A máquina dos SUMAC é demasiado grande para se deixar guiar por um único desvio. Ao longo da última década, o projeto de Aaron Turner — ex-Isis e um dos agentes mais criativos da esfera metálica — tem-se desdobrado numa miríade de incursões que atravessam (quase) todos os vértices da música de peso. Depois da estreia em 2015, com o arrebatador The Deal, o trio de Turner, Nick Yacyshyn (The Armed, Genghis Tron) e Brian Cook (Russian Circles, Botch) estabeleceu uma proveitosa relação de cumplicidade com Keiji Haino, figura seminal da música experimental do Japão, resultando em vários lançamentos onde ruído, improvisação e intensidade convivem em permanente tensão.
Em abril, a jornada colaborativa dos SUMAC ganhou um novo capítulo. The Film é o resultado de uma parceria com a poeta e performer norte-americana Moor Mother, depois de um primeiro encontro em palco em Berlim, antes da consagração no festival Roadburn. A partir desse embrião performativo nasceu um diálogo contínuo, agora fixado em disco, que se traduz num tratado de violência poética. O encontro faz sentido. Moor Mother inscreve-se numa tradição de combate e reinvenção constante, movendo-se entre a poesia falada, o ruído e a filosofia afrofuturista, ao mesmo tempo que entrega a sua voz disruptiva a projetos dos mais diversos quadrantes das músicas contemporâneas, do free jazz militante dos Irreversible Entanglements à eletrónica insurgente das 700 Bliss, sem esquecer preciosas parcerias com o rapper billy woods e a dupla Zonal (de Kevin Martin e Justin Broadrick).
The Film, a estreia formal desta aliança de peso, não abdica do risco nem do confronto que tem orientado estas duas instituições. Partindo de uma procura contínua, escava sem dó as feridas abertas do colonialismo, da opressão e da exclusão social, apontando possibilidades através do confronto direto, sem evitar a dureza dos temas que aborda. “Scene 1”, a abrir, suga o ouvinte para uma necessária zona de desconforto. Por cima de uma avalanche de percussões sísmicas, guitarras convulsivas e camadas de textura e ruído em ebulição, Camae Ayewa aponta duras críticas à forma como as comunidades racializadas são sistematicamente negligenciadas, ignoradas e tratadas como corpos descartáveis; lança farpas contra as grandes nações que ergueram os seus monopólios à custa do saque e da violência, denunciando o silêncio cúmplice que ainda paira sobre a escravatura; expõe a discriminação latente no acesso aos cuidados de saúde no sistema norte-americano, entre outras formas subtis (mas não menos cruéis) de segregação racial. Tudo isto condensado numa faixa longa, densa e persistente, representativa do tom que atravessa a totalidade do disco.
A violência policial também não é esquecida. Sem citar nomes, “Scene 1” evoca a memória dos rostos que, por estarem no sítio errado à hora errada, sucumbiram à bala nefasta das autoridades (“And all they do is kill / They don’t want us to breathe”). Esse estado de emergência traduz-se na escalada emocional de “Scene 2: The Run”, quando a voz individual cede lugar ao grito denso e gutural de Turner, e a indignação é convertida em ruído primordial. “Camera” explora uma certa ideia de peso em mutação, com padrões irrequietos de bateria e uma barragem de guitarras lancinantes a servirem de metáfora para um estado interno de tensão e revolta. É o metal a funcionar como espaço de exploração, abjeto a noções convencionais de forma e estrutura. Em resumo: livre, pulsante e em constante movimento.
Quando chegamos a “Scene 5: Breathing Fire”, um monólito de 16 minutos, a atmosfera altera-se: pela primeira vez, parece abrir-se caminho para alguma esperança. O conteúdo, esse, mantém-se firme na denúncia. O corpo instrumental é um triunfo notável do metal pós-modernista, exemplar na forma como se acomoda à mensagem de uma oradora que faz do confronto veículo para a mudança. A verdade está lá fora, mas nem todos a querem ver.