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Fotografia: Camila Sanchez
Publicado a: 27/09/2022

A intensidade no máximo.

Suka Figueiredo: “Os espaços para as mulheres sopristas são bem restritos”

Fotografia: Camila Sanchez
Publicado a: 27/09/2022

No Brasil, assim como no mundo, poucas são as mulheres instrumentistas que têm protagonismo no jazz e na música instrumental. Nessa conta não entram musicistas que fazem parte de uma banda ou orquestra, nem as cantoras, mas sim aquelas que lideram empunhando seus instrumentos, principalmente de sopros. 

Se analisarmos as playlists oficiais de jazz brasileiro das principais plataformas de streaming, dificilmente encontraremos alguma mulher instrumentista no top 20 ou 50. Isso não acontece porque elas são inexistentes. Como sempre aconteceu, o motivo principal é a invisibilidade. Quando o filtro é direcionado às mulheres negras, a lacuna fica ainda maior. 

Para mudar esse cenário, artistas da Funmilayo Afrobeat Orquestra, a primeira banda de afrobeat brasileira formada somente por pessoas negras, mulheres e não-binárias, e a saxofonista Suka Figueiredo estão tomando a dianteira para tentar mudar esse status quo que prevalece desde sempre. E elas são apenas algumas num universo de talentos invisibilizados pelo machismo, racismo e até também pelo elitismo que tem permeado o jazz.

Conversámos via Zoom com Suka sobre essas problemáticas, mas para além disso falamos também da trajetória que ela vem construindo e o seu EP de estreia, AfroLatina, que não por acaso foi lançado no dia de celebração da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha (25 de Julho). A saxofonista tem conquistado os ouvidos e inspirado pessoas com sua música e história de vida. E o voo dela está apenas no início.



Apesar de dominar o instrumento, não faz muito tempo que você começou a tocar saxofone. Já era algo que você queria ou surgiu de repente?

Comecei com 25 para 26 anos (eu sou um baby na música), e tudo aconteceu quando eu saí do Rio de Janeiro e vim morar em São Paulo. A minha formação é de secretariado (sou secretária por formação académica, tenho diploma e tal), e eu era funcionária pública… fiquei dois anos e meio, quase três, trabalhando numa empresa de urbanismo que cuida da pavimentação de São Paulo. Esse foi um período muito difícil porque eu estava num emprego estável, tinha toda a funcionalidade de um emprego público, mas estava extremamente deprimida com um chefe declaradamente racista. E aí, no bairro que eu morava, no Butantã, lá em 2015-16, tinha um projeto que circulava numa kombi que chamava Jazz na Kombi. A primeira apresentação que vi foi do saxofonista Vinícius Chagas, que na época estava com um cabelo black power loiro platinado… foi amor à primeira vista. Na hora disse: é isso que quero fazer. No dia seguinte eu me matriculei numa escola de música do bairro, e comecei a estudar por hobby, pra poder ter um escape da loucura do emprego público. Só que a música me pegou e eu descobri que era aquilo que eu queria fazer. Depois comecei a estudar pra poder passar no conservatório. Aí, eu me dediquei muitíssimo, e em 2018 passei em primeiro lugar na Escola Municipal de Música em São Paulo. E estudei lá até 2021. Depois que saí de lá continuei focando na música.

E como foi essa transição? Teve alguma dificuldade ao longo dos estudos? 

A partir do momento que eu entrei na escola as coisas começaram a acontecer porque eu tinha a chancela da carteirada, porque imagina: uma mulher preta tocando um instrumento super classista (pelo instrumento ser muito caro)… era sempre: você é de onde, toca com quem, onde você estuda? Sempre me cercavam dessas perguntas e quando eu comecei a estudar, eu tive a chancela de estar estudando com o Samuel Pompeo [professor convidado do festival Fiato Al Brasile na Itália e doutorando em música pela Universidade de Aveiro e pela UNESP]. Aí, as portas começaram a se abrir um pouco. Mas eu pude perceber muito rápido que os espaços para as mulheres sopristas são bem restritos. As mulheres, na música de maneira geral, atuam mais na voz, no piano… e eu ficava muito incomodada de sair de casa pra ver uma orquestra e nela só ter homens. Às vezes tem uma ou outra na flauta, no violino… Aí, eu me perguntava: cadê as saxofonistas, trompetistas? Isso me incomodava porque eu sentia que se não criasse o meu próprio espaço de trabalho, não ia conseguir tocar o repertório que gostaria. E aí, no começo da pandemia, eu mostrei as minhas composições para o meu companheiro Rafael Acerbi, que é produtor musical. Ele falou: “nossa, isso é muito bom, precisamos trabalhar e colocar no mundo”. Em Agosto de 2020, a gente começou a trabalhar nas minhas músicas. Lancei meu primeiro single, “Caminho de Mármore” com o apoio de alguns amigos que gravaram junto comigo. Deu muito certo…. Comecei a investir tempo pra escrever projetos e editais pra ter recurso financeiro para fazer. A gente sabe que a arte no brasil é muito complicada. Se você não nasceu em berço de ouro tem que ir na raça total. Depois dessa loucura, eu lanço um disco que tem cinco faixas.

Por que fazer especificamente música instrumental?

Como eu conheci o saxofone através da música instrumental, o que me encantou muito foi como a música instrumental pode falar de diversas maneiras, em diversas vertentes, com cada pessoa sem dizer nenhuma palavra. Isso pra mim é muito incrível, porque você pode ouvir a mesma música que eu, mas cada um sentir algo diferente. A música cantada já te induz para uma história, já te induz pra uma sensação, já a instrumental bate com a energia que você estiver no dia. Isso me encanta pela possibilidade de diálogo com qualquer ponta do mundo sem precisar de nenhuma palavra, só do som. O som por si só já conecta. E no meio disso tudo, de começar a estudar e ir atrás das bandas instrumentais de São Paulo, foi quando eu conheci Moacir Santos em 2016. Eu fiquei muito tempo não me perdoando por não ter conhecido antes esse génio da música brasileira. Fiquei muito apaixonada, obcecada pelo som dele. E Moacir é muito louco porque toda vez que você escuta, toda vez vai ter alguma coisa diferente que não tinha ouvido antes… me espelho muito no Moacir pra fazer o meu som, nessa coisa de buscar detalhes que faz com que as pessoas só escutem na 20ª vez que ela ouvir minha música. A minha maior intenção musical é proporcionar descobertas. Toda vez que o ouvinte ouve um timbre diferente, uma linha, um contraponto, alguma coisa diferente que ele não tinha ouvido antes, me fascina ficar buscando esse labirinto musical.

Quando Moacir Santos entrou no seu caminho ou você no dele?

Eu conheci Moacir num projeto chamado Projeto Coisa Fina. É uma banda que faz o repertório do Moacir e circulavam bastante em São Paulo. E eu só via homem, e 80% homem branco. Aí, depois fui amadurecendo e entendendo o “academicismo” na música, porque são as pessoas brancas que têm mais oportunidade, mais visibilidade. Fui me incomodando, e eu me perguntei: quando na minha vida eu vou poder subir num palco e fazer um repertório do Moacir se todas as bandas que me circundam são masculinas… e quando tem oportunidade de substituir alguém, eles substituem por outro homem. Eu não estou nesse radar… então, vou fazer o meu aqui. Foi assim que juntei oito manas para levantar o meu repertório e mais algumas do Moacir, e agora estamos circulando. É um show para o Moacir. Uma homenagem por pura gratidão, de ter dado esse presente pra música afrobrasileira. E também é muito curioso que toda vez que ouço, é louco pensar que o álbum Coisas, que foi lançado nos anos 1960, um período bem complicado no Brasil, ainda faz sentido nos dias de hoje.



Pensando no tempo de aprender a tocar o instrumento para hoje dominá-lo com maestria, é um período muito curto, ainda mais para uma instrumentista de sopro. O que foi mais primordial nesse processo?

Acho que foi muita abdicação. Eu precisava mudar de vida. A música me salvou. É óbvio que eu falo num lugar de muito privilégio. O mudar a minha vida era sair de um emprego estável, mas era algo que estava me matando. Então, eu me apeguei na música como se fosse aquilo que iria me salvar. Eu me dediquei incansavelmente estudando 5-6 horas por dia. Eu tinha muitos problemas com vizinhos, porque morava em apartamento. Eram 5 horas por dia estudando a mesma coisa, a mesma escala, a mesma pentatónica. Tive muitos problemas, mas fui indo na simpatia, naquele jeitinho carioca. Fui levando até as pessoas entenderem que aquele era o meu trabalho. Foi muita dedicação, muita vontade de fazer e muito apoio do Rafa, porque quando eu estava na estruturação desse trabalho de composição e projetos, era ele que trazia a grana pra casa. Então, foi aí que tudo foi possível, porque tive amparo, tive apoio. Mas assim, depois que eu saí da empresa pública, eu fiz vários trabalhos informais pra fazer dinheiro: fui manicure, garçonete, recepcionista. Eu tinha que pagar o gás, pagar a luz. Então, eu trampava e estudava. E aí chegou uma hora que os trabalhos com música conseguiam cobrir o mês. Assim, fui deixando de lado os outros trabalhos. Nesse período meus pais também foram muito importantes.

Apesar de ser uma artista solo, você não está sozinha. Nos shows você conta com a parceria de uma banda formada somente por mulheres. Reunir essas mulheres tinha — e tem — como propósito preencher uma das várias lacunas dentro da música instrumental e do jazz brasileiro?

Eu sou capricorniana, e tenho uma pitada de dificuldade do coletivo. Então, eu sentia que precisava liderar o trabalho que eu fizesse para que soasse do jeito que eu gostaria que soasse para o público. Eu fiquei pensando durante muito tempo que tipo de banda eu formaria. Aí fui percebendo que eu precisava de representatividade de corpos femininos. Me incomoda que você chega pra ver um show e tem uma mulher… e essa nossa construção é muito difícil, porque é difícil encontrar um time ponta firme. É difícil contar 100% com quem tá sempre tocando em um gig ou outra. Foi a muito custo que consegui levantar um time ponta firme, que mesmo com possíveis atrasos do cachê estaria à disposição. Consegui formar uma banda incrível e está com a maior energia boa. O jazz acontece no palco, a gente ri, a gente se diverte. ‘Tá gostoso fazer, e a gente vê o quão mais leve é trabalhar entre mulheres… você me pegou num dia pós-show, num naipe super afinado, nota aguda cravada, estou super feliz hoje. Às vezes eu fico me julgando e me comparando com outra pessoa. No final dos shows, eu sempre costumo fazer a roda com a minha banda e digo: “gente, o que estamos fazendo aqui é mais importante do que a gente tem dimensão do agora. Não é sobre uma tocar melhor que a outra, é sobre fazer”. Isso muda completamente a energia do trabalho. 

Essa trajetória também representa muito o título do seu álbum, da mulher afro-latina e brasileira, que desde sempre está lutando. E no jazz e na música instrumental brasileira, a presença dela é quase invisível.

Antes da pandemia estourar, eu passei um tempo na Argentina e pude compartilhar música, amizade e ter a percepção da capital e de quem pode morar ali. Quase 90% do tempo eu me via como a única mulher negra em todos os espaços que estava. Teve vários casos de não ser atendida em lojas, em restaurantes, mil fitas. Por muita sorte, eu tenho uma rede de apoio muito próxima. Foi lá que comecei a divagar meus pensamentos sobre a construção da América do Sul (e a América Latina como um todo), o que era e o que se tornou depois da colonização com a tentativa de embranquecimento… isso me incomodou muito. E quando eu voltei para o Brasil, eu voltei latina. E aí pensei: só a gente fala português! Então, fui entender os processos de colonização e por que que o Brasil insiste em afastar a ideia de latinidade do seu conceito de existência. A música latina me faz viajar…. por isso tenho ouvido tanta cumbia, tanto reggaeton. Sou brasileira, mas também afrolatina. ‘Tô aqui nesse espaço. Comigo é tudo muito intenso.

Essa sua visão e protagonismo também abre possibilidades para que outras mulheres instrumentistas também alcem voos solos. Ao longo da história a mulher sempre foi colocada como coadjuvante no jazz, sendo a pianista ou a cantora. Felizmente têm surgido inúmeras bandleaders que estão ganhando destaque dentro do mercado da música, como Nubya Garcia, Esperanza Spalding, Emma Rawicz, Lakecia Benjamin, as meninas da Funmilayo Afrobeat Orquestra, você.

É curioso você comentar sobre o piano. Sabe por que elas tocavam piano? Porque o piano não sai de casa. Essas nuances são tão agressivas, sorrateiras, que quando você vê já está sucumbindo. Eu não faço jazz, a minha música flerta com o jazz, tenho várias passagens jazzísticas no meu som, mas eu não tive tempo de me aprofundar em nada ainda. Não tive tempo de me aprofundar no jazz e no choro porque eu tenho que ’tá no corre. Por isso, não caracterizo meu som como jazz. Eu prefiro o termo música instrumental, porque quando a gente joga em comparação com os homens da virtuose, o meu som não é virtuose, é complexo. A gente sabe que quando o jazz nasceu em 1920/1930 era tipo o funk que a gente escuta hoje. Era música periférica, do povo. E aí, historicamente, o jazz foi passando por um processo elitista que chegou no Brasil. E hoje quem consegue se aprofundar no jazz são os académicos (passam a vida toda nos conservatórios). A minha intenção é desconstruir isso, porque o jazz é meu, é seu, o jazz é nosso. Não é o som dessa galera. O rock é meu, é teu. Por isso, classifico minha música como instrumental, que flerta com vários outros estilos.


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