menos tendo em conta os registos disponíveis — o grupo não terá tocado “Psycho Killer” nessas passagens pelo clube de Hilly Kristal. Na noite de 27 de Julho, num concerto no clube My Father’s Place, em Long Island, aquele que se tornaria o primeiro hit do grupo fez parte do alinhamento e é lógico que, num esforço para variar os sets e não tocar sempre o mesmo alinhamento todas as noites, “Psycho Killer” tenha sido deixada de fora do alinhamento da noite seguinte, já no CBGB. Mas é igualmente natural que depois das notícias do ataque de David Berkowitz no Bronx terem vindo a lume na manhã do dia 29 de Julho, o alinhamento dessa noite — e das noites seguintes — tenha reflectido a tensão que atravessava a cidade.

“Psycho Killer” foi incluída no alinhamento do álbum de estreia da banda — Talking Heads: 77, lançado em Setembro de 1977 — e depois de agarrada pelas estações de rádio acabou por merecer edição em single em Dezembro do mesmo ano. Semanas antes do lançamento do álbum de estreia dos Talking Heads — à época já um quarteto, depois de David, Tina e Chris terem recrutado Jerry Harrison, teclista nos Modern Lovers de Jonathan Richman —, David Berkowitz foi finalmente capturado pela polícia no Bairro de Yonkers, quando já tinha atrás de si um rasto de sangue impressionante: tinha abatido seis pessoas e ferido outras sete, numa série de crimes que abalaram a cidade e o mundo. “Psycho Killer” parecia traduzir o momento na perfeição e muita gente — na imprensa, na rádio e obviamente no público — convenceu-se que a canção era uma crónica sobre essas agitadas noites de pânico e calor que varreram Nova Iorque, mas, na verdade, o tema já fazia parte do reportório dos Artistics, grupo que David Byrne e Chris Frantz formaram em 1973, quando ambos eram estudantes na Rhode Island School of Design.



[A escola de artes]

Nas páginas de Love Goes to Buildings on Fire — livro de Will Hermes (Penguin Books, 2011) com título subtraído ao single de estreia dos Talking Heads, lançado em fevereiro de 1977 — traça-se o percurso inicial de David Byrne: “Enquanto crescia em Baltimore, Byrne tocava ukelele. Sabia de cor os 10 versos de “Desolation Row” de Bob Dylan e comprou Let It Be dos Beatles na sua semana de lançamento, em 1970. Foi admitido ao mesmo tempo no Massachusetts Institute of Technology e na Rhode Island School of Design em Providence e escolheu a última, decidindo-se assim pela arte. Ficou um ano na escola, desistiu, viveu uns tempos com uma velha namorada numa comuna no Kentucky chamada A Quinta do Sapo Voador. Regressou à sua cidade natal, andou com uma malta que seguia John Waters, o realizador, para todo o lado, e tornou-se amigo de Edith the Egg Lady do filme de Waters Pink Flamingos. Foi depois para a California e regressou a Providence. Tornou-se amigo de um estudante de cinema da Rhode Island School of Design chamado Gus Van Sant. Fumava erva, tocava violino e começou a fazer performances com alguns amigos. Numa das suas performances cortava-se com uma lâmina e sangrava em palco, como Iggy Pop. Juntou-se a uma banda chamada The Artistics, com uma alcunha que era The Autistics, com que escrevia canções e tocava guitarra. Tocou ‘Psycho Killer’ ao vivo pela primeira vez no Dia dos Namorados, em 1974, num baile de máscaras da escola de design”.

Tina Weymouth teve um percurso muito diferente: era a filha de um oficial de carreira da marinha americana que chegou ao cargo de almirante e teve uma educação católica. A vida militar do pai obrigou-a a viver em diversos locais — de San Diego ao Hawai, da Suíça, Bélgica e França a Washington. Graduou-se na Rhode Island School of Design em 1974, com intenções de se tornar pintora, mas acabaria por se tornar baixista.

Quanto a Chris Frantz, namorado de Tina, a pintura também se encontrava originalmente nos seus planos. Fã de Ringo Starr, que viu inicialmente numa aparição dos Beatles no Ed Sullivan Show, acabou por se tornar baterista dos Artistics, grupo que no reportório das suas parcas apresentações ao vivo incluía versões de temas como “Love and Happiness” de Al Green ou “Tears of a Clown” de Smokey Robinson. Foi depois de se mudar para Nova Iorque com Tina no Outono de 1974 — provavelmente em busca de um lugar na vibrante cena de artes plásticas e galerias que existia na cidade — que Chris viu os Ramones no CBGB — o colectivo de Queens tocou 14 vezes no clube de Hilly Krystal entre Outubro e Dezembro desse ano — facto suficiente para o levar a convencer David Byrne a formar outra banda. Com dificuldades em encontrar um baixista e com Tina ali mesmo à mão de semear, o trio acabou por se cristalizar num loft de Chrystie Street, muito pertinho do CBGB, para onde todos se mudaram em Dezembro de 1974.

[A vida na Grande Maçã]

Os seis meses seguintes foram feitos de intensos ensaios e de discussões em torno do conceito que deveria reger a banda. Uma das primeiras decisões do trio foi sobre a imagem. Ao invés do cabedal e da ganga rasgada, que pareciam fazer parte do uniforme de eleição das bandas que frequentavam o CBGB, Tina, Chris e David preferiam os pullovers e as calças vincadas dos meninos de boas famílias.

A 5 de Junho de 1975, os Talking Heads subiram pela primeira vez ao palco do CBGB, numa noite com cartaz encabeçado pelos Ramones que incluiu igualmente uma apresentação dos Mumps, uma banda liderada pelo semi-célebre Lance Loud, um homossexual que integrou um dos primeiros reality shows americanos, emitido na televisão pública em 1973, o programa An American Family. Depois do libertário período de finais da década de 60, a sexualidade continuava a ser uma questão premente em meados dos anos 70, facto claríssimo logo na primeira canção do primeiro concerto de sempre dos Talking Heads: “The Girls Want to Be With The Girls”, com David Byrne a dar voz à sua incapacidade de se relacionar com o sexo oposto.

Nas páginas de Love Goes To Buildings on Fire, livro que o autor Will Hermes afirma ser sobre cinco anos em Nova Iorque — de 1973 a 1977 — que mudaram a música para sempre, relatam-se as reacções a esta primeira apresentação pública dos Talking Heads que soou, garante o autor, a “uma mistura de Modern Lovers e Television, sem as faíscas de guitarra destes últimos” marcada por “vocais estrangulados”, ”linhas de baixo rudimentares”, e batidas “que lembravam a música soul”. Em 1975, Byrne contava 23 anos e era um ano mais novo do que Tina e Chris. “Ele [David Byrne] não parecia capaz de fazer um gesto nervoso sem que algo na sua cabeça lhe dissesse ‘faz um gesto nervoso agora’”, recordou ao autor Alan Vega, dos Suicide. Lenny Kaye, músico do grupo de Patti Smith, confessou ter gostado das ligações rítmicas à música negra. Quem não teve dúvidas foi Hilly Kristal, que convidou os Talking Heads para tocarem nas três noites seguintes. Até ao final de 1975, Chris, Tina e David tocaram mais 22 datas no CBGB, muitas vezes em conjunto com os Ramones, acumulando ainda mais meia duzia de concertos em locais como o Mother’s e o não menos mítico Max’s Kansas City, onde os Velvet Underground chegaram a gravar.

John Rockwell, do New York Times, documentou para a posteridade um desses concertos, na noite de 14 de Setembro de 1975: “O CBGB, um clube parolo no número 315 de Bowery, perto de Bleecker Street, tem vindo a apresentar jovens bandas nos últimos meses”, começou por escrever Rockwell, referindo que as datas das noites da semana eram reservadas para bandas desconhecidas e que as dos fins-de-semana recebiam “bandas que conseguiram rodear-se de algum culto”. “No passado fim-de-semana, as duas bandas principais foram os Talking Heads e os Shirts. Foram ambas interessantes, mas o ambiente era quase tão interessante como elas”, escrevia o repórter, claramente a entrar em contacto com uma nova “cena”, ainda pouco documentada: “uma mistura entre o radicalismo do Lower East Side e a pompa do Mercer Arts Centre”. “Das duas bandas”, garantia John Rockwell, “a mais provocativa foi a que responde pelo nome de Talking Heads”. “O que é realmente interessante no seu som é o facto de ser desavergonhadamente não-comercial. As influências directas vêm claramente dos Velvet Underground e de mais recentes efusões de ’undergroundismo’ como os Television. As canções (tanto quando pude perceber) parecem lidar em epigramas com a raiva e a alienação e são meio cantadas, meio murmuradas em tom monótono e vacilante”. A crítica prosseguia com uma importante ressalva: “Mas a parte instrumental também é muito diferente – simples, mas bem estruturada e cheia de pequenas mudanças e diferentes planos de cor aural muito inteligentes”. O nome da banda — que de acordo com declarações de Tina Weymouth veio da leitura da TV Guia em que o termo era usado para descrever o “puro conteúdo com zero acção” dos planos aproximados de pessoas a falarem — parecia, de facto, assentar como uma luva e reforçar o lado de ironia conceptual que foi sempre importante no grupo.

Na recta final de 1975, os Talking Heads gravaram algumas demos para apresentarem à CBS, mas acabaria por ser a independente Sire Records a acrescentar o grupo a um catálogo que também incluía os Ramones. O produtor do álbum de estreia do quarteto de Joey Ramone e do primeiro trabalho dos Suicide, Craig Leon, foi determinante na ligação à etiqueta comandada por Seymour Stein. “O CBGB abriu mais ou menos ao mesmo tempo que eu cheguei a Nova Iorque”, relatou Craig Leon à Blitz em 2014. “Eu conheci todas aquelas bandas antes delas começarem a ter contratos e com os Ramones, Talking Heads e Blondie tive mesmo uma responsabilidade direta em tirá-los do CBGB e expô-los a uma audiência maior, juntamente com outras pessoas que trabalhavam nas editoras, claro. Posso dizer que não fiz a cena sozinho, mas fui certamente parte do circuito underground da Nova Iorque dos anos 70 que não se limitava ao CBGB. Havia outros espaços com coisas a acontecer”, explicou-nos o produtor.

[O contrato discográfico]

“Foi em Junho de 1975 que convenci os meus chefes a irem ao CBGB para ver os Ramones e nessa noite os Talking Heads também subiram ao palco. Acabei por redigir uma nota para os meus patrões em que dizia que devíamos assinar aqueles grupos e não nos limitarmos a licenciar bandas inglesas para o nosso catálogo. Dessa forma”, explicou Craig Leon, “podíamos fazer discos baratos e vende-los de volta aos ingleses que andavam muito excitados com aquele tipo de bandas”. Os Talking Heads — que Leon acabou por não produzir, cabendo esse papel ao primo de Jon Bon Jovi, o produtor Tony Bongiovi — acabaram recrutados por Stein por influência directa da recomendação de Craig Leon: “Também era um grupo de exceção”, garantiu-nos, “nesse tempo todas as bandas pareciam ter qualquer coisa de especial”.

Num vídeo disponível no YouTube, com imagens que documentam um concerto da banda na segunda metade de 1975, Seymour Stein é entrevistado a propósito da performance dos Talking Heads: “Estava à porta do CBGB com o Lenny Kaye do grupo da Patti Smith quando comecei a ouvir música. Fui sendo levado cada vez mais para dentro, até que fui agararrado”.

Com as demos gravadas e um contrato assegurado, Tina, Chris e David tomaram a decisão de recrutar um quarto elemento que lhes permitisse ter um som mais cheio. O single “Love Goes To Buildings on Fire” foi editado em Fevereiro de 1977, pouco mais de três meses após a assinatura do contrato, e deixou claro que um quarto elemento seria uma adição importante para o som do grupo. Por sugestão de um amigo, Tina ligou a Jerry Harrison, membro dos então recentemente extintos Modern Lovers (influente grupo de Jonathan Richman que haveria de regressar ao activo, inspirado pela energia da cena punk e new wave) que foi assistir a um concerto dos Talking Heads em Boston. Ensaios posteriores no loft de Nova Iorque cimentaram a decisão de alargar a banda para um quarteto e parte do avanço de 25 mil dólares da Sire acabou por financiar a mudança para Nova Iorque do teclista que também tocava guitarra. Byrne também aproveitou a folga na conta bancária para comprar uma televisão a cores e assim “poder ser um participante na cultura dominante”.

Gravado em várias sessões entre o final de 1976 e meados de 1977, o álbum de estreia dos Talking Heads, produzido por Tony Bongiovi nos estúdios Sundragon de Nova Iorque, seria lançado em 16 de Setembro de 1977, pouco mais de um mês após a captura de David Berkowitz. “Era um disco pop. Mais ou menos…”, explica Will Hermes. A Rolling Stone, que deu 5 estrelas à estreia do agora quarteto, descreveu Talking Heads: 77 como um “triunfo absoluto”: “Vestem-se como um quarteto de jovens republicanos, tocam música educadamente tranquila, cantam canções sobre funcionários públicos, pais e a universidade — os Talking Heads não são nada punks. Em vez disso, eles são a grande esperança da Ivy League para a música pop. Não me consigo lembrar da última vez que ouvi um álbum tão vital e tão imaginativamente musical”, garantia Stephen Demorest em Novembro de 1977.

De facto, a estreia dos Talking Heads foi feita contra a corrente: logo desde os acordes de abertura de “Uh-Oh Love Comes to Town” (a primeira das 11 faixas de que se faz o trabalho de estreia e o segundo single editado pelo grupo) que se percebia que mais do que na textura abrasiva do punk, esta banda estava interessada em explorar a mais funda identidade pop americana, incorporando a memória da Motown, a vivacidade do funk, e o lado mais desafiante da tradição eléctrica de Nova Iorque para assim se erguer uma sonoridade própria, mais desalinhada do que propriamente em sintonia com o momento. Normalmente é assim que se garante o futuro. Tal como “Love Goes To Buildings on Fire”, “Uh-Oh Love Comes To Town” (dois singles seguidos com a palavra “love” no título numa era de expressão de raiva e ódio…) não causou qualquer espécie de impacto. Mas com Son of Sam a dominar os cabeçalhos dos jornais diários, “Psycho Killer” funcionou como um prenúncio daquilo que os Talking Heads nunca mais deixariam de fazer ao longo da carreira que só interromperiam em 1991: tocar fundo no nervo da América tradicional expondo, através da ironia, um país vergado a cabeças falantes na televisão, inundado de centros comerciais e pregadores de espiritualidade barata. No lado B de “Psycho Killer” escondia-se uma versão alternativa desse primeiro hit dos Talking Heads — que conseguiu contra todas as previsões furar o Top 100 da Billboard — apoiada no violoncelo de Arthur Russell, outro visionário da Grande Maçã que chegou a ser ponderado para o lugar que Jerry Harrison eventualmente conquistou. Essa dualidade — um lado pop e muito comercial, outro mais aventureiro e mais experimental — acabou igualmente por ser uma espécie de molde para a carreira de um grupo que revelou ser dos mais influentes da sua geração. Ao ouvir o grupo a interpretar “Psycho Killer” no programa de TV Bottom Line, na noite de 27 de Outubro de 1977, Roy Trakin escreveu na Soho Weekly sobre os Talking Heads e não teve dúvidas: para ele, os anos 80 tinham acabado de chegar.



Este artigo do arquivo de Rui Miguel Abreu foi originalmente publicado na Blitz.

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