Descer às Portas de Santo Antão é perceber dois movimentos em sentido contrário. Fatos e gravatas, seda e prata aguardam a Severa no Politeama; prevê-se uma noite sentada no veludo das cadeiras, aquecida pelo dourado das frisas. Para a outro, uma corrente humana que se estende para lá do Coliseu dos Recreios, adivinha-se um serão mais suado — em salas igualmente nobres — a incitar ao passo leve e rápido: são os tardios que vêm levantar bilhete para o Super Bock em Stock.
Para quem desde o Vodafone Mexefest se coíbe de vir ao festival da Avenida da Liberdade, não temam mudanças radicais. Depois da primeira vida de 2008 a 2010, o revivalismo Super Bock preserva as fórmulas: cantautores e bandas capazes de segurar uma nota, distribuídos por salas separadas pelo bom ritmo e a agitação portátil (extensível ao autocarro com o palco ambulante). Mas se 2018 pareceu saldar-se por uma volúpia cinzenta de rock masculino e autoral, 2019 sugere um regresso à vontade de beber de todas as fontes, apesar do marketing anunciar o advento da “música autêntica” — a urticária em duas palavras. O foco, convenhamos, continua a ser esse manancial “autêntico”, donde fluem os cabeças-de-cartaz para o Coliseu. E, como o roto fala ao nu, chegamos apenas a tempo do desfecho de Sinkane, cujo concerto caiu nas semi-graças da plateia. Dos aplausos afere-se o êxtase, mas é mais transparente a sua reacção durante os cinco minutos de “Favorite Song”: a sala alegre, numa ginga mole, sorriso esboçado sem dentes — no dicionário da linguagem corporal, um equivalente à música do sudanês-americano. Decerto que “Ya Sudan”, com o travo da união e a dissensão política, terá sido um bom momento. Se a grande despedida é entregue a este agradável encolher de ombros em forma musical, contudo, há que reestruturar. Não é que Sinkane escasseie em boa vontade e musicalidade — os dois álbuns mais recentes, Life & Livin’ It e o mais aguerrido Dépaysé, são prova bastante — mas faz uma despesa frugal no que toca à energia. É um músico sólido que não consegue ser vocalista memorável; a voz anódina, sem tempero, joga com a pouca resistência que oferece ao tecto da sua pop rock sudanesa. Até a banda, abençoada seja, parece fleumática nas suas lides. O seu último vestígio no palco é uma santidade negra, de manto branco e cruz ao peito — já deixa a benção para a estrela maior da noite. Michael Kiwanuka, que chega flanqueado pela banda, não está para brincadeiras. A sua entrada em cena, com “One More Night”, é um pouco como inserir um CD na aparelhagem e saltar para a faixa seis; mas sem queixas. O expansivo, embora não vulcânico, disco KIWANUKA deixa à imaginação um comandante nato, senhor da bravata: o encarte do álbum mostra-o em veste imperial, à frente do céu com patina d’ouro. Mas, tal como a verdadeira natureza do trabalho, Kiwanuka é um veículo para o novo retro da soul: um portento de mãos e laringe que trazem a luz, não o fogo. O arranque oficial é com “You Ain’t the Problem”, que contém o ânimo mais nervoso e pulsátil que Kiwanuka já ousou extravasar. É soul de tábua dura a piscar o olho ao funk, com as coristas de pandeireta em riste. Só se repete em “Black Man in a White World”, cuja força-motriz está no bamboleio e nas palmas, que a banda coreografa com a audiência, que lhes devolve um rugir de aplausos. De resto, o concerto obedece ao álbum actual — e KIWANUKA tenta ser o disco da ilha deserta, aquele da capa desbotada de tanto uso, o da lareira e garrafa de vinho. Mas é Love & Hate, de 2016, que serve de prato forte: sete das suas dez faixas, que contam do amor áspero e aveludado, merecem interpretação. Indaga: “preparados para ouvir música soul?” O groove é intransponível, as coristas são brilhantes — uma em particular chega à potência máxima em “Rule the World” e recebe uma das maiores ovações da noite —, Kiwanuka é o centro do campo magnético. Como homem da soul que é, tem no seu coração um metrónomo imperturbável: quando se dá a irrupção no público, no suposto final da majestosa “The Final Frame”, o londrino exige prolongamento, numa inspiração sem freio, sem tempo (por sua vez, os membros da plateia silenciam-se agressivamente, até que se possa ouvir uma agulha a cair). Tanto em vinil como em palco, fica a sugestão de que Kiwanuka tem em si uma catarse anunciada, uma epifania palpável. O mais próximo disso, depois do canto a uma só voz de “Home Again” e “Cold Little Heart”, é a arrepiante epopeia de “Love & Hate” — boa sorte a todos os seus rivais neste fim-de-semana para encontrarem um momento tão especial. No final, percebemos ter estado ao lado dum certo senhor da Nova Lisboa — de facto, alguém estava a cantar demasiado bem… —, que nos diz de sua justiça: “Nota-se que ele se deixou levar pelo flow. Estou arrepiado ainda.”