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Fotografia: Hugo Santos
Publicado a: 02/05/2022

Cada detalhe importa.

Storm Factory: “Nós ficávamos quase como crianças à espera do que vinha do outro lado”

Fotografia: Hugo Santos
Publicado a: 02/05/2022

Quando o nome Rui Maia aparece em cena, dançar é naturalmente a primeira coisa que nos vem à cabeça, mas (surpreendentemente) desta vez não é o caso. No seu novo projecto, o músico dos X-Wife (que grava também enquanto Mirror People), distancia-se do acto de bater o pé e leva-nos antes até paisagens sonoras calmas, oníricas e contemplativas. 

O plano era Maia produzir o álbum de Giulia Gallina (The Loafing Heroes), mas o mundo dá voltas e, enquanto vivíamos numa luta à porta fechada contra um vírus, o português trocou também ele as ideias à italiana e de produtor virou colega, de disco a solo nasceu uma parceria, de músicas pop moldaram-se composições em que o piano se cruza descomprometidamente com uma electrónica experimental.

Um projecto que é uma verdadeira surpresa e, por isso, tivemos de parar para conhecê-lo melhor. Num encontro via ZOOM, os dois músicos explicam-nos melhor como se formou esta ideia, a forma como estes mundos — supostamente distintos — se encaixam, a metodologia de trabalho e, claro, as várias influências que se fazem sentir no disco.



Sei que este trabalho foi pensado inicialmente como um convite da Giulia ao Rui para este produzir o seu disco solo, e é uma bela surpresa ver o nome Rui Maia envolvido num disco como este, tão onírico, meditativo, contemplativo. Um trabalho tão distinto da música de dança, da atitude punk que associamos aos X-Wife. Gostava de começar a entrevista a falar exactamente nisso: o que te motivou, Giullia, a escolher o Rui para produzir um trabalho que era basicamente um trabalho de piano?

[Giulia Gallina] Boa pergunta! [Risos] Eu acho que isto no início não era bem o que tinha na cabeça. Quando eu pensei no Rui foi com a ideia de produzir um disco mais pop, digamos, um disco de cantautor. Só que, em algumas destas músicas que tinha feito, havia partes de piano e o Rui lançou-me a contraproposta de fazer algo completamente diferente, instrumental, que pudesse juntar os dois lados e não tanto as canções. Foi uma proposta que não estava nada à espera, estive uma semana a pensar porque para mim era um desafio, eu tinha algumas coisas gravadas só em piano, mas não era algo que pensava fazer. Mas comecei a gostar muito da ideia. 

Como surgiu então esta ideia, Rui, de misturar este universo electrónico ao piano da Giulia? 

[Rui Maia] Foi assim, eu em 2019 fui convidado a musicar o Homem da Câmara de Filmar do Vertov, e fiz uma performance ao vivo, no Teatro Ibérico, com sintetizadores ambientais, algumas coisas pré-gravadas, ruídos e foi uma experiência que gostei imenso de fazer, acabou por ficar ali o “bichinho”. Depois, durante a pandemia, também fiz um disco a solo, chamado Botany Department, também ele é todo ambiental, com alguns elementos de gravações ambiente. E o que acontece é que este é um tipo de música que gosto de ouvir, sobretudo em casa como música de fundo, discos do Nils Frahm, da Hania Rani, do Max Richter, por exemplo. Então, quando a Giulia convidou-me para produzir o disco, sabendo que ela tocava piano, pensei que seria interessante fazer um projecto assim, até porque gostei muito das composições que ouvi, achava que elas encaixam muito bem no ambiente que queria criar e que se veio a transformar nos Storm Factory. 

Falaste no filme do Vertov e a verdade é que este é um álbum bastante cinematográfico. O cinema acabou por ser uma influência na criação do vosso som?

[Giulia Gallina] Sem dúvida que essa influência do cinema é muito forte, mas acho que se calhar é algo que veio depois da criação do álbum. Pelo menos em relação às minhas composições, as influências estiveram na natureza e na tradição minimalista de compositores como o Yann Tiersen, o Philip Glass, o Michael Nyman, o Ludovico Einaudi, compositores que sempre ouvi. O resultado depois acaba por ser cinematográfico, até porque todos eles compõem para cinema, mas, ao início, o que pensei mais foi em imagens e sons da natureza, em viagens, até porque foi composto na altura da pandemia e estávamos fechados em casa, sem poder sair, sem poder viajar, que é das coisas mais importantes da minha vida. O facto de estarmos nesta “prisão” fez-me imaginar estes cenários mais oníricos, o mar, a Grécia, sítios onde queria estar mas não podia.

Curiosamente, um elemento sempre presente nos vossos vídeos é a dança. Qual é a importância da dança neste disco? Sendo que este não é um disco feito para pista. 

[Rui Maia] Foi intencional. Desde o início, quando começámos a definir o que seria o projecto, quisemos que a dança estivesse presente, até para que este não fosse um disco de apenas uma coisa, onde só há piano com um ambiente por trás. O disco acaba por estar bastante equilibrado, até porque tivemos uma altura em que íamos compondo um bocado à medida, para que houvesse um bom equilíbrio entre estes dois mundos. Não queríamos ter demasiados momentos calmos, então, para nós, acaba por ser importante ter a dança inserida nestas canções. Permite ter ali algo que fosse uplifting. 

E unir estes dois mundos foi uma missão complexa? Houve momentos desafiantes?

[Rui Maia] Curiosamente, o processo foi bastante fluído, acho que não sentimos dificuldades na criação do disco. A única dúvida que tivemos foi a questão das vozes, porque no início havia essa ideia das músicas serem cantadas. A beleza deste trabalho também está aí, nota-se que não foi um disco forçado, demasiado pensado, de ideias demasiado decalcadas. Penso que este é um álbum intemporal, que não vai soar datado daqui a 10 anos, ou com uma sonoridade demasiado desta altura.

[Giulia Gallina] Também acho que o processo foi bastante natural, até porque foi um trabalho muito de surpresas. Nós ficávamos quase como crianças à espera do que vinha do outro lado, estávamos sempre surpreendidos, e isso também se ouve no disco. Eu achei muito interessante esta ideias de colocar uma parte electrónica nas canções, porque tenho a tendência de compor em tonalidades menores, bem melancólicas, e o facto de ter algo mais uplifting é como se fechasse o círculo, é algo que complementa perfeitamente.

Vocês falaram nesta dinâmica de produzir à distância, de estarem à espera do que o outro fez, de poderem maturar as ideias antes de mostrar. Sentem que o facto de o disco ter sido produzido neste processo acaba por ajudar ao resultado final? Que este processo de partilha a distância acaba por ser um bom método para discos com este perfil?

[Rui Maia] Claro, tem muito a ver com o processo de trabalho. Este disco resultou desta forma, mas seria totalmente diferente se estivéssemos os dois na mesma sala. Se estivesse aqui [no estúdio] alguém a trabalhar comigo acabaria por ter de fazê-lo de um modo diferente, ia-me sentir mais pressionado a fazer as coisas de uma forma mais rápida. Para um disco como este, que vive muito de experimentar, trabalhar sozinho é óptimo, e eu gosto muito desse processo, de estar sozinho a experimentar. Por exemplo, se tenho gravações de campo de 15 minutos, em que depois só vou usar 10 segundos, preciso desse tempo para escolher, para mudar as tonalidades, para poder experimentar.

[Giulia Gallina] Pois, eu também acho. Eu trabalho melhor sozinha, e assim tivemos todo o tempo para processar e analisar o que vinha do outro lado, sem nos sentirmos pressionados. Foi muito bom este processo de criação. As coisas foram mais pensadas.

[Rui Maia] Estava a lembrar-me, por exemplo, o piano da Giulia, em alguns temas, são três ou quatro pianos diferentes, por vezes sobrepostos, passados por diferentes tratamentos, efeitos por vezes ligados a pedais de guitarra e isso. São trabalhados de diferentes formas até que encontres algo que encaixe na canção e que soe diferente. Para fazer isso precisas de tempo para poderes experimentar e para poderes errar.



Vocês fizeram agora um showcase, e uma das coisas que me chamou a atenção, e que achei interessante, é que o Rui, mais do que tocar, parecia estar numa contemplação do piano, quase como um observador, até que chegavam determinados momentos em que colocava algum tipo de som. O álbum vive muito desse contemplar?

[Rui Maia] É possível. Nós conhecemos as canções, mas sempre que tocamos nunca é igual, porque os sons são lançados um bocado pelo feeling que estou a ter no momento, como tu dizes. Quando acho que algo ali deve ser lançado é quando o faço, e o álbum acabou por também ser feito dessa forma, apenas, pronto, ficou registado naquele sítio, e por isso vamos sempre o ouvir nesse sítio. Mas é um bocado uma resposta ao piano da Giulia, sim, concordo com isso.

[Giulia Gallina] Até porque eu nunca faço as coisas iguaizinhas, se calhar por isso os samples também acabam por ser diferentes e obrigam o Rui a estar muito mais atento e presente no momento. Mas se calhar, se fizéssemos tudo igual, nunca teria o charme de ouvir ao vivo. O disco está vivo e deve viver também nesse momento.

Eu pergunto isto por sentir que discos como este, muito ambientais, acabam por obrigar quem os faz a se despir emocionalmente de uma forma muito intensa, a se entregar muito, a estar muito presente, comparando por exemplo com álbuns mais pop. Eu não sei se sentiram isso enquanto faziam o disco.

[Rui Maia] Sabes que eu até acho que este álbum tem um certo elemento pop, por acaso. Porque o disco vive de canções, não de peças, não é um experimental de estar gravado no momento. São canções com uma lógica, até um verso, o que é curioso.

[Giulia Gallina] Eu percebo o que queres dizer com isso. Pelo menos para mim isso é verdade. Estas composições foram muito inspiradas na tradição minimalista, e para os minimalistas cada nota que é tocada tem um significado muito grande, é muito pensada no porquê de estar ali. Não são composições de virtuosismo, mas de uma sensibilidade muito forte, muito visual, como se tocassem a intensidade de uma gota, uma gota que cai de uma folha. É algo muito intimista e que se transmite para os outros.

Esta ideia de captar sons ambiente para depois os juntarem ao piano, sejam eles manipulados ou não, é dos elementos mais intrigantes das vossa música. Como é que escolhes os sons que queres usar? O que há de especial neles que te chamam a atenção?

[Rui Maia] Sempre que recebia algo da Giulia questionava-a sobre qual tinha sido a sua origem, o que havia por detrás da composição, ou o significado do título, e consoante o que ela me ia dizendo tentava replicar esse mood da canção. Por exemplo, “Maltemi” é um tema sobre uns ventos que acontecem todos os anos na Grécia e que destroem tudo. Então nesse tema, se prestares atenção, ouves os ventos  e outros elementos que representam essa ideia de destruição que imaginei. Como é que vamos fazer esse vento? Ou vamos gravar o vento, ou podemos usar o sintetizador e modular ventos. Há casos em que o ritmo é feito com o som de latas com o pitch alterado, ou que foram cortadas de determinada maneira. A ideia é sempre gravar algo que vai de encontro a canção, mas que permita esse outro lado de experimentar uma data de sons até encontrares algo que realmente seja interessante. Mas tudo isto sem pensar muito. 

Não te sentiste a fotografar o mundo através de um modo sonoro?

[Rui Maia] Nunca tinha pensado nisso, por acaso. O que me fez gravar foi serem sons que gostei, e estar numa de captar por estar a fazer o álbum. Sempre que vou a passar em algum lado, se ouvir algum som que gosto, capto, até o faço com o meu telemóvel, porque também gosto desse lado mais rough. Passeio muito por parques aqui em Lisboa e em Aveiro, ouves imensos sons diferentes neles, desde a água a correr a folhas que pisava. Por vezes há canções que têm apenas som ambiente muito lá atrás, por exemplo, de uma biblioteca, em que ouves o folhear. Por vezes são ruídos que estão tão baixinho que só ouves se prestarmos muita atenção, mas que criam uma densidade na canção, uma base quase inaudível, mas que cria ali qualquer coisa. E depois há sons de outras fontes, como o YouTube. Vale tudo. 

Nós temos falado muito na natureza como inspiração, mas em Storm Factory há também esse lado citadino, mais ligado à música do Rui Maia. Como é que foi encontrar beleza nas cidades? Há beleza nelas?

[Rui Maia] Nós demos o nome Storm Factory ao projecto exatamente por isso. Como se fosse uma beleza fabricada.

[Giulia Gallina] Eu acho que há beleza na cidade. Podemos ver isso no vídeo da “Corporeal”, em que há uma dançarina que passa de dançar do seu apartamento para um terraço, um espaço muito citadino. O facto de vermos o que produzem as pessoas juntas num contexto cidade é uma beleza diferente. São dois extremos que se juntam num ponto especial. O Rui está num lado da linha, eu estou noutro, mas depois encontramo-nos num ponto que faz sentido.

E quando é que vamos poder ver estas belezas ao vivo?

[Rui Maia] Nós temos algumas coisas em cima da mesa, mas que ainda não podem ser faladas. Nós queremos tocar este disco. É um projecto em que acreditamos muito, que é diferente. Agora neste pós-pandemia as pessoas estão um bocado excitadas e querem música mais animada, mas acho que também há espaço para nós. Quando pudermos anunciar as datas, vamos deixar nas redes sociais e isso.

[Giulia Gallina] Fiquem atentos.


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