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Fotografia: Sara Falcão e Catarina Esteves & Rafael Florêncio/World Academy
Publicado a: 24/11/2019

Entre o Capitólio e o Coliseu, uma viagem pela Avenida da Liberdade à boleia de versos e instrumentais made in Portugal.

Super Bock em Stock’19 – Dia 2: veneno, azar e emoção

Fotografia: Sara Falcão e Catarina Esteves & Rafael Florêncio/World Academy
Publicado a: 24/11/2019

Se a maneira como nos apresentamos é tão importante como o que dizemos, a mensagem que Slow J deixou ontem no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, foi bastante clara: o que importa mesmo são as canções.

João Batista Coelho apresentou You Are Forgiven, o seu novo disco, e aproveitou para reformular o seu espectáculo, deixando os músicos (anteriormente quem o acompanhava em palco era Francis Dale e Fred) de fora do cenário e privilegiando o foco na sua figura e voz — a componente visual serviu de mero complemento para a presença solitária. O maior à-vontade no canto não ficou guardado nas gravações de estúdio e passou elegantemente para a actuação ao vivo: cantou como se a emoção estivesse imbuída em cada palavra que escolheu para esculpir versos. E foi num desses momentos que exigia mais desenvoltura vocal que se sentiu uma energia diferente: entre Nuno Cacho (que foi seu professor de música e participou — na guitarra portuguesa — em YAF) e Dale, o “Jota Lento” encheu a sala com alma de fadista em “Lágrimas” e lembrou-nos mais uma vez que o seu talento não cabe num só género musical. Se ainda não o vimos escrever para grandes intérpretes de fado, talvez depois desta noite o caso mude de figura. “Também Sonhar”, “Water” e “Às Vezes” foram interpretadas a solo, mas, para compensar as ausências, Papillon foi convidado a aplicar o corte final em “FAM”. O alinhamento para esta nova fase ainda está em fase de testes, mas não será fácil cortar o excesso e Slow J pode dar-se ao luxo de deixar de fora “Casa”, “Sonhei Para Dentro”, “Pagar as Contas” ou “Tinta da Raiz”, por exemplo, e trazer “Comida”, “Fome”, “Serenata” e “Arte”, single de The Art Of Slowing Down que surgiu com um novo arranjo. Escolha o que escolher, o público já está convencido à partida, e ontem recebeu-o da maneira mais efusiva que podem imaginar. “É mesmo um prazer estar aqui com vocês para apresentar o meu álbum. Queria agradecer a todas as pessoas que participaram nele e a vocês por me deixarem fazer a minha música como eu gosto”, atirou numa das suas intervenções. Liberdade e superação são duas palavras que estão a negrito no dicionário de J e fez questão de invocá-las N vezes durante o concerto. As dedicatórias ao falecido avô (referenciado em “Water”) e ao filho, ambos chamados Augusto, acentuaram ainda mais a carga emotiva da apresentação que só comprovou, mais uma vez, a força de um fenómeno à parte — tocar na Altice Arena e no Coliseu antes dos 30 anos, e com um percurso construído de forma totalmente independente, é obra. Encerrar a festa com um regresso a “Vida Boa” foi só uma maneira de nos ajudar a chegar a uma conclusão: a 12ª faixa de TAOSD é uma das grandes músicas portuguesas da década. Não se esqueçam disso quando fecharem as vossas listas. “Se estão a ouvir isto é porque o rap tuga continua uma merda”. Tilt deixou esta pequeno lembrete no início de “Anda”, faixa do álbum A Última Gota e candidata natural à selecção de final de ano de músicas mais marcantes do panorama, mas, ao contrário do autor de Karrossel, Karma, não somos tão pessimistas. E nem precisávamos de sair do Capitólio para arranjar razões para sustentar uma opinião contrária: depois do showcase da Paga-lhe o Quarto de Keso, os Orteum, a tripla mais temida underground português, encarregou-se de destilar veneno em forma de rima para galvanizar os fiéis que não quiseram deixar de marcar presença no Bloco Moche Lá Dentro, sendo seguidos pela dupla Perigo Público & Sickonce, autores de um dos melhores álbuns desta temporada. Mass, Nero e Tilt representam a bancada mais crítica do hip hop nacional, reflectindo bastante nas letras sobre o actual estado da cultura por cá. Com a editora RAIA a assegurar segurança e profissionalização, o trio está a focar os esforços nos talentos que não cedem às pressões do mercado e, obviamente, isso é transportado para o live act: existe espaço para os três MCs brilharem, não esquecendo DJ Ketzal nos cuts, e ainda se convida Johny Gumble (“Jurássico”), Beware Jack (“Complexo de Atlas”) e Pika Beatbox para acrescentarem algo nos seus próprios termos. A estocada final aconteceu com a estreia de “Sniper”, tema produzido por Sensei D. que será lançado nos próximos tempos. O lançamento de Porcelana era o móbil para a vinda de Élton Mota, o MC, e Rafael Correia, o DJ e produtor, até Lisboa. Depois de mostrarem bons apontamentos em conjunto no projecto 1991, a dupla esmerou-se neste segundo álbum, razão mais do que suficiente para não perdermos a apresentação incluída na curadoria Ciência Rítmica Avançada. No entanto, existem situações que são impossíveis de contornar: a fraca afluência de público, a gradual perda de voz de Perigo Público (que não se resignou e lutou contra isso o máximo que pôde) e o horário (chocou com o primeiro concerto no Coliseu) foram factores que prejudicaram o espectáculo. Apesar de todo o contraditório, deu para perceber que há uma máquina bem oleada e preparada para ir para a estrada: antes dos momentos fatídicos, a execução das faixas “Rosa Parks” e “OTN” comprovaram o excelente momento de forma do MC; os coros (com destaque para Sara Espírito Santo) e o teclista Afonso Serro (ex-Mazarin) são acrescentos preciosos para dar um carácter mais orgânico às canções produzidas por Sickonce. Num disco em que se pede, de certa forma, respeito pela fragilidade humana, formar esta banda e prescindir do habitual rapper+DJ mostra a visão do duo. A pedir melhor sorte nas próximas actuações.

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