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Publicado a: 05/11/2016

Stones Throw: A Hora do Lobo

Publicado a: 05/11/2016

[TEXTO] Rui Miguel Abreu

 

De Jim Stewart e Jerry Wexler até James Lavelle e Chris Manak (aka Peanut Butter Wolf) há uma longa história de aventuras editoriais pautadas pelo prazer da descoberta, pelo espírito de aventura e, sobretudo, pelo alcance de uma visão traduzida no lançamento de música vibrante. A Stax, a Atlantic, a Mo’Wax e, mais recentemente, a Stones Throw são casos singulares que se souberam destacar no meio do por vezes desumano turbilhão que tem sido a indústria discográfica dos últimos quarenta anos. Obviamente, cada uma dessas editoras tem uma história particular, com diferentes graus de relevância face ao conjunto da história, mas cada uma delas soube colocar a música à frente do comércio e os criadores à frente dos produtos contribuindo assim para desbravar novos territórios estéticos.

Como nos casos da Stax, da Atlantic ou, mais recentemente, da Mo’Wax, também a Stones Throw percebeu que o caminho para a afirmação de um corpo musical coerente passa pelo estreitamento de relações com os criadores e pela implementação de condições favoráveis ao seu crescimento artístico. Isso significa, quase sempre, dar a um artista específico algum protagonismo editorial, deixando-lhe rédea livre para impor o seu discurso estético e dessa forma catalisar energias que se estendam ao restante catálogo. Foi assim com a Stax e Isaac Hayes, com a Atlantic e Aretha Franklin e com a Mo’Wax e DJ Shadow. À História, Peanut Butter Wolf responde com Madlib que se tem afirmado com cada vez maior intensidade como o peão central da estratégia da Stones Throw. Haverá outra semelhança clara entre o caso da Stones Throw e das outras editoras mencionadas: todas elas se debruçaram de alguma forma sobre momentos particulares da história da música negra tendo à frente dos seus destinos homens brancos.

Jim Stewart (e a sua irmã Estelle Axton), Jerry Wexler (e o seu patrão Ahmet Ertegun), James Lavelle e Chris Manak (aka PB Wolf) fazem parte de uma longa linhagem de empreendedores brancos com uma enorme paixão pela música negra. Em qualquer um dos casos citados, a manutenção de um estatuto independente permitiu-lhes uma abordagem respeitosa aos territórios explorados nos seus catálogos. Ertegun, por exemplo, é um turco emigrado nos Estados Unidos que desde cedo construiu uma íntima relação com a história da música negra, facto que o levou a cimentar amizades com pessoas como Duke Ellington. E até mesmo no manual que a intelectualidade de esquerda dos anos 70 ergueu para explicar a violentação sistemática da cultura musical negra pela indústria branca – Rock & Indústria de Steve Chapple e Reebee Garofalo – Ertegun sai limpo, explicando-se que a sua prática de pagar aos artistas afro-americanos com quem trabalhava era incomum e desprezada pelos “gigantes” como a CBS. Peanut Butter Wolf partilha do mesmo respeito pela história do Hip Hop e a sua Stones Throw é, no fundo, a realização prática de uma utopia de harmonia entre raças, entre passado e presente e entre diversos estilos musicais a que nem sempre o fundamentalismo rap dá a devida atenção. Como DJ Shadow, também Wolf ergueu uma visão particular do mundo alicerçada na sua interpretação pessoal dos códigos arcanos do hip hop, aprendidos ainda na pré-adolescência a ouvir os singles da Sugarhill e da Tommy Boy. O purismo de Peanut Butter Wolf vem desse período formativo e ainda hoje se sente em cada novo gesto editorial da Stones Throw. Algures entre o final do período de inocência da Old School e o arranque de um calculismo mercantil na indústria do Rap (provavelmente com os NWA e o Hip Hop da costa oeste, de onde aliás tanto Wolf como Shadow são originários), a atenção do patrão da Stones Throw terá sido desviada pelo mesmo idealismo que o fez procurar o seu primeiro contrato discográfico junto dos selos cujos artistas mais admirava. O facto de ter retido da Cultura os valores primordiais ensinados por activistas como Afrika Bambaataa e KRS One ajuda a explicar o carácter singular da Stones Throw, uma editora de hip hop, sem qualquer sombra de dúvida, que no entanto parece pairar à margem do imensamente agitado território que hoje define a “rap industry”.

É fácil minimizar a efervescência editorial da Stones Throw atribuindo-lhe rótulos como “backpackers’ paradise”, “white boy hip hop” ou “indy darling”. E isto apesar de ser demasiado tradicionalista para os seguidores da Def Jux, ter negros a mais para quem acha que as doses de melanina do catálogo da Anticon são suficientes e ser sistematicamente ignorada por alguma da imprensa de facto relevante (quando acordará, por exemplo, a Wire para o talento de Madlib?). Sem um lugar na carruagem alternativa do comboio Hip Hop e não lhe interessando os bilhetes disponíveis na primeira classe mainstream, como se move então a Stones Throw? De uma forma única, diria eu. A editora de Wolf – que recentemente quebrou a barreira das 100 edições, facto assinalado pela edição especial do CD/DVD 101 – encontrou o seu público preferencial junto da massa que pela via do culto dos valores primordiais do Hip Hop se aproximou nos últimos anos dos universos do jazz e do funk, através de um coleccionismo militante conhecido por “diggin’”. Estes melómanos rebuscam o passado com minúcia obsessiva, procurando nas já longas histórias de géneros como o funk, o jazz, a library music, a soul ou o rock as marcas genéticas do apogeu do hip hop, que garantem ter acontecido algures entre 1986 e 1994. Esta terá sido a época dourada do sampling no hip hop, quando o passado ainda guardava em cada velho disco redescoberto a promessa misteriosa de novos beats e loops que gente como Diamond D, Large Professor, Mark The 45 King ou Pete Rock usava para construir pequenas sinfonias urbanas de 3 ou 4 minutos. A Stones Throw, cujo catálogo se inaugurou em 1996, será o elo perdido entre essa harmoniosa Golden Age e o agitado presente que é feito de falsas guerras entre MC’s com carreiras geridas por contabilistas, de super-produtores que, quais designers de moda, criam novas bases sonoras à medida de cada estrela e de uma overdose gráfica em vídeos que eliminaram as virtudes da tradução pessoal pela via da imaginação das metáforas usadas nas rimas.

Com um vasto catálogo que inclui obviamente muito hip hop (do malogrado Charizma a exercícios de turntablism por DJ Design), nova electrónica (Koushik e DJ Rels), punk rock (The Cliftons, banda do irmão de Wolf), toneladas de funk (dos Breakestra actuais até todas as reedições em curso na excelente subsidiária que é a Now Again) e uma ala inteirinha só para o hiperactivo Madlib e os seus inúmeros alter-egos e projectos laterais, a Stones Throw tem proporcionado aos seus artistas o ambiente perfeito para a evolução da sua arte. Cada disco é alvo do cuidado típico de quem sabe estar a criar peças de colecção: o som é excelente (mesmo quando é calculado para não ser), as capas desenhadas com absoluto rigor estético (aprendido a estudar o design de pessoas como Bob Ciano, o director artístico da mítica CTI) e o site alvo de permanentes e pertinentes actualizações onde tudo é documentado – das festas de lançamento e críticas publicadas na imprensa especializada até às expedições de beat diggin’ levadas a cabo pelos diferentes protagonistas da editora.

E é mais do que certo que a Stones Throw assume 2005 como um ano de imposição definitiva, tal o grau de actividade que se impôs após a edição de 101. Este CD/DVD é uma espécie de ponto final num longo ciclo, reunindo para a posteridade vídeos que recusam a via fácil inaugurada por Hype Williams e uma revisitação do passado da editora pelas mãos de Peanut Butter Wolf, numa mixtape onde se oscila naturalmente entre o passado revisitado do funk e o futuro permanentemente reinventado do jazz astral de Madlib.

Agora, e quando Quasimoto, o rapper das rimas movidas a hélio que é um dos alter-egos de Madlib, tem já na rua o brilhante “The further adventures of Lord Quas”, o futuro desenha-se com a passagem pelo território da soul electrónica de inícios dos anos 80 através dos ensinamentos do broken beat no álbum “Theme for a broken soul” de DJ Rels (que Madlib confirmou recentemente ser mais um disfarce da sua múltipla personalidade) e com o espasmódico exercício de retro-futurismo assinado por Gary Wilson em “Mary had brown hair”. Gary é um renegado da New Wave nova-iorquina, um esquizofrénico criador que é uma espécie de versão masculina de Annette Peacock completamente obcecado com uma eternamente adolescente visão do amor. Como é que um disco como “Mary had brown hair” surge na Stones Throw? É um mistério. Mas é apenas mais uma prova da abertura que o catálogo gerido por Wolf tem revelado ao longo dos anos. Albergar um expatriado da Nova Iorque de finais dos anos 70 acaba assim por fazer pleno sentido numa editora que não tem revelado sinais de cansaço na sua titânica tarefa de expor o longo mapa de ADN desta Cultura.

Para o futuro próximo a Stones Throw prevê a reavaliação do passado do mítico MC Percee P e a edição de novo material da sua autoria com produção de Madlib; novo álbum do rapper Medaphor; mais maxis de Koushik; e um extenso rol de actividades com carimbo de Madlib, onde se incluem as edições legais da série de remisturas não autorizadas para trabalhos alheios nos dois volumes de Mindfusion, mais instrumentais assinados como Beat Conductor, novo disco de Dudley Perkins (Declaime a vestir a pele de um crooner com direcção musical de Madlib) e o que se anuncia como um espantoso exercício de revisitação de “Songs of Innocence” de David Axelrod no álbum do projecto Sound Directions (que Madlib também produz). Paralelamente, no campo das reedições, apresenta-se para já o sucessor de Funky 16 corners com a compilação Cold Heat coordenada uma vez mais por Egon (braço direito de Wolf e homem do leme da Now Again) e o alargamento de actividades ao campo da música psicadélica com a antologia Love’s a real thing. Claro que por esta altura já deve ser óbvio que esta enumeração revela apenas a ponta de um mais extenso iceberg: algumas das mais relevantes edições acabam por acontecer nos inúmeros singles de sete e doze polegadas que a Stones Throw também coloca no mercado (estejam atentos, neste formato, a trabalhos de Aloe Black, Madvillain  – remisturado por Four Tet!!! e Koushik – e Oh No).

Ou seja, olhar para o lado durante um segundo, suster a respiração ou pestanejar pode facilmente equivaler a perder um dos factos estéticos do ano. A Stones Throw possui um fôlego invejável e a certeza de que pelo seu catálogo passam alguns dos mais estimulantes momentos criativos da actualidade. Não é arrogância, é orgulho simples e sadio. Tal como os catálogos clássicos mencionados no início do texto, também a Stones Throw sabe que a manutenção da sua relevância passa pela atenção permanente à possibilidade de inauguração de novos caminhos pelos seus mais destacados protagonistas e, ao mesmo tempo, pelo não desprezo da retaguarda criativa, mantendo assim um pé no ainda indefinido futuro e outro no longo e vibrante legado que o passado teima em revelar a cada nova descoberta nos terrenos do diggin’. Para a sintonia ser total, não percam os desenvolvimentos dos próximos episódios em www.stonesthrow.com!

 


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Texto do arquivo de Rui Miguel Abreu. 

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