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Fotografia: André Ferreiro (World Academy)
Publicado a: 27/11/2022

Os bravos e os espíritos.

Super Bock em Stock’22 – Dia 2: atribuir caras à imaterialidade

Fotografia: André Ferreiro (World Academy)
Publicado a: 27/11/2022

O problema do excesso de oferta neste festival que há alguns anos acontece na Avenida da Liberdade é real. No entanto, e como em tantas outras coisas na vida, a preparação é chave: para o segundo dia, mais do que no primeiro, existiam linhas claras e diferentes para se seguir, mesmo que fosse quase impossível ver concertos completos. Mas tenta-se.

Quando chegámos para dar início a mais uma jornada na edição deste ano do Super Bock em Stock, e antes de irmos para a apresentação de Papillon no Capitólio, houve tempo para uma curta passagem pelo Cinema São Jorge, onde estava Kady, acompanhada por Alícia Rosa e Nelly Cruz, a mostrar esse fogo que, ainda recentemente, alimentou seis canções num EP intitulado Lumenara. Enquanto por lá andámos, a cantora atacou, com elegância, temas desse projecto como “Nha Kabelu”, com participação especial de Nayela, mas também “Diz Só”, faixa que levou ao Festival da Canção em 2020. Destaque também para o entrosamento do trio em palco e o formato móvel que possibilitou diferentes momentos a enaltecer as vozes ou a dança.

Para o autor de Jony Driver, o cenário, em termos de moldura humana, era completamente diferente daquele que encontrámos na noite anterior, à mesma hora e no mesmo lugar, com They Hate Change. O novo álbum, o sucessor de Deepak Looper (2018), saiu esta semana e o ambiente era, naturalmente, de grande expectativa para ouvir algumas das novas músicas ao vivo, esperando-se, no entanto, que não fosse uma apresentação formal do disco, que tem mais de uma hora de duração.

Com o guitarrista e baixista Diogo Silva e o baterista Hayden Nóbrega a servirem com pujança (e vertigem rock no início), Rui Pereira não se fez rogado e foi logo directo ao que interessava, apresentando “Metamorfose Fase I”, “.Y” e “Corre. da Morte” com a elasticidade perfomática que lhe reconhecemos — há poucos rappers da sua geração neste nível na hora de dar concertos.

O seu longa-duração de estreia a solo marcou a agenda do ano em que saiu, e dos que se seguiram, no panorama nacional, colocando desde logo a fasquia alta para o sempre complicado segundo álbum. Pelas primeiras audições, e com seis anos de separação entre trabalhos, pode-se dizer que a ambição do rapper da Sente Isto não caiu num vazio, encontrando sustento na grande narrativa que embala o todo e nas pequenas narrativas que cada música contém. Jony Driver deverá obrigar algumas pessoas a repensar as suas listas de melhores do ano e a actuação de ontem confirma que muita das faixas terão entrada directa para os alinhamentos. Um catálogo sólido dá nisto.

Passou-se com intensidade por “Coisa Leve”, “FAM”, tema de Slow J em que Papillon participa, “Camadas”, “00 Fala Bonito”, “1:AM”, “Impasse”, “Metamorfose, pt.2”, “Iminente”, “Sweet Spot” (com Murta na plateia a assistir) e “Impec”, navegando-se sem grandes tribulações por cadências diferentes no ritmo que vão do afro ao trap, normalmente com uma enorme sensibilidade pop, e pelo meio ainda se voltou a Jony Driver para “Desperta.” e “Cria.”. Mais uma vez, nota máxima para a ginástica verbal do MC, que, mesmo com tantos balanços diferentes, não se atrapalha; a escola hip hop, uma que não esquece e que faz questão de enaltecer — tal como uma das suas referências, Valete, que por lá esteve –, a formar o melhor da música portuguesa da actualidade. Papi sabe o que vale e não o esconde: “Sou abençoado pelo pai/ No que toca a barras, no que toca a flow/ Na força do trabalho, não é porque calhou/ E pa’ quem falou mal, o tempo lhe calou”. Não diríamos melhor.



Ainda sem a completa noção do calibre da voz da mulher que nos esperava no Cinema São Jorge, a chegada a uma sala praticamente lotada dava-nos um bom indicador daqueles que seriam os dotes performativos da Danielle Ponder. E se as versões de estúdio das suas canções facilmente nos remetem para universos de Charles Bradley, Michael Kiwanuka ou até Nina Simone, num contexto em que o hip hop e o r&b também têm peso no som que apresenta, ao vivo a coisa assume contornos ainda mais grandiosos, com o rock a ter uma grande influência na componente do espectáculo e a dar-nos vislumbres de uma energia semelhante à de Tina Turner.

As cinco ou seis canções que escutámos deixaram-nos mais do que rendidos e, acima de tudo, incrédulos por só descobrirmos o seu nome através de um festival de música. Talvez seja apenas uma questão geracional, já que Ponder é um produto fora do seu tempo, tanto pela linguagem ancestral do gospel com que a sua alma se expressa como pelos 40 anos de idade que apresenta numa fase bastante inicial da sua carreira. Na primeira vez em Lisboa, a artista foi intercalando as canções do seu recentemente editado Some Of Us Are Brave com mensagens de esperança, dando o seu próprio exemplo para nos explicar de que nunca é demasiado tarde para perseguir um sonho — há um ano, antes de andar a percorrer o mundo em concertos, a americana estava a trabalhar enquanto advogada.

Cantou uma música sobre cogumelos alucinogénicos, pediu que contássemos a um amigo sobre a sua actuação — é mais importante do que comprar um CD ou merchandise, explicou — e criou uma grande dinâmica com o público já mesmo na recta final, que lhe valeu uma plateia inteira de pé a aplaudir. Antes de se despedir, entregou-nos a sua própria versão de “Creep”, êxito maior dos Radiohead, acompanhada apenas pelo piano na maior parte do tema, com a bateria e a guitarra a causarem estragos apenas no fim. À saída, as opiniões eram unânimes: a voz de Danielle Ponder é uma coisa arrebatadora e ninguém percebe muito bem como nunca se deu com ela antes de ver o seu nome no alinhamento deste ano do Super Bock em Stock.



Para muitos, a porta de entrada para a música de Obongjayar até pode ter sido a fantástica “Point and Kill” de Little Simz, mas seria uma pena ficar-se por aí. No seu concerto no Capitólio, a garantia de que existe muito de bom para se descobrir na sua discografia foi dada pelo próprio artista (que nasceu e foi criado na Nigéria, tendo-se mudado para o Reino Unido quando já estava a entrar na idade adulta).

De voz áspera e altamente personalizada, o artista abordou principalmente o seu mais recente álbum, Some Nights I Dream of Doors, mas tudo pareceu uma grande e unificada sessão de busca por uma qualquer espiritualidade com o afrobeat e a soul enquanto formas de chegar a esse lugar imaterial. “Isto não é uma performance, é uma dança espiritual”, afirmou quando ainda estávamos a entrar no embalo, e depois de se ter de ultrapassar alguns problemas técnicos.

Apoiado por quatro instrumentistas — o baterista destacou-se dos demais pelo groove e a assertividade –, o músico em missão xamânica foi de “Try” e “Dreaming in Transit” (do projecto Which Way is Forward?) a “Parasite”, esta última a merecer um momento a capella em que exigiu silêncio à sala para se mandar à dor de cabeça. Não é para todos, nem tem de ser, mas Obongjayar não se coíbe de fazê-lo — e isso dá-lhe uma nuance diferenciada e invulgar. Um performer de corpo inteiro que tem a Nigéria de Fela Kuti e Burna Boy a correr-lhe nas veias mas também a plural cena britânica que vai de Nubya Garcia a James Blake. Que não demore a regressar cá (e, idealmente, fora do circuito de festivais).



A procura por nomes menos óbvios que pudessem merecer a nossa atenção durante este fim-de-semana recaiu, também, em Crystal Murray. E não foi nada difícil para que a artista parisiense captasse a nossa atenção durante uma breve ronda pelo YouTube. Dos vídeos que parecem ter saído da cabeça de Tyler, The Creator à sonoridade porosa de uma pop que se recusa a usar demasiadas purpurinas — que pode muito bem ter como influências os N.E.R.D., KAYTRANADA ou Alison Goldfrapp, a quem pediu recentemente emprestado “Strict Machine” —, tudo apontava para que o seu concerto no Coliseu dos Recreios pudesse ser um dos momentos mais altos do último SBES.

Talvez fosse um mau alinhamento dos astros ou, mais provavelmente, apenas uma consequência dos tempos de abundância e azáfama que vivemos. A verdade é que, quando Murray subiu ao palco, eram poucas as cabeças que se contavam no recinto à sua espera. E as que foram entrando a seguir, não pareciam estar verdadeiramente interessadas no que a francesa tinha para oferecer. Importa frisar que Murray parece realmente ter nascido para estar em frente a grandes plateias e que o seu espectáculo foi completo e bem executado. Falta-lhe, talvez, encontrar algo mais para o seu som, uma particularidade que a possa distinguir dos demais que já nos inundam os ouvidos. À nossa volta, o ambiente era mais ou menos este: 10 ou 20 pessoas na linha da frente a vibrar com o som que vinha da cantora e dos seus três músicos, seguidas de um pequeno mar de gente não preocupada em usufruir do espectáculo — muitas cabeças debruçadas de olhos postos no telemóvel e um constante burburinho das conversas triviais de quem ali foi só para passar o tempo. E não faltaram, claro, os vídeos, para mais tarde recordar o que não se viveu na altura — foram dezenas as pessoas que vimos a entrar para recolher a sua filmagem de cinco minutos e a abandonar o recinto logo de seguida. Fenómenos…



Não acreditamos que muita gente tenha saído completamente esclarecida do último concerto que estava programado para o Cineteatro Capitólio. Sudan Archives era, consensualmente, um dos nomes mais entusiasmantes deste cartaz e respondeu em palco com uma performance que levantou algumas dúvidas, mas que também deixou certezas. Durante as primeiras duas ou três canções, pairava no ar a dúvida: “será playback?” A voz da cantora e violinista foi das mais límpidas que alguma vez escutámos ao vivo e foi preciso estar muito atento para tentar decifrar tudo aquilo. Mesmo com algumas trocas de opinião, não ficámos totalmente esclarecidos, mas é mais do que certo que havia música (grande parte dela, pelo menos) a ser feita em tempo real de cima daquele palco, embora haja quem não tenha ficado com a mesma impressão.

Seja lá qual for a macumba sónica que esses americanos (a artista principal e quem a acompanhou) trazem na bagagem, o que mais retiramos da passagem de Sudan Archives pelo SBES é o seu enorme crescimento desde que, há cinco anos, se estreou pela Stones Throw Records. Se antes a sua mistura entre sons tradicionais do Sudão, o jazz e a cultura beat vinha muito colada a uma vertente mais experimental, as ideias que hoje passa para o que compõe são muito mais concretas e certeiras, sem medo de extravasar por trilhos mais mainstream, mas sempre disruptivos. É esse processo de maturação que ficou bem patente em Natural Brown Prom Queen, a sua proposta discográfica mais arrojada até à data e, também, aquela que colocou Brittney Parks mais próxima da estética pop — nesta fase da sua carreira, está ali algures entre uma SZA e uma Rico Nasty.

“Come Meh Way”, “Confessions” ou “Nont For Sale” foram algumas das suas canções mais antigas que recuperou para o concerto em Lisboa, artefactos sonoros preciosos que nos prenderam à sua música numa fase ainda inicial da carreira e que colam na perfeição com a sua nova proposta artística. Sudan Archives cantou, tocou violino, operou alguns knobs de uma máquina de efeitos vocais e dançou imenso, tanto em cima do palco como no meio do público. Também ela recebeu uma das grandes ovações daquela noite e aproveitou o facto de não haver mais ninguém escalado para aquela sala para nos retribuir o gesto com um fantástico encore, através do qual nos transportou para uma rave em que sons tribais e música electrónica andam de mão dada.


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