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Texto: ReB Team
Fotografia: Rui Murka
Publicado a: 04/01/2021

Recordar um nome grande da história da música portuguesa através das palavras de Tiago Norte.

Stereossauro: “Trabalhar com o Carlos do Carmo foi a maior responsabilidade no Bairro da Ponte

Texto: ReB Team
Fotografia: Rui Murka
Publicado a: 04/01/2021

O “rei do fado” Carlos do Carmo morreu na passada sexta-feira, dia em que se entrava oficialmente em 2021. As reacções desdobraram-se em publicações por esse mundo virtual e uma delas pertenceu a Stereossauro, produtor e DJ que colaborou com a lenda nacional em “Cacilheiro”, canção que fez parte do alinhamento de Bairro da Ponte, álbum editado em 2019.

Em conversa com o Rimas e Batidas, o parceiro de DJ Ride nos Beatbombers explicou como chegou ao fadista ou a importância de uma lição dada por Big Daddy Kane a The Alchemist para a sessão de gravação que tiveram.



Quando percebeste que o Carlos do Carmo ia ser um dos convidados no teu disco, como te sentiste? Era um sonho antigo?

Quando percebi que ia ter Carlos do Carmo, ou que havia interesse dele em participar num tema [meu], foi um bocado uma responsabilidade acrescida, do tipo “será que vou conseguir dar conta disto?” Foi uma coisa que aconteceu por desígnio do Becas do Carmo, que é um dos filhos dele, que já conheço há bastante tempo. Estávamos a trocar mensagens por outra razão e mostrei-lhe alguns temas do disco e ele, sem eu saber, mostrou ao pai, que gostou bastante e manifestou interesse em participar ou seja, nem era assim uma coisa muito certa. Ao mesmo tempo que fiquei um bocado assustado porque talvez fosse demasiada areia para a minha camioneta, também fiquei naquela, “ok, vou tentar responder a este desafio”. Mas fiquei bastante assustado… não estava à espera.

Não era um sonho antigo até porque eu pensava que seria uma pessoa inacessível para mim porque eu não conhecia pessoalmente nem sabia que era pai do Becas que, lá está, eu já conhecia há bastante tempo. É daquelas coisas que pensava que estava um bocado fora do meu alcance. Então, talvez com excesso de confiança, agarrei o desafio e pus mãos à obra e tipo aquela sensação do “não tenho muito a perder, na pior das hipóteses levo um não redondo”. Mas isso já estava garantido à partida, por isso só teria a ganhar. Foi uma responsabilidade muito grande. Trabalhar com o Carlos do Carmo foi a maior no disco Bairro da Ponte. Foi daquelas coisas: “tenho de parar e pensar como é que vou fazer isto” [risos]. Mas correu bem. Foi um orgulho enorme. Foi uma coisa que eu não estava mesmo nada à espera e foi mais uma das coisas a que tenho que realmente de agradecer muito ao Becas do Carmo por ter tornado isso possível. 

Explica-nos a história do “Cacilheiro”, se faz favor.

Foi através do Becas do Carmo. O que ele mostrou ao pai foi o tema que eventualmente se tornou no “A Noite”, que na altura já tinha a voz da Marisa [Liz]. Estava a meter beats numa pasta para mandar ao Becas para ele mostrar ao Camané — ele é também agente do Camané e era esse o motivo da conversa, uma possível participação do Camané — e pus aquele um bocado sabendo que o Camané não ia escolhê-lo. Foi um bocado erro da minha parte até porque o beat já estava a ser feito mas como era um bom beat foi naquela de “deixa cá ver se eu tenho aqui uns trunfos para conseguir chamar a atenção do Camané”. Esse beat tem samples do “Lisboa, Menina e Moça”, que é um tema do Paulo de Carvalho, mas que ficou “eternizado” pela versão do Carlos do Carmo. Estava a falar com o Becas e ele estava-me a dizer, “olha, o Camané escolheu o beat assim e assado e tinhas ali um que aquilo tem samples do ‘Lisboa, Menina e Moça’, mostrei ao meu pai e ele gostou muito”. Logo aí fiquei um bocado admirado, tipo assim de repente, sem eu lhe dizer de onde é que aquilo tinha samples, percebeu logo de onde era. Quando ele me diz, “o meu pai gostou muito”, eu fiquei naquela, “o teu pai gostou muito? Mas quem é o teu pai?” Ao que ele responde [risos], “é o Carlos do Carmo”. Fiquei sem resposta. Ele disse-me, “gostou muito deste tema e mostrou vontade de participar no teu disco”. E fiquei com uma bota um bocado difícil de descalçar porque aquele tema supostamente estava entregue, por isso não podia ser naquele. E estava a conversa com o Becas a ver se ele me sugeria algum outro tema do Carlos do Carmo que fosse fixe para samplar porque ele conhece como ninguém o reportório do pai. E até foi o próprio Becas que me sugeriu o “Cacilheiro” porque sendo um tema do reportório do Carlos do Carmo não teria de escrever uma letra nova e seria algo com que ele se iria identificar de certeza, portanto assim foi.

É a única versão no Bairro da Ponte, a do “Cacilheiro”, por causa disso: quis explorar esse campo, e foi uma maneira de acelerar o processo e garantir que conseguia ter um tema com o Carlos do Carmo. Peguei no tema, fui ouvindo umas quantas vezes, samplei, comecei à procura de ritmos que encaixassem ali e levei a coisa um bocado mais para o sul-americano, uma cena mais latina, com muitos timbales. Entretanto também estava a falar com o Tigerman, de fazermos um som, e mostrei-lhe ainda um esboço do que seria esse tema, nem sei se na altura lhe disse logo que seria para o Carlos do Carmo ou não, mas ele gostou logo e quis participar. Falei também com o Ricardo Gordo, que, aliás, participou em praticamente todas as malhas do disco, e os três juntos construímos o que seria um possível instrumental para o tema do “Cacilheiro”. Mas fiz a coisa completamente sem estar a pensar como é que iria correr ou não e foi dos poucos beats que eu quando enviei foi mesmo a medo. Foi daquelas coisas de “que se lixe” e carreguei no botão de enviar. Eu não fazia ideia do que é que o Carlos do Carmo ia achar do beat, o que é que ele ia achar da versão, não o conheço pessoalmente, não sei quais são os gostos pessoais, não sei que outras músicas ouve para além do fado. Foi um bocado, “olha, isto foi o que me pareceu natural, foi isto que me saiu e aqui vai disto”. Passado uns tempos, o Becas respondeu-me a dizer que o pai tinha gostado imenso e “bora para estúdio gravar”. Eu fiquei bué surpreendido, não estava à espera, estava um bocado a preparar-me para o não e para o desgosto de não ter conseguido trabalhar com o rei do fado. Mas contra as minhas expectativas, ele gostou imenso do dito e fomos para o estúdio. 

O Carlos do Carmo era um artista de espírito aberto, fã da Capicua e do Sam The Kid, por exemplo. Quando te sentaste com ele no estúdio, como é que correu a sessão? Que histórias te contou?

A grande história que ele me contou foi: o que ele gostou na minha versão do Cacilheiro foi que esse tema, composto pelo Paulo de Carvalho e, salvo erro, com letra escrita pelo Ary dos Santos, na primeira versão era uma bossa nova, portanto era algo sul-americano que eles depois decidiram refazer como fado para o disco do Carlos do Carmo. E ele estava-me a contar que tinha gostado imenso porque eu, sem saber como, tinha ido à versão inicial do tema e tinha posto ali muita percussão, muito timbale. Lá está, foi um golpe de sorte, eu não fazia ideia dessa história, de que aquilo era uma bossa nova, foi o que me pareceu natural para aquelas guitarras. Essa foi uma das histórias que ele me teve a contar.

Depois acabou por ter outros pormenores em que fomos gravar para o estúdio da Valentim de Carvalho, o mesmo onde ele tinha gravado a versão do “Cacilheiro” há 40 anos. Todas essas coisas eu não sabia, foi tudo coisas que ele me esteve a contar no estúdio enquanto lá estávamos. E o senhor tinha uma aura e um carisma… ele entrou na sala e ficou tudo calado a ouvi-lo a falar. Ele tinha ali aquela classe, um aspecto muito cuidado e muito sereno. E sempre com histórias interessantíssimas, neste caso foi a história do “Cacilheiro” e como tinha gravado naquele próprio estúdio.

Como podes imaginar, eu fiquei só calado e a absorver. Foi literalmente uma honra e uma benção: ter uma pessoa como o Carlos da Carmo a participar num disco é quase como ele dar um aval positivo ao trabalho que eu estava a fazer. Ninguém poderia pedir mais do que isso. Não haveria ninguém com esse peso e com essa importância para apadrinhar o disco. Tudo isso foi muito mais do que eu poderia esperar ou pedir, portanto foi a mesma sensação de quando te dão uma prenda de Natal e é ainda melhor do que aquilo que tu querias. Foi mesmo estar a apreciar o momento e perceber que estava a ter uma sorte incrível e um momento raro que nem toda a gente teve, que é estar num estúdio a trabalhar uma voz como a do Carlos do Carmo. São aquelas pequenas coisas de lhe estar a dar indicação com as mãos tipo maestro, de quando é que era para entrar a voz e quando é que era para sair e puxar ali um bocado mais, acolá um bocado mais calmo. Foi daquelas coisas que nem sei onde é que fui buscar isso. Foi incrível. Nesse momento até me lembrei de uma entrevista do Alchemist a falar de quando esteve em estúdio com, salvo erro, o Big Daddy Kane e que ele ao início estava mesmo, “ah, Sr. Kane, faça como quiser”. E que ele lhe disse: “não, se queres que eu te respeite, tens que mostrar que estás aqui a mandar nisto”. Eu lembrei-me dessa entrevista e, assim que o Carlos do Carmo foi para a cabine gravar, prontamente, como se soubesse muito bem o que estava a fazer, que na realidade não sabia, comecei a dar-lhe indicações com as mãos. Foi um bocado bluff, mas correu bem [risos]. 

Gostarias de o samplar no futuro? Se tivesses acesso aos masters, em que tema pegarias primeiro?

Claro que gostaria imenso de samplar Carlos do Carmo no futuro e era um sonho ter acesso aos masters. Os temas não sei, mas sei que a primeira coisa que eu faria ia ser reunir-me com os filhos dele, o Gil e o Becas do Carmo, e trabalharia nisso numa fase inicial em conjunto com eles porque são as pessoas que o melhor conhecem. Não só conhecem o reportório e sabem o que é que ele gostava como também sabem o que é que cada música queria dizer para o Carlos do Carmo. Uma coisa é eu estar com o meu ouvido à procura de loops que me interessem, outra coisa é estar com o Becas ou com o Gil do Carmo e eles dizerem, “olha, o meu pai cantou esta música nesta altura por esta razão e aconteceu isto e foi gravado ali e acolá e era isto que ele queria dizer na altura, era isto que se estava a passar no país”. Todas essas coisas que depois vão dar uma outra importância às músicas, um contexto político e social. Era uma coisa que eu não faria sozinho ou, pelo menos no início, ia pedir muita ajuda aos filhos dele que sei que são as melhores pessoas para me ajudar e certamente que iriam ser um contributo incrível. 

O hip hop português pode ainda aprender a ouvir a música do Carlos do Carmo?

O hip hop português é uma coisa demasiado vasta para eu ou outra pessoa qualquer estar a dizer, “tens que ir ouvir isto porque vais aprender aquilo”. Acho que toda a gente deve ouvir a música do Carlos do Carmo ou muitos outros fados. Sendo-se um músico português deves ter pelo menos conhecimento do que é que aconteceu antes de ti. Não só o que é que está a acontecer agora fora de Portugal, mas também conhecer o passado e o que é que já foi feito e dito. Diferentes pessoas vão aprender diferentes coisas. O conhecimento só acrescenta, não quer dizer que um produtor de hip hop ou um rapper vão ouvir um disco de Carlos do Carmo e vão mudar a sua maneira de pensar ou fazer música mas ganharam qualquer coisa. Não quer dizer que isso se vá reflectir, mas mal não faz. É como leres um bom livro ou veres um bom filme: pode não mudar a tua vida, mas durante uns momentos tiveste ali a absorver uma experiência diferente da tua. 


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