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Fotografia: Guillermo Calvin
Publicado a: 24/04/2023

Soul de mil e uma cores.

Tagua Tagua sobre segundo álbum: “Ele passou a se chamar Tanto porque era muito”

Fotografia: Guillermo Calvin
Publicado a: 24/04/2023

Um lago em San Vicente de Tagua Tagua, no Chile, serviu de inspiração para que Felipe Puperi decidisse de vez iniciar sua caminhada solo depois de alguns anos à frente da banda de rock Wannabe Jalva. Mais do que seguir sozinho, ele queria mostrar a  identidade própria, que construiu a partir de suas referências, e também compor em português, algo que não fazia antes.

Da sua casa em São Paulo, numa tarde quente no final do verão brasileiro, horas antes de Tanto chegar ao mundo pelas plataformas digitais, Felipe revela via Zoom alguns detalhes do segundo álbum dele, que bebe da fonte do soul e r&b com algumas pitadas de diversos elementos da música brasileira. Apesar de ser lançado apenas em 2023, o projeto estava pronto desde o começo de 2022.

Nesta conversa, Tagua Tagua fala sobre seus discos, processo de produção, o desafio de escrever e cantar em português, e como se conecta com o público do Brasil e do mundo. “Acho que a música tem um lugar de conexão que é esse de transportar para uma onda, não é só o que a letra fala”, diz. “É conseguir usar a voz como um recurso, como um instrumento. Como na minha música tem essa coisa mais etérea, da voz ser um  pouco mais arrastada, ela acaba sendo mais um instrumento ali”.



Os seus dois discos são bem consistentes, mas em Tanto você partiu um pouco mais para o soul e r&b, e colocou algumas pitadas do tempero brasileiro. Como essa construção foi arquitetada?

Cara, comparando os dois, eu acho que o anterior tinha algumas coisas de soul de uma forma diferente, não com essa pegada do r&b que você citou. Então, várias vezes tem uma levada de soul, de bateria, mas ao mesmo tempo tem respiro, tem espaço, não tem tantos elementos… Por exemplo, Inteiro Metade tem muitas coisas de sopro. Eu já abro o disco com uma levada super soul, sopros fazendo uma coisa tipo Tim Maia Racional… Neste não, porque eu quis que ele soasse mais linear, mais como uma coisa só que te leva do início ao final e você fica dentro dele sem precisar ficar alternando de moods. Não te leva para um lugar, de repente, introspectivo. Fica mais nesta linearidade. E eu também acho que ele traz naturalmente uma coisa mais sensual, pelas músicas serem um pouco mais lentas, mais para trás. E acho que ele acabou saindo de uma forma de valorizar as próprias canções, de uma certa maneira. Aí eu acho que tem essa coisa das levadas serem mais leves e deixar ele mais sexy, de uma certa forma. Só que em contrapartida, como as melodias são cantadas em português, traz esse tempero brasileiro, porque quebra os ritmos. Às vezes, você vai ouvir e não tem nenhum ritmo que a gente vê no Brasil, que são 6/8, indo para um afrobeat, que acho que importamos muito aqui… então, eu tinha muito isso nos meus trabalhos anteriores de trazer essa coisa da percussão muito forte e em Tanto praticamente não tem isso. As percussões estão bem mais dentro do soul mesmo, como uma pandeirola, um shake, umas coisas bem detalhadas. Por isso, acho que o que trouxe a musicalidade foram as melodias, porque o fluxo delas quebra completamente aquele quadrado que tem no som. Eu gosto dessa brincadeira de conseguir deixar a coisa um pouco mais quadrada, mais retinha, mas com a melodia swingando tudo.

Concordo também que ele está bem reto, você ouve de ponta a ponta e consegue acompanhar e viajar um pouco. E quando acaba, você coloca de novo. Tem essa sensualidade e o suingue, inclusive nas mais tranquilas. 

Tem muito. Acho também que é nessa coisa das guitarras… tem algumas que vão levando a música, como se fosse de uma forma percussiva. E isso ajuda a dar essas quebradinhas no tempo.

E quando foi que aconteceu essa virada de chave do Felipe Puperi para o Tagua Tagua?

Isso começou ainda na banda anterior que eu fazia parte, a Wannabe Jalva, que é uma banda de Porto Alegre, sul do Brasil. Fiquei um bom tempo nesse projeto, fizemos várias coisas, só que a gente tinha umas coisas em compor em inglês. E eu me lembro que começou a florescer uma coisa em mim de que precisava cantar em português. Aí, tinha uma canção para fazer com a Red Bull em parceria com o Curumim e uma das ideias era que a música fosse em português. Como coube a mim compor a música, falei: esse é o meu momento. Aquilo foi um gatilho para mim. Ativou um monte de coisas na minha cabeça, aí eu pensei em fazer um projeto novo para começar a explorar outras coisas e mergulhei de cabeça. Antes disso, eu fiz uma viagem no final de 2016 que foi bem marcante pra mim. Fui com minha mãe para o interior do Chile. Eu nem sabia onde estava direito, porque era uma cidade pequena, e aí uma pessoa disse que a gente estava em San Vicente de Tagua Tagua, e Tagua Tagua era o nome do lago que cercava todo o lugar. Aquela viagem já estava sendo super marcante pra mim porque eu viajei já com essas ideias de fazer músicas em português. E aí, voltei de lá com aquele lago e todas as coisas na cabeça. Foi aí que virou Tagua Tagua. Mas demorei bastante pra lançar músicas. Depois que lancei os primeiros singles em 2018, a chave começou a virar mesmo porque fui entendendo aos poucos o que era esse projeto, o que eu queria mostrar musicalmente ou como me expressar na música. Começou nessa coisa mais ziriguidum, passou por vários lugares e até chegar onde a gente está aqui agora. 

O curioso é que o tipo de som que você fazia na banda é totalmente diferente, né!?

Totalmente diferente, porque tinha uma vertente mais de rock. Se fosse pra ver alguma semelhança, talvez era uma psicodelia que tinha em algumas faixas, que eu acho que trouxe comigo no projeto. 

Essa foi uma uma forma de desafiar a si mesmo?

Antes era tudo em inglês e depois o que aconteceu foi que virou uma chave na minha cabeça. As coisas vinham antes para mim em inglês, mas não era uma coisa que eu ficava confortável, porque eu queria comunicar na minha língua. Tudo começou a mudar quando eu comecei a cantar em português, sabe!? Começou a acontecer o Tagua Tagua, eu fazendo os shows e a galera está lá cantando em peso todas as letras. Tem uma conexão que acontece nesse lugar, ainda mais eu morando no Brasil. Então, tem essa conexão local das pessoas cantarem e eu me sentir à vontade de expressar coisas na minha língua… acho que encontrei o lugar certo de conseguir trazer influências que não eram só do Brasil sonoramente, mas somar com uma coisa cantada em português. Foi nesse encontro que acho que é o que me atrai.

Esse também foi o diferencial para abrir portas no exterior? Porque a grande maioria dos artistas brasileiros fala que o português é uma língua difícil, por isso rejeitada, mas conversando com vários outros vejo que a realidade é outra.

Na real, isso foi uma grande surpresa pra mim porque desde que eu comecei o projeto aconteceu muita coisa fora do Brasil. Tudo foi meio que surgindo naturalmente, não fiz muito esforço para isso acontecer… aí, a música caiu num lugar, depois fui chamado pra tocar num festival nos EUA, e quando vi já estava com parceiros de fora, agência de booking e gente trabalhando. E eu fui percebendo que essa coisa da língua era justamente o oposto disso, sabe!? O fato de eu cantar em português não era uma barreira e sim um diferencial, porque tem um nicho de mercado com pessoas bastante interessadas em explorar essa coisa diferente, que não é só a língua anglo-saxonica que domina tudo. É interessante que nos EUA você vê banda da Turquia, que ganha um espaço legal, bandas do Japão… tem esse mercado, tem espaço… Toquei no SXSW ano passado (2022) em Austin, no Texas, e conheci uma banda lá que adorei, chamada Teke Teke (do Japão). Cara, essa banda é muito alto astral. Tem muita coisa legal espalhada por aí e a aceitação era grande, sabe, tinha uma galera lá só para ver a banda, que também ia fazer turnê pelos EUA. Acho que é um mercado grande, e teve muitos artistas independentes que também vieram para o Brasil nos últimos anos que romperam as barreiras para conseguir o seu espaço. Eu sempre fui muito bem recebido fora, sempre tive muita oportunidade. Então, eu encaro o mercado fora do Brasil da mesma forma que encaro aqui dentro. Não faço distinção para o trabalho… só que também me sinto muito confortável por perceber que não preciso estar cantando em inglês para que isso aconteça. Inclusive, eu acho que é o oposto, acho que traz mais atenção.

Cai também naquela questão de desmistificar o Brasil, de não acharem que… obviamente não acham… que só temos samba e bossa nova. Você canta em português uma música que é global…

Cara, eu acho bem interessante isso, na verdade, porque eu ainda vejo uns projetos que são vistos e recebidos lá fora porque estão dentro desse padrão. Eu acho legal conseguir quebrar essa barreira de outra forma, porque você está fazendo um som igual as outras pessoas estão fazendo… estou pensando pra frente, não estou preso no tempo fazendo as coisas dos anos 1960. Eu posso trazer algumas referências, mas eu estou pensando em colocar outras coisas também. Quero fazer algo contemporâneo.

A conexão com o público lá fora acontece de que forma?

Isso é muito louco… varia um pouco de país para país. Os comportamentos são bem diferentes, mas tem esse negócio que me chamou muita atenção quando a gente foi em 2019 no Brasil Summerfest, em Nova York. Lá,  a gente abriu shows para a The Growlers. Os caras já tinham o público deles, coisa de mil pessoas por show, sold out, e foi impressionante pra mim. Eu estava cantando em português, tocando as músicas e a galera enlouquecendo na platéia como se estivesse entendendo tudo. E depois conversando com as pessoas saquei muito isso… É uma coisa bem parecida com a nossa onda de quando era mais novo e não sabia falar inglês, não entendia nada. A música está tocando no rádio e você está ali curtindo a vibe, sabe!? Mas acho que a língua portuguesa, talvez possibilite isso. Não sei se é toda língua que possibilita isso, tá ligado!? Acho que no espanhol acontece isso também, porque no espanhol eu sinto muito que dá pra ir pela onda da melodia. Acho que a música tem um lugar de conexão que é esse de transportar para uma onda, não é só o que a letra fala. É conseguir usar a voz como um recurso, como um instrumento. Como na minha música tem essa coisa mais etérea, da voz ser um  pouco mais arrastada, ela acaba sendo mais um instrumento ali.

E como foi o processo de construção do disco?

Cara, eu comecei a fazer ele no primeiro mês da pandemia, em 2020. Eu não tinha nem lançado o meu primeiro ainda. Como estava trancado em casa, comecei a fazer minha primeira música. Nem imaginava para onde aquilo iria me levar, comecei fazer esse disco em 2021. Foi aos poucos, às vezes soltava tudo (desistia), daqui a pouco aparecia uma ideia e eu voltava. Aí, no meio do ano, eu falei: agora vou fazer isso valendo porque isso precisa se tornar disco. Acelerei, comecei a produzir bem mais as músicas, gravar várias coisas… aí fui para o interior de São Paulo (perto de São Francisco Xavier), no meio do mato, e fiquei lá numa casinha pequena de madeira com mais dois músicos, e comecei gravar com eles várias ideias que eu já tinha prontas. Gravamos a bateria lá, umas guitarras e baixo… esse processo foi bem massa, porque fizemos uma imersão de uns 7-8 dias. Nesse período, fomos criando e lapidando coisas que estavam mais ou menos prontas. As influências são bem parecidas com as que tive antes, mas acho que fui bem mais pra esse lado do r&b, sabe!? Acho também que eu vinha ouvindo mais essas coisas… gosto muito de D’Angelo, por exemplo, e era algo que eu não tinha trazido ainda, essas levadas mais pra trás, abertura de vozes… Então, já tinha minhas referências, que eram as que me acompanham sempre, de soul mesmo, que é Marvin Gaye, Shuggie Ottis, Al Green… sons que amo ouvir e daqui do Brasil tem Tim Maia, Cassiano, Hyldon… gosto mesmo dessa vertente mais soul do Brasil dos anos 1970. Tinha tudo isso, mescladas com as coisas mais novas e modernas que eu vinha ouvindo. Estava curtindo muito Daniel Caesar, Steve Lacey… Não são referências diretas pra mim, mas tudo vai se somando para se tornar base para eu encontrar um som só meu.

Casa muito bem com essa galera que você falou, como Steve Lacey, Thundercat, Toro y Moi… Só que como falei, traz aquela identidade brasileira, que na minha visão coloca o tempero…

É o que muda né!? (risadas) Eu procuro muito isso… o meu maior pânico é parecer igual a alguma coisa (risadas).

E as composições, foram surgindo naturalmente ou pensadas para se conectarem umas às outras?

Ao longo do tempo eu fui entendendo o que elas eram… foi tudo aos poucos. Não foi em 1 ou 2 meses que eu resolvi ele. Eu dei tempo para ele respirar. Fiz as primeiras músicas e comecei a notar que elas falavam a mesma temática, que eram de encontro. Então, o disco fala um pouco sobre se apaixonar por se apaixonar. Não é sobre se apaixonar, é sobre gostar de estar neste estado. Então, ele é meio isso… como se você tivesse com uma química no seu corpo e flutuando nesses momentos. Por isso, são vários encontros. Imagino encontros, vejo esses encontros acontecerem em outras pessoas, em lugares… quando eu me dei conta de que eu estava monotemático falando disso, aí que acho que ele virou o Tanto, sabe!? Ele passou a se chamar Tanto porque era muito. Então, volta e meia surgia uma música assim. Algumas surgiam no violão, quando vejo a letra vinha inteira e eu tinha que entender como iria fazer o arranjo para não perder a vibe dela. E tinha outras que eu estava tocando aqui e já ia fazendo o beat, tocando um piano elétrico, a melodia vai vindo, depois a letra… São diferentes processos de composição, mas todos eles acabaram falando a mesma coisa.

Não foi nada pensado para fazer todas se complementarem.

Exatamente! Não foi nada assim… eu até tenho vontade, quem sabe um dia eu vou conseguir. Quero fazer um processo parecido com o que fiz nesse, de pegar um lugar e ficar um mês para sair de lá com um disco pronto, e depois só chamar a banda para gravar as melodias ao vivo. É desafiador para mim porque eu sou muito o produtor solo. Então, eu sou o cara que toca tudo e fica gravando as coisas, pirando e fritando a mente. Por isso, é difícil pra eu desapegar e dizer: agora vou fazer um disco ao vivo aqui.

Compor segue esse mesmo esquema?

É… mais ou menos. Eu vou me cobrar em algum momento… Estou sempre compondo meio jogado. Por exemplo, agora, esse é um exemplo prático, eu lancei o disco, mas já tive a ideia de uma música e comecei a gravar… e tem uma outra música aqui que pensei em mandar para um artista lá de fora que eu curto, que talvez eu queira fazer uma colaboração com ele e queria mostrar a música pra ele. Eu não sei o que vou fazer com ela, mas estou compondo, mas quando tem o momento que eu percebo que aquilo tá virando alguma coisa, que é um disco, aí eu tenho esse planejamento de produção, tipo: eu já tenho umas 3 – 4 ideias e elas estão conversando entre si, aí crio um universo que pode se tornar um álbum. Tem esse momento de virada de chave, mas a coisa é meio solta na questão criativa. Vou deixando acontecer.

Isso mostra que você é mais adepto aos álbuns do que dos singles…

Sim! Até porque antes dos discos, eu tinha lançado dois EPs. Então, é possível observar que sou o cara que não quer lançar só uma música… Tinha lançado esse dois EPs, mas alguns singles eu lancei meio que por necessidade. Assim, um deles saiu no jogo FIFA 2019… Cara, eu curto essa ideia de compor e sempre penso no vinil. Então, quando começo a montar a tracklist do álbum, eu já começo a pensar no vinil de quando a pessoa virar para o lado B qual é a primeira música que vai ouvir… então, acho que sou o cara velha guarda. 

Isso também faz com que a música não seja descartável, como tem sido na maioria das vezes…

Claro, ela vai ter um tempo de vida bem maior. No fim das contas, você vai pegar a obra do artista e vai ser mais significativa com o álbum do que o single que ele lançou solto.


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