Para quem está habituado a percorrer o espaço deste primeiro território do Space Festival, Montemor-o-Velho, a sua chegada traz o ir para longe. Fazendo uso da possível imagética dos sons, pode ver-se outro mundo por diante, mesmo que por breves instantes — o deslumbramento de uma actuação. Para quem aqui chega pela primeira vez, acresce a beleza do cenário escolhido. Uma vila que guarda detalhes saborosos, no casario da encosta do castelo, na quietude que a caracteriza, tem nestas ocasiões outros chamamentos sonoros. Os locais que o Space Festival foi imaginando palcos por aqui, desde a sua contínua visita iniciada em 2022, foram mostrando outros espaços possíveis. Das igrejas como a de Santa Maria da Alcáçova, ou as da envolvente sul das muralhas, a de Santo António e da ruína Santa Maria Madalena, até ao enternecedor Teatro Esther de Carvalho se fizeram postais sonoros nestes quatro anos de música experimental e improvisada em Montemor-o-Velho.
A edição de 2025 começa num novo espaço também para as artes. O Fórum Cultural abriu portas em Agosto e nele coube instalar a parafernália para “Omnispectrum”. É a mais recente produção saída desse lugar de pesquisa criativa do som que é a Sonoscopia. Em “Omnispectrum” os auxiliares classificativos são desafiados à partida — proposta performativa sonoro-visual. Uma narrativa experimental entre a sonoplastia desenvolvida nas duas bancadas emissoras, entre Jorge Quintela e Henrique Fernandes e a exploração das multi-projecções em tela operadas por Inti Gallardo. Desafio constante do que se poderia complementar como sons para imagens. O início é revelador na ideia em como há mais em ver o som e ouvir através de imagens. Móbil de discos metálicos que se duplica em reflexos sonoros — um de cada lado, abrem lugar à luz caleidoscópica projectada. A tela de profundidade tripartida traz reverberação ao jogo das imagens. Predominam os campos nos estímulos — visuais e sonoros. Materiais do deserto como elementos em equilíbrio — vento vindo da tela, areia como fonte de som. O eu concreto transforma-se no outro, sejam os múltiplos diálogos sonoros que se observam sejam as imagens analogicamente manipuladas na frente dos projectores que se escutam. As cadências das fitas em película tornam estáticos os movimentos esperados das bobines dos projectores, dão espaço de acção ao som como mecanismo de animismo. O que fazem em plano profundo Gallardo, Quintela e Fernandes é uma acção conjugada em permanente desafio da imagem dos sons e da sonoridade das imagens em movimento. O final torna mais evidente a fonte das ideias — o lugar de outrora na extração dos produtos do salitre no deserto de Atacama, as crostas minerais que fertilizaram outros campos distantes daqueles e que agora foram estes igual motivo.


No regresso ao sempre confortável Teatro Esther de Carvalho, Ricardo Jacinto em violoncelo, Gonçalo Almeida em contrabaixo e Pedro Oliveira na percussão no trio reconfigurado The Selva. Um disco quase a ser dado à estampa, que pode e deve para já ser escutado em ocasiões como esta. Quinta apresentação do que aí vem e que sucede ao último episódio com Camarão-Girafa de 2023. A entrada de Pedro Oliveira no trio coincide com a expansão das cordas para um vasto campo cósmico-sonoro. A sua trajectória, que desde início se foi arredando do centro gravitacional camarístico, parece ter recebido mais um impulso. A estrutura em palco replica dois blocos (partes) de trípticos em suites. Tudo começa em tensão friccionada — três arcos a desenharem amplos espectros como imagens, a definirem as linhas de fuga longínquas. Mecanismos cíclicos pelas partes tornam as estratégias repetitivas de alcance perdurado. É no violoncelo, que tantas vezes se demonstra autotrófico em feedback, que o escapismo se fortalece e para o qual a electrónica que modela o sinal se sente fundamental. Servidos pelo inquebrantável ritmo do tempo entre as cordas e baquetas, seguem rumo a um lugar distante. Uma imagem de um monólito rubro, que marca uma paisagem a que se desce cada vez que se despregam o tilintares dos chocalhos entre os gongos. Ou um voo ainda para mais longe quando os pizzicatos cedem ao arco. Já se tornou imprescindível ir ao espaço incógnito pela seis mãos de The Selva e o Esther de Carvalho foi desta feita o lugar.


Passou uma noite e estamos de volta ao mesmo lugar e nisso Nada Contra. O mesmo é dizer para a dupla formada por Francisco Cipriano e Mrika Sefa, percussionista e pianista de formação respectivamente. Neste duo experimentam as ligações entre o muito que o cruzamento de instrumentações e linguagens permitem alcançar na obtenção de outras imagens da música. Um programa feito de quatro peças que os colocam no campo da interpretação, mas com sobeja margem criativa com a qual são criadores diante da plateia. Um enxame de instrumentos em palco e que obriga a desmontagem de alguns entre as peças apresentadas. Uma apresentação prévia e útil para o que se seguirá. Primeiro “Sowing Snow in Cone Pots” de Marta Domingues, escrita em 2024 para o duo, e que conta com a presença da compositora na plateia. Trata-se de um mistério e expectativa no alimentar sonoro de dois altifalantes de cone em membrana, que respondem ao sinal recebido de dois teclados e que por sua vez alimentam o espaço sonoro com o objectos que se neles se colocam. Desde umas bolas de pingue-pongue às muitas esferas de esferovite. Um jogo visual e sonoro que faz da surpresa o interesse maior — lançando sementes sonoras a vasos. Servem a interpretação da composição de Sarah Nemtsov “White Eyes Erased”, escrita entre 2014-15. Composição para teclado MIDI frente a bateria e dispositivos de projecção de gravações discursivas e alarmes. Um regime de multi-samples vindos do teclado numa confrontação capaz de despertar imagens súbitas a cada disparo histriónico. A certo momento soltava-se a frase de John Cage “Get yourself out of whatever cage you find yourself in”.
E partindo de imagens — ou melhor, de desenhos — constantes da partitura gráfica que contem “Livro do Som”, interpretam a peça escrita por Yuna Le Quéré em 2022. Para tal, Cipriano e Sefa servem-se da mesa de trabalho pejada de idiofones — incontáveis, mesmo. Um espaço aberto que os convida a passar de interpretes a criadores. Suspeita-se ligar-se à ideia de “Das Buch der Klänge [O Livro dos Sons]” do pianista e compositor Hans Otte que partia da premissa: “O que faz um compositor com os sons?” Para o final reservam as imagens como fontes de som. Partindo desde “Deep Blue” de Michael Beil, contando com a direcção de vídeo de Norika Sefa, fazem da manipulação em tempo real audiovisual uma desconstrutiva criação. Uma vez mais retomando-se a permutação dos sentidos, permitindo um facilitar de ver o som e ouvir as imagens. Tudo a favor, portanto, deste destemido duo Nada Contra.


A fechar, com mestria programática, a passagem do Space Festival por terras de Montemor-o-Velho estiveram as Lantana. Delas sabemos a vontade crescente de trazer um sucessor a Elemental (sim!). Ensemble de improvisadoras que se apresentaram pontualmente reduzidas a quinteto. Maria do Mar no violino e acessórios sonoros, Maria Radich na voz, Joana Guerra no violoncelo com electrónica e voz, Anna Piosik em trompete e Carla Santana nas electrónicas enchem o palco bem além do facto de serem cinco — a maior formação em apreço nestes dois dias de festival. Enchem de volúpia, emanando um chamamento para longe — indo com elas, sendo levados pelo esoterismo sonoro. Uma voz que declama enquanto canta e que inventa nisso uma linguagem torna-se um instrumento de grande poder. Acede-se a um portal sem volta. Uma imagem de uníssonos pelas cordas, um som de paisagens desconhecidas revestidas de veludo. Ou a certo momento um voo raso sobre uma ondulante seara torrada pelo sol. Válidos cenários a que nos transporta a música em tempo real de Lantana. Uma combinação do som que não se repete, um tapete de murmúrios e sussurrantes segredares. Quando nos abeiramos do estado liquido, pela magia sonora vinda das electrónicas de Santana, sobressai o requinte cristalino, que o sopro de Piosik em surdina havia anunciado. Guerra que em apontamentos abriu o sentido de rumo conjugando vozeares que apontaram ao longínquo lugar sem deste fisicamente sair. De uma gratidão profunda, sempre e quando é disto feito uma partilha do espaço sonoro e visual.

