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Fotografia: Gil Mac
Publicado a: 21/10/2020

A espuma dos dias.

sussurro: “Há sempre uma vontade em mim de refazer”

Fotografia: Gil Mac
Publicado a: 21/10/2020

No princípio deste mês, a 1980 lançou o EP de estreia de sussurro, produtor sediado em Coimbra. Depois da edição em cassete de Maze, trabalho do duo portuense Blanc Motif, a editora aposta em dias normais, dia sufocante em formato digital.

Os títulos sugestivos orientam-nos — sem coordenadas muito objectivas – para um trabalho que não é feito de uma exploração emocional à superfície. A posição geográfica tem certamente uma influência no desenhar de certas paisagens que tanto dão para situar numa sala escura como numa manhã chuvosa de cortinados abertos e janelas fechadas. Porque a existência humana é feita de leveza e paz, mas também de desassossego e desnorte, também a música reflecte essa viagem – ou como sussurro nos diria, esse “paraíso dos estúpidos”.

Assim, com as mãos ao computador, cria loops de sintetizadores e pads, que melancolicamente nos convidam a sobrevoar drum machines mais sufocantes, lembrando-nos que a dor também se dança. dias normais, dia sufocante tem apenas a ganhar com a dificuldade que temos em categorizá-lo. “Dizem que é techno, eu acredito”, conta-nos, mas é electrónica, é leftfield, talvez seja também IDM: vive numa mistura electrónica difícil de situar.

Felizmente, em conversa com o produtor, descobrimos que este EP é apenas o princípio do projecto de um artista que já tem colaborações com Sukitoa o Namau e Angélica Salvi a caminho. Elucidou-nos ainda sobre a sua produção, a ligação à 1980 e a dimensão emocional que sustenta dias normais, dia sufocante.



Como se deu a tua relação com a 1980? Qual foi a influência da editora na criação deste trabalho?

Houve um takeover da 1980 na Rádio Baixa e nesse dia acabei por conhecer o Frederico Mendes. Tínhamos amigos comuns e o Afonso Macedo, que é possivelmente a pessoa mais próxima do trabalho que tenho vindo a desenvolver, acabou por falar-lhe de mim. Desde aí, fomos falando e houve sempre da parte dele [uma] certa atenção e entusiasmo quanto ao que vinha fazendo.

Esta é uma estreia muito bem conseguida. Fala-nos antes de mais um pouco sobre o teu background. Como chegaste a este dias normais, dia sufocante?

Este EP surge de um conjunto de emoções. É difícil falar sobre isso. São restos, pedaços. Também porque nunca sabemos bem a que memórias se agarram na verdade, podemos dizer “isto é aquilo”, ou “isto refere-se àquilo”. Mas aí alguma coisa cessa. É sempre uma relação estranha. Do que poderei falar é desse tempo, do contexto em que surgem. E aí é um contexto de mudança.

O que está por trás deste EP ao nível conceptual? O dia sufocante faz parte dos dias normais ou são opostos?

Estão ligados. Completamente. É porque há essa normalidade que vêm os dias mais nublosos, mas isto não é um conceito. Não há relação. Ou antes, o nome é neste sentido irrelevante, apraz-me mais as relações que podem tecer-se aí. Há dois momentos, eu diria. Tem que ver sobretudo com a efemeridade das coisas, os dias da quotidianidade, das coisas simples, e depois aqueles dias que preferíamos estar num outro lugar e não estamos, resistimos. As duas primeiras faixas aparecem de alguma forma nesses momentos terrenos, de certa plenitude, enquanto que as duas últimas ligam-se a momentos tumultuosos, talvez de existência.

Mesmo os títulos são bastante visuais e geográficos. A geografia, ou a localização e a sua paisagem, são importantes no teu processo criativo?

É uma boa pergunta. Quase inerente, indissociável, e de facto são. Gostamos sempre de ver coisas mesmo onde elas não existem, parece-me. E as imagens aparecem nesses momentos ásperos e efémeros, dizem que estamos sem norte; sim, de um certo desnorte onde o todo, a completude, se desvanece. Dar um nome é importante, dá-lhe quase que um mesmo estatuto, faz parte entre outros, por outro lado, é quase irrelevante. Porquê o nome? Eu busco por aquelas primeiras impressões que nos assolam e não sabemos bem porquê: elas existem. Porque no início são sons, ruídos, fragmentos, qualquer coisa a lascar ou qualquer coisa a brotar, tudo isto sem um significado a não ser aquele que lhe é o mais próprio e que é já alguma coisa, quase nada, e depois algo se lhe agarra: o nome. E deixa de ser para nós para passar a ser entre os demais. A importância dos títulos reside aí.

Ainda sobre o processo criativo: quanto da produção deste EP são máquinas e quanto são instrumentos digitais?

Maioritariamente digitais. Uso um teclado e uma drum machine. Vejo todo o processo como um jogo; os dados são lançados, estão ali, e depois há o trabalho de os organizar e de criar relações entre as partes.

A pista de dança é inevitavelmente um meio para atingir o fim deste EP, mas este é um trabalho esparso o suficiente para poder ser consumido no carro ou nuns headphones, atentando a todos os pormenores que se derramam pelas drum machines. Como posicionas, categorizas ou vês este lançamento, estilística, sónica ou temporalmente, até?

Não sei. Não é isto para atingir aquilo. Há todo um caminho que se percorre, por vezes insistimos e queremos a consciência e no fundo ela está sempre presente; prende-se a tudo o que experienciamos. Mas penso que o que invariavelmente me intriga é essa coisa da ausência, de não sabermos onde começa e onde acaba e por que acaba. Na verdade, não tenho propriamente uma posição, vejo este lançamento como a concretização de um momento ainda que fugaz e efémero. Dizem que é techno, eu acredito.

És muito individualista ou reservado na tua forma de produzir?

Nem um nem outro. Todo o trabalho é sempre um trabalho conjunto com várias nuances. Claro que no momento de produzir sou eu e aquelas estranhas coisas sobre a mesa, mas, antes disso, há todo um conjunto de impressões do dia-a-dia. Há sempre uma relação estranha nisto que é estar diante dos instrumentos. Eles espalham-se na mesa e ali permanecem, quase que intocáveis. E eu questiono-me a cada momento, o que estou aqui a fazer? Que coisas são estas? Como diante da dificuldade de olhar uma folha em branco, recusamos e recuamos, mas algo em nós nos impele a fazer e eu não sei bem o que é. Há uma procura nisto que desconheço. As experiências são muitas e quase irretratáveis e irrepresentáveis. Tento levar estes gestos descontraidamente, afastando a consciência, mas há sempre uma vontade em mim de refazer. Não para alterar necessariamente, mas uma vontade de profundidade; ir à coisa mesma. E que coisa? Eu não sei. E tudo isto pressupõe uma alteração. Mas a alteração que vem não é a primeira.

O que podemos esperar para os próximos projectos enquanto sussurro? Que formatos, colaborações ou ideias tens já em mente para trabalhar?

Eu próprio não sei bem o que esperar, musicalmente falando. É sempre alguma coisa em que se entra e se sai transformado. É um processo. Neste momento estou a colaborar com a Sukitoa o Namau e a Angélica Salvi para o projeto PandemoniumTM do Gil Mac, onde haverá uma edição em formato físico.


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