A itinerância é hoje, nas modernas sociedades contemporâneas, uma qualidade bem mais em voga em operações de dados de telecomunicações que propriamente de pessoas e ainda menos de actividades culturais. Em que roaming é commumente empregue, quase absoluto e redutor no que ao termo diz respeito. Ir de viagem ou mover-se como forma de procura e alcance de um propósito muitas vezes desconhecido, em que o momento da partida é essa filosofia de ir ao encontro do que não se conhece. Na música há exemplos como o que em filme se fixou em Vagabunden Karawane. Dirigido por Werner Penzel, documenta a longa viagem de meses protagonizada pelo grupo de krautrock alemão Embryo. Rumo às inspiradoras paragens da província de Calcutá na Índia, em 1979. Com filmagens dos próprios músicos a par de Penzel, interagindo com demais culturas e territórios no percurso. Uma experiência imensa que os trouxe enriquecidos na volta à Alemanha, fazendo deles um dos mais inovadores grupos musicais à entrada da década de 1980.
Pelos territórios, pela música, num simultâneo propósito de mostra, descoberta e revelação, o Space Festival, desde 2022, assumiu um modo itinerante na sua programação de dez dias. A antestreia do documentário Space Festival – Festival Itinerante de Música Experimental e Improvisada finaliza o programa do primeiro de dois dias de paragem em Paredes de Coura nesta edição de 2025. Nuno Alves assina a direcção do filme, e antes da projecção, no pequeno auditório do Centro Cultural local, comenta a experiência, em como a cada concerto há esse encontro do desconhecido com propostas e música a descobrir. “Quem tenha vindo a um concerto hoje, pode voltar amanhã e ter nisso uma outra experiência”, reforçando que a música aqui não se repete nem no modo, nem na forma, nem no lugar. Um documento para memória futura, de um tempo ainda bem recente, focado nos registos da edição de 2024, num exercício próprio da experimentação e improvisação para fixar a ideia de existência e do modo de fazer o festival. Num olhar desde dentro, de várias recolhas protagonizadas pelos que compõem a caravana. Retomam-se trechos das actuações de Dullmea, Michael Formanek’s Living Room, Ricardo Martins ou Pedro Melo Alves & Pedro Branco. Lugares de fala para os protagonistas que colocam o festival em andamento, Margarida Meira, Nuno Alves e Sofia Pancada; mas também para mentores da música como Samuel Martins Coelho, Miguel Ramos, João Martins, José Miguel Pinto, Henrique Fernandes, Gustavo Costa e Pedro Cardoso (aka Peixe). Mais passagens em palcos ao longo do percurso com OTTO, Camille Emaille, OGBE – Orquestra de Guitarras e Baixos Elétricos, Mariana Dionísio & Clara Saleiro, Phonospermia, Marcelo dos Reis “Flora” e as muitas vidas do próprio Space Ensemble: “Music For Short Films”, junto da Academia de Música Fernandes Fão para o programa “Cine-Música”, e com o Teatro Amador, Comédias do Minho, em “TRAMA”. Um olhar com vista ampla para o espaço onde esta música tem lugar, a servir de estímulo ao que ainda está por acontecer — a chamar por mais.


Ficar de boca aberta — para se expressar e respirar melhor, sonorizando o espaço, assim começa Almut Kühne a dar corpo sonoro à ideia contida em Stones and Seeds, junto a João Pedro Brandão em flauta traversal, saxofone alto, clarinete e pedaleira de orgão processada, e Marcos Cavaleiro na percussão e carrilhão. Foi em Fevereiro de 2024, aquando da edição desse ano do festival Porta Jazz, que Kühne, Brandão e Cavaleiro, numa inesperada e espontânea formação denominada de Vogel Brothers — entre outros três músicos, Nuno Trocado, Damian Cabaud e Pedro Melo Alves —, partilhavam saberes num ensemble solidário com músico Alfred Vogel. Ficávamos então de boca aberta perante a destreza vocal de Kühne. Aqui e agora, pequenas pedras a discursar sobre as peles e o chocalhar de bolotas nas mãos em concha propagam-se em mais que isso pela reverberação pretendida da Igreja do Espírito Santo, em Paredes de Coura. As pedras guardam uma história natural e as sementes contêm um potencial de nova vida. São como dois polos ligados num aqui e agora. De onde viemos e para onde vamos. Mapeiam-se trajectórias a cada conjunto sonoro nos primeiros respiros na flauta transversal de Brandão. Aqui escutam-se metáforas através dos sons. A voz conduz uma narrativa sem empregar uma palavra que seja, ziguezagueia no espaço com quem caminha livre num percurso motivational. Aqui a música sobe pelo lugar e ouve-se em exercícios cautos, numa respeitosa contenção. A que se deve? Ao fluxo que leva por diante e que se escuta errático, também ele itinerante. Fosse um rio e as pedras saltitariam no leito e as sementes flutuariam. Poesia sonora em igual medida se na vez fosse um vento a soprar. É um respirar a três, em sibilante medida. Um caminho longo, feito de motivações tímbricas a um ritmo dócil, sem deixar de respirar, continuamente. Havemos de lá voltar um dia pelas boas pistas deixadas no percurso.


De URTIQA parece nunca termos ouvido, foi necessário aqui chegar — ao Quartel das Artes, em Paredes de Coura, para o segundo dia desta efémera passagem. Um duo de violoncelo e harpa, protagonizado por Bruna de Moura e Frederica Campos, respectivamente, que não prescindem de electrónica conexa aos seus instrumentos de cordas. O encanto da harpa haveria de se escutar mais adiante. À medida que quem enfrentou uma noite de chuva para aqui entrar se acomodava na sala, via um cenário em movimento, lento. Como essas peças de teatro onde já se movimentam actores e actrizes de um lado para o outro em cena. Arcadas contínuas no violoncelo propagavam o mote sonoro que haveria de ser modo predominante. Em regime de nota pedal, gravitando tonal. Como se não houvera um começo ou se apanhasse um movimento ao virar da esquina, sem dele saber. Na suite de improvisação apresentada houve um jogo permanente de busca, pisando uma linha fronteira como uma corda bamba. Mais parecia uma inocente forma de experimentar entre estar do lado do desconforto ou do outro em recompensa harmónica. Entre dissonâncias e consonâncias, no acorde harmonioso que resvala no desencontro enquanto se atreve caminhar. Ressaltos no propósito consciente que assim serão de outra natureza que não o erro. Um balanço pendular, entre um lado e o outro, numa procura sem alcance em definitivo. Em que a combinação harmónica entre violoncelo, quer em arcadas quer em pizzicato, com a harpa bordejada soube a suaves recompensas que oscilaram face à aspereza das cordas preparadas. Terá sido essa dualidade o ponte de maior interesse em forma de baloiço final.


Seguiram-se as Novelo Vago, que têm no nome um emaranhado de propostas poético-sonoras a contar, apontam para um jogo de palavras com identidade. “Deus é a nossa mulher-a-dias que nos dá prendas que deitamos fora como a vida porque achamos que não presta”, deixou escrito a poetisa Adília Lopes para se apanhar e dar de volta. Vera Morais na voz e flautas, Inês Lopes no toy piano, melódica, campainhas e muito mais, e Teresa Costa na flauta transversal e sopros multicolores de brincadeira massajam-nos os tímpanos com desbravados flautins. A poesia de outros e outras intervalada pela delas, mesmo na medida em que a forma com que escrevem e improvisam nos temas se escuta poesia sonora pelo ar. Na voz, quando faltam as palavras sobejam onomatopeias, e que nada nos falte por escutar. Se a John Cage se deve essa “Suite for Toy Piano” servida para a coreografia “A Diversion” em 1948, outros lugares trazem de volta a razão de tocar em modo de brincar com temas a sério. Novelo Vago trazem a par O’Neill em “Canção de Embrulhar” com uma inocência em tudo propositada, no retomar dos versos trabalhados, quando nos traduzem por miúdos: “Boa noite meninos não / não levantar da cama / não ir pé ante pé ver os pais ao / quarto diz que eles são quatro foles / agarrados uns aos outros ar / quejando diz que é o amor” e assim por diante tal qual o poema. São poemas que se apanham por aí… como alguns instrumentos de brincar num bazares à beira da estrada, seja em Mesão Frio (como assumido) ou noutro lugar — e não arredamos pé dessa razão itinerante. De poeta em poeta, de música em música, de lugar em lugar, mesmo que sem sair por ora deste para saltar de poiso em poiso. Até que nos chegue o toque de despedida pelas palavras de outro dos eleitos, como em “Marc groets ‘s morgens de dingen” de Paul van Ostaijen, que é como quem diz: Marc cumprimenta as coisas pela manhã. Assim se fez vagamente um até à próxima paragem.

