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Publicado a: 29/07/2015

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“Dá-me um sinal / Faz-me acreditar / Faz-me pensar que tenho chances, afinal / Jã não aguento mais esta ansiedade (…)”. Caro leitor, chegou finalmente a altura de matar a ansiedade: é só carregar aqui.

Nem que fosse só pelo súbito e inesperado anúncio do lançamento de 10 Anos em Gaveta e os Subverso, dupla composta pelo rapper Maze (Dealema) e o produtor Soma (um ilustre desconhecido a quem, infelizmente, salvo erro, não se conhecem outros trabalhos), já teriam o aplauso entusiasta de muita, muita gente. Contextualizemos: pouco tempo depois dos Dealema subirem, definitivamente, ao palco do hip hop português (com aquele que ainda é, quanto a mim, o seu melhor álbum, Dealema, de 2003), Maze disponibilizava, no velhinho MySpace (!), uma faixa intitulada “Dá-me Um Sinal”, mais informando que a mesma integraria um EP a lançar em breve juntamente com o produtor Soma (à data, e ainda hoje, um desconhecido, como já referido).

Todos carregámos no play, curiosos e ansiosos: “Dá-me Um Sinal” era jazz e soul, mas também rap e funk; era sexo, mas amor em igual medida; era doçura e inocência a um tempo e charme e carnalidade a outro. Um dos melhores beats – disse-o na altura e mantenho – alguma vez compostos neste país. Era ainda, enfim, o relato de uma atracção num mundo “pequeno”, algo cada vez mais exótico num tempo em que todos os dias nos impõem à força que sejamos “globais” e que estejamos “à distância de um clique”. Pois bem, fuck that: o engate, aqui, é o da escola ou da vizinhança, com a girl next door, a mesma que Deau tão magistralmente idolatra em “Romance de Autocarro” (admirável demonstração de flow em que o percurso de autocarro é metáfora para o percurso orgásmico).

“Dá-me Um Sinal” era isto tudo e um pouco mais, e, por essa razão, gerou muitas, infinitas expectativas para o trabalho completo que viria a seguir, até pelo facto de Maze ser um dos mais talentosos mas, simultaneamente, menos prolíficos membros dos Dealema nas lides discográficas em nome próprio (apenas se contando o excelente Homem Em Missão, 2007), ao contrário de Mundo e Expeão, com uma carreira a solo consolidada (sem dúvida também porque Maze foi muito meritoriamente explorando outras áreas, desde o trabalho radiofónico na Oblá FM ao de DJ, passando pela fundação da editora Faca Monstro ou pelo papel de “embaixador” da Red Bull Music Academy Radio em Portugal).

O tempo foi passando na mesma proporção em que aumentavam as audições (ainda não se contavam “visualizações”…) e o burburinho tornou-se geral: “então, aquilo sai ou não sai?”, “Tão boa aquela faixa! Deve estar mesmo para sair…”. Mas não saiu. E só para não se ficar com a ideia de que os críticos exacerbam as coisas, faço prova provada do que digo: em 2008, eu próprio anunciava aos sete ventos no meu blog (e já com algum delay), cheio de frémito, o que estava para vir. Percebo agora, porém, pelo título do EP, que se foi por volta de 2008 que os Subverso soltaram cá para fora a primeira faixa, o trabalho, esse, havia sido já iniciado três anos antes…

Com a debandada do MySpace, rapidamente a faixa passou a constar do YouTube, mas nem por isso o lançamento do EP se concretizou, embora em 2011 Maze garantisse que o trabalho seria editado nesse ano. Com o tempo, porém, “Dá-me Um Sinal” passou, paradoxalmente, a ser uma bela e nostálgica recordação de algo que… nunca chegara a existir. Mas, na verdade – e esta é a beleza da coisa –, era como se tivesse existido, i.e., o impacto de “Dá-me Um Sinal” na altura foi tanto que fez com que passasse a valer autonomamente, como se de um trabalho acabado se tratasse. E, de facto, compreende-se: num país em que, à data, o hip hop ainda não tinha a expressão jazzy que hoje tem, os Subverso representaram, para muita gente, Jazzmattaz “à portuguesa”, ou seja, letras positivas, políticas e inteligentes acompanhadas de beats adoçados pelos samples da melhor música negra. Para muitos da minha geração, os Subverso apareceram algum tempo depois da audição extasiada e obsessiva dos formidáveis volumes da “bíblia” erguida por Guru, ao mesmo tempo que evocavam as grandes duplas (emcee e producer) americanas dos anos 90: Pete Rock & CL Smooth, Eric B. & Rakim, EPMD, DJ Jazzy Jeff & the Fresh Prince, Gang Starr, entre outros (algum destes, aliás, expressamente enunciados na lista de influências que Maze cita em “Boom Bap”). Aqui ao lado, Pete Philly and Perquisite, por exemplo, soavam-nos aos irmãos gémeos holandeses dos Subverso. Enfim, eram belos tempos, de descoberta e aprendizagem, e, como o leitor já terá reparado, é com não pouca nostalgia que o crítico os recorda. Os Subverso, ainda que lateralmente (por só terem, à data, uma faixa cá fora), representaram e representam – ainda que hoje, inevitavelmente, com outros olhos – uma certa dimensão utópica do hip hop, enquanto projecto colectivo simultaneamente musical e cívico. É certo que hoje se fazem coisas fantásticas; contudo, sendo o zeitgeist tremendamente individualista como é actualmente (está por estudar o facto de o hip hop ter absorvido, de modo perfeitamente acrítico, as pseudo-filosofias do “empreendedorismo”, típicas do capitalismo ideologicamente mais egoístico), é difícil que a arte e, por conseguinte, expressões musicais como o hip-hop, não embarquem, mesmo que involuntariamente, nessa mesma rota, descurando uma noção de comunidade e de mobilização (Kendrick Lamar, a fazer música numa galáxia à parte, é a grande excepção a este estado de coisas).

10 Anos em Gaveta não trai aquilo que “Dá-me Um Sinal” prometia. Hip hop jazzístico de “corta e costura”, sim, mas bastante orgânico também (baixo de Miguel Ramos e teclas de Eurico Amorim, ambos músicos de grupos como os Insert Coin, Mesa ou SuperNada), fazendo do boom bap nova-iorquino a sua matriz ética e estética – “Quando o nosso coração bate, ouves boom bap!”, ouve-se, apaixonadamente, na quinta faixa do EP. Para quem anda nisto há uns anos, sabe que já é de há muito a apetência de Maze para escrever, num registo muito orwelliano, sobre a normalização/normativização do homem em sociedade, condenado à robotização uniformizadora na qual toda a diferença é vedada e reprimida, casos da estupenda “Mundo Bizarro”, “Homem Em Missão”, “Brilhantes Diamantes” ou “Tarde” (numa colaboração com os Monstro Robot – lembram-se?). Ora, é nesse mesmo papel renascentista de homem em missão, metade político metade espiritual, que Maze assina “Ciclo”, que, como o nome indica, reflecte, com notável poder de síntese, o nascer-viver-morrer (“flashback, intensa luz, MORTE”, atalha o rapper) perfeitamente inócuo, anónimo, do “homem médio” contemporâneo, o mesmo, afinal, que criou o “monstro” de que fala “O que é que nós fizemos?”. Se aí o descontentamento com o mundo assenta nas causas que Maze vai carpindo, em “Folhas de outono” (grandíssimo beat), o apocalipse é individual e carece de motivos, apenas se vislumbrado a pintura melancólica de alguém profundamente na mó de baixo – faixa que, se quisermos, é contrabalançada, na perfeição, por “Quando o Céu Desaba” (Homem Em Missão), tratado de auto-estima e auto-superação que encerra, talvez, a melhor canção de Maze até à data.

A idade, como se sabe, faz-nos perder grande parte das ilusões (as boas e as más), outra forma de dizer que ninguém deve esperar que este EP seja, passado tanto tempo, o gatilho definitivo para a estabilização dos Subverso. Provavelmente, depois deste desempoeirar do baú, tudo ficará como dantes e não mais voltaremos a ouvir falar deles (concertos?). De Maze, continuaremos a ter notícias nos DLM (mas e a solo?); é mais de lamentar, isso sim, as escassas oportunidades para escutarmos o magnífico trabalho de Soma, produtor que, somente com sete faixas, deixa uma assinatura só dele no hip hop português. Mas ainda que assim seja, só por este ressuscitar momentâneo, por este regresso ao futuro, já valeu a pena – sim, dissemos futuro, o mesmo em que gravitam Bada$$ e quejandos, pois no dia em que o boom bap for “passado”, aí sim, o título do oitavo álbum de Nas será uma verdade em forma de certidão de óbito. Maze sabe isso muito bem, sabe que, nos caminhos da arte, é sempre no “lá atrás” que está o “mais à frente”, e rimas como “clássico de progresso” ou “do velho nasce o novo” são o espelho disso mesmo.

 

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