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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 04/11/2020

20 anos depois, há um novo disco da Arkestra criada por Sun Ra: Swirling surge com selo da londrina Strut e é um tratado sobre a longevidade, com o decano Marshall Allen aos comandos. Em 2014, Rui Miguel Abreu conversou com Allen antecipando uma dupla passagem pelo nosso país. A edição presente justifica a revistação dessa conversa.

Sun Ra Arkestra: circular pelo cosmos em busca do futuro que existe na história

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 04/11/2020

A notícia de que um novo disco da Sun Ra Arkestra tem espaço nos escaparates em 2020 é motivo óbvio de celebração, um raio de brilhante luz cósmica que pode apontar um caminho em tempos que parecem vergar-se sob o peso da escuridão. Em 2014, em vésperas de dois concertos em Portugal, Marshall Allen explicava que a força da música não pode nunca ser subestimada. Porque a música faz-se de imaginação, um motor capaz de gerar um impulso que nos empurra até ao infinito, Swirling, como refere o título do novo álbum. A Arkestra tem uma considerável e histórica ligação ao nosso país, graças a algumas passagens por importantes palcos nacionais, facto que inspirou um texto na Blitz para que estas declarações do actual líder da Arkestra foram originalmente recolhidas. O novo disco torna-as, uma vez mais, relevantes.

Em 1982, a Sun Ra Arkestra partilhou espaço no cartaz de Vilar de Mouros com bandas como os U2, Stranglers, Durutti Column ou Echo & The Bunnymen. No dia da sua apresentação, a 4 de Agosto, a Arkestra dividiu o palco com outros nomes do jazz, incluindo uma forte representação nacional a cargo de Rão Kyao e da Anar Band de Jorge Lima Barreto (e em tempos de Rui Reininho). Durante a tarde dessa quarta-feira de 1982, o público presente pôde ainda desfrutar dos blues de Johnny Copeland, mas Sun Ra, que tocou de madrugada, era a justa cabeça de cartaz. Nessa altura, o famoso músico nascido a 22 de Maio de 1914 no Alabama contava já 68 anos, uma provecta idade que no entanto não lhe retirava nem um grama do seu espírito de aventura. Sun Ra haveria de falecer uma década mais tarde, a 30 de Maio de 1993. Além de um sólido pensamento humanista e filosófico, de uma assombrosa discografia e de uma militante atitude perante o palco – espaço privilegiado de invenção da Arkestra – é possível ver na abertura extrema de Sun Ra, que ao longo da carreira não enjeitou a possibilidade de tocar ao lado de gente como Grateful Dead, MC5 ou Sonic Youth, outra prova da sua permanente recusa em encarar a sua música como a manifestação estática de uma tradição. Ra via a Arkestra como um organismo vivo, pulsante, cujo dever era quase evangelizador, uma célula que existia para promover diálogo com outras culturas e com todos os públicos que estivessem dispostos a conceder-lhes alguma atenção.

Depois da passagem de Sun Ra a outro plano de existência, em 1993, a Arkestra foi brevemente dirigida pelo saxofonista tenor John Gilmore, que faleceu em 1995, e finalmente encabeçada por Marshall Allen, saxofonista alto que completou 96 anos no passado dia 25 de Maio e que prossegue a missão iniciada por Sun Ra em Chicago, na década de 50 do século passado. Tem-se falado muito sobre a longevidade dos Rolling Stones, mas músicos como Allen medem a sua vida com outro tipo de escala, mantendo com o tempo uma relação tão sólida quanto espiritual. Ao telefone, nesse ano de 2014, a sua voz não escondia as suas nove décadas de existência, soando tão nobre e distinta quanto a música que foi criando com a Arkestra ao longo de mais de seis décadas. “Tocar música é como viver”, explicava-nos então Allen. “Não se planeia viver tantos anos, tal como não se planeia manter uma banda este tempo todo. As coisas simplesmente acontecem”, garantia o sábio veterano.

“Sun Ra é a aleluia e o apocalipse do free jazz”, escreveu, no livro Jazz-Off (Livraria Paisagem, 1974), Jorge Lima Barreto. De facto, o homem que gravou Space is the Place foi um dos mais inventivos músicos de jazz, um dos principais responsáveis pela explosão de liberdade que tomou conta do género, sobretudo dos anos 60 em diante. Ra pensava a sua música em termos muitos simples: “Na verdade, pinto quadros do infinito com a minha música e é por isso que muita gente não a entende”. Esta frase, citada por Valerie Wilmer em As Serious As Your Life (Serpent’s Tail, 1992), é bem reveladora do pensamento de um homem que muito antes do Movimento dos Direitos Civis inventou para si uma nova identidade, afirmou-se como objetor de consciência e criou em seu redor toda uma mitologia – incluindo a ideia de que vinha do espaço, o único lugar onde, nesse tempo, um homem negro poderia ousar ser realmente livre. Essas ideias suportavam um desejo de superação, não apenas da sua condição social e racial, mas igualmente das limitações da própria humanidade. Para Sun Ra o espaço era, de facto, o lugar ideal. “Sun Ra foi sempre um professor”, admitia Allen. “As suas ideias de disciplina, de rigor, eram uma lição para a vida, não apenas para a música. É devido aos seus ensinamentos que a Arkestra continua viva”.

E essa vida permitiu à Arkestra regressar ao estúdio para registar o novíssimo Swirling dado à estampa pela Strut, editora que tem sido um dos pilares da gestão da memória discográfica do colectivo criado por Sun Ra graças a um alargado conjunto de edições e reedições. Trata-se do primeiro novo título na discografia da Arkestra em mais de duas décadas, o que é, obviamente, facto digno de nota. O ensemble, que neste álbum inclui o líder Marshall Allen (sax alto), EVI Knoel Scott (sax alto), James Stewart (sax tenor, flauta), Danny Ray Thompson (sax barítono, flauta) Michael Ray (trompete), Cecil Brooks (trompete), Vincent Chancey (fliscorne) Dave Davis (trombone, vozes), Farid Barron (piano), Dave Hotep (guitarra), Tyler Mitchell (baixo), Wayne Anthony Smith, Jr (bateria), Elson Nascimento (percussão), Stanley “Atakatune” Morgan (congas) e Tara Middleton (voz principal, violino), reuniu-se nos Rittenhouse Studios de Filadélfia, historicamente a principal base da Arkestra, e além de um original de Allen, que dá título ao álbum, gravou ainda uma série de clássicos do reportório sunraiano, casos de “Angels and Demons at Play”, “Astro Black” ou “Rocket No. 9”. E o que repetidas audições revelam é esse êxtase eterno que parece animar uma formação que sempre buscou o futuro na tradição, encarando a música como uma funda afirmação cultural, de identidade, de pura manifestação de liberdade. Allen, pode garantir-se, mesmo prestes a assinalar o seu primeiro centenário na Terra, é um óptimo piloto da nave musical que Sun Ra criou porque a Arkestra continua a soar como uma afinada e avançada máquina de sons e tons, de ideias e de caóticas harmonias.

Marshall Allen cumpriu serviço militar na Europa quando os aliados celebravam o triunfo sobre a ameaça Nazi. Esteve em Paris em 1945, onde, de acordo com Valerie Wilmer num artigo escrito para a revista Wire, nessa efervescente época, “para onde quer que se olhasse, havia jazz do passado, do presente e até do futuro”, e foi no exército que começou a tocar em bandas. Depois de ser desmobilizado instalou-se em Chicago, no arranque dos anos 50, e foi aí que conheceu Sun Ra. Juntou-se à Arkestra por volta de 1957, quando já levava mais de uma década a tocar jazz.



O líder da Arkestra não era uma pessoa vulgar. Alterou legalmente o seu nome para Le Sony’r Ra, explicando que considerava que o seu apelido Blount revelava as origens escravas da sua família – e isto muito antes doutras personalidades da América negra o terem feito nos radicais anos 60 – e adotou práticas de vida comunitária com os seus músicos antecipando as experiências de organização social alternativa da geração hippie, estabelecendo logo aí um modelo de trabalho criativo absolutamente singular. Leitor ávido – “Sun Ra quase não dormia”, confirmava então Marshall Allen –, Sonny, como também era tratado, interessava-se por diversas formas de filosofia e esotérica, por línguas arcaicas e pelo cosmos, uma vez mais muito antes da explosão de interesse comum gerado pelo programa espacial da Nasa. Outra coisa em que foi pioneiro, foi na edição independente: criou a mítica – e caoticamente organizada – El Saturn Records em meados dos anos 50. Nessa época trabalhou com o lendário Tom Wilson, produtor que lhe editou o álbum Jazz By Sun Ra em 1957 (ponto de partida da sua discografia de álbuns), praticamente uma década antes de trabalhar também em discos de gente como Bob Dylan, dos Mothers of Invention de Frank Zappa ou na estreia discográfica dos Velvet Underground.

Igualmente singular era o seu trabalho com os músicos, mercê de uma ascética disciplina que inspirou unidades criativas em todo o mundo, como a que Sei Miguel dirige em Portugal, por exemplo. “Cientistas do tom. Não músicos. Esta era a crucial distinção para Sonny. Eles exploravam o som, experimentando e não recriando o que já existia. Tons. E não notas”, escreve o biógrafo John F. Szwed em Space is The Place – The Lives and Times of Sun Ra (Pantheon Books, 1997). Marshall Allen sempre apontou no mesmo sentido, como nos confirmou: “Sun Ra entendeu que havia outros caminhos. Estávamos sempre a trabalhar, sempre a ensaiar, em busca de algo novo, de outras formas de comunicar”.

Rão Kyao apresentou-se ao vivo em Vilar de Mouros na mesma noite em que a Arkestra subiu ao palco. O então saxofonista (que em breve passaria a ser também flautista…) português viu-se forçado a apresentar-se a solo depois da ainda amadora organização do festival não ter sido capaz de assegurar as condições necessárias para que os músicos indianos que aí o acompanhavam pudessem também participar no concerto. À distância de mais de três décadas, Rão confessou-nos que estava entusiasmado por poder ver a Arkestra: “era um profundo admirador da música de Sun Ra e um fã confesso do John Gilmore”, recorda, explicando depois que apesar de não ter havido do seu lado qualquer interação com os músicos da Arkestra sentiu ter assistido a “um grande concerto”.

“Recordo”, contou-nos Marshall Allen, “uma paisagem muito bonita, a pequena ponte que atravessámos para lá chegar, a simpatia das pessoas. Lembro-me de sentirmos que era muito especial tocarmos num sítio assim”. Na Música & Som descreveu-se o concerto de Sun Ra como “uma cerimónia litúrgica”, “um ritual pagão transposto para o palco (o altar)”, “uma enxurrada deliciosamente caótica de música tribal”. O jornalista Belino Costa, nas páginas do semanário Se7e, deu na altura conta de um ambiente tranquilo, apesar da forte presença policial, que na noite da apresentação da Arkestra não impediu “borlistas” de subirem a paliçada que delimitava o recinto para assistirem livremente ao concerto. Marshall Allen relembra esse ambiente: “sei que Portugal tinha vivido uma revolução pacífica e que a música representou aí um papel importante. Era nítido que as pessoas olhavam para os músicos em busca de respostas”.

A Arkestra de Sun Ra pode ter apenas confundido mais as pessoas, com a sua proposta “tribal” de um jazz sem tempo nem escola, sem regras e sem fronteiras, de olhos postos no futuro do espaço e no passado das pirâmides. Sun Ra haveria de trazer a Arkestra mais uma vez a Portugal, em 1985, para uma apresentação numa das primeiras edições do célebre festival Jazz em Agosto, da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 2005, a Arkestra voltou a apresentar-se em Portugal, na Casa da Música, do Porto, já na era pós Sun Ra. E regressou, no ano em que se cumpriu um século sobre o nascimento do seu eterno líder, um dos maiores visionários do jazz, e quando o seu atual director festejou nove décadas de fôlego. Marshall Allen, como John Gilmore antes dele, é um dos grandes estetas do saxofone no jazz, um líder mítico. E as suas presenças a 1 de Junho de 2014 em Serralves, na cidade Invicta, e a 2 de Junho no B. Leza, na capital, foram oportunidades de excelência para testemunhar o génio e a força de um dos mais históricos coletivos musicais de sempre. “Nunca me sinto mais livre do que quando toco”, assegurava então Marshall Allen. Música como pilar de liberdade: uma ideia com que todos os portugueses se podem relacionar e que, de acordo com o relato de Gustavo Sampaio no Bodysoace, demonstrou que “a força espiritual suplanta a força física”.

Escutando Swirling, no entanto, não há grandes dúvidas sobre o poder anímico que a Arkestra continua a ser capaz de conjurar. Em “Infinity / I’ll Wait For You”, por exemplo, propõe-se um dilatado retrato do infinito que se acerca dos 10 minutos, com o pó de estrelas a ser ilustrado pelos diferentes metais que evoluem sobre as desconjuntadas polirritmias conjuradas pelas percussões e pelo piano atonal de Farid Barron. O swing ondulante que sustenta a belíssima “Angels and Demons at Play” é igualmente cativante, um remoinho harmónico circular que nos puxa para o centro onde a voz ultra segura de Tara Middleton, a esposa do guitarrista Dave Hotep que também é violinista, surge com uma nobreza tão brilhante que nos força a esquecermos a mítica June Tyson, a diáfana figura que circulava em concertos por entre os elementos da Arkestra e que abandonou este plano de existência em 1992, um ano antes do piloto principal da Arkestra se ter transformado ele mesmo numa eterna onda cósmica. Em “Astro Black”, quando nos sugere que encontremos um lugar entre as estrelas, Tara está, na verdade, a inspirar-nos para ousarmos todos sonhar mais longe. E essa é a principal mensagem que o espírito de Ra continua a oferecer-nos.

Desde que foi gravado em Filadélfia em 2018, mais dois membros da tripulação juntaram-se aos cosmonautas que já partiram para a próxima dimensão: o grave barítono de Danny Ray Thompson e as cadências obliquamente tropicais das congas de Stanley “Atakatune” Morgan são agora pulsares que circulam entre as estrelas, facto que só torna ainda mais relevante e histórica esta presente edição. “Esta música resulta da imaginação”, assegurava Allen quando conversámos com ele em 2014. “E a imaginação é a mais poderosa das naves: é capaz de nos levar até aos mais longínquos lugares do espaço”. Circulando, até à eternidade.


(O álbum Swirling da Sun Ra Arkestra está disponível na Jazz Messengers Lisboa.)

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