A descida aos rios que transportam as cristalinas águas do Gerês é um momento de redenção imediato, instantâneo e impossível de conter na emoção. Somos colhidos por essa força magna das correntes das águas e pensamos até onde podemos ir. Também outros, noutros territórios, viveram na intensidade, assim como Tobias Schneebaum verteu no relato dos encontros culturais distantes em Lá onde o rio te leva, nessas experiências também deixa de ser “o ignorante” para viver com intensidade e paixão o que recebe da sua entrega ao meio. Transição para os rios das serranias minhotas e os encontros com a cultura contemporânea que nos levam a ouvir o que o Space Festival tem programado, e agora levando à passagem do Coura ao Vez, de Paredes de Coura a Arcos de Valdevez. É nas margens do Rio Vez que se pode calcorrear uma das mais deslumbrantes veredas ripícolas que se conhece. Uma extensão longa, que na totalidade do percurso marcado como EcoVia do Vez pode levar-nos numa viagem de mais de 10h para percorrer os cerca se 35km de Jolda S. Paio aos fulgurantes socalcos da aldeia de Sistelo, com os pontos que pedem uma demorada e atenta pausa a serem frequentes e diversos na razão ao longo da jornada. As águas são transparentes, lívidas no espelho das ramagens, ora rápidas, ora serenas, e o sentido de pureza envolve-nos em permanência. Outro sobejo interesse deste território fica remetido ao interior da Igreja do Espírito Santo, no morro homónimo junto ao Vez, naturalmente erigido perante o espelho de água do rio, em Arcos de Valdevez. Esta igreja, hoje ocupada na função principal como Centro Interpretativo do Barroco “é uma das mais valiosas jóias” desse período cultural entre nós. Nesta construção, feita de nave única, encontramos esplendores da talha dourada dos ensambladores bracarenses Manuel Antunes e Francisco Pacheco, chamados a essa arte em 1666, para levar em diante a obra que hoje vemos. Tudo resplandece na luz da modernidade, e que os plasmas ajudam a contar na história. Uma exibição do poder eclesiástico em igual medida, que lhe está invariavelmente associado, no ouro e na história presente.
Tracapangã é um duo em criação constante, que nunca se repete, pode nisso haver um fluxo como se um rio fosse, também nesta outra conjurada invenção de Mariana Dionísio ao lado do baterista João Pereira há essa cristalinidade, desde logo pela voz. Este duo que nos mostrou um mundo novo à primeira, de caras, quando dele nos abeirámos para escutar melhor e aqui deixámos testemunho recente. Desta feita a igreja é o lugar, e serve de altar-mor para a voz, não que desta feita se faça propagar num dos dois exuberantes púlpitos da nave, mas sobre o palco-altar, rés-do-chão. É uma entrada para esse mundo novo, como se fosse a chegada a uma nova cultura, ancestral, a tal que nos conta Schneebaum. Dionísio e Pereira transcorrem novos dialectos, capazes da telepática comunhão entre as baquetas e as cordas vocais, sob um tecto que ressoa e propaga em reverberação natural. São, antes do mais, um duo acústico em improvisação. Uma teia conjugada de sons ritualizantes e palavras, de melodias em trauteios suportadas pelos desenhos das baquetas, como batutas que conduzem uma sedução táctil. Mesmo no momento em que Mariana Dionísio se ausentou do lugar — o primeiro intermezzo vivido nos dois concertos da noite —, e ficando João Pereira num desenvolto solo de bateria a explorar o espaço acústico, soubemos ouvir uma voz em falta, capaz de regressar na força vital para o desfecho ainda mais vibrante, retemperada, nessa terna e cuidada sedução sonora de mãos dadas a este duo inseparável.
A noite que traria, o segundo dos dois intermezzos referidos, em pleno espectáculo “Aether – Cruzamento”, com uns, arriscamos contar de memória, 4’33 de silêncio. Não terão sido furtuitos, mas num sentido de depurar o palato como nos comentou depois Demian Cabaud, que dele fez parte como músico no palco-altar. Aether que como definido é um cruzamento das linguagens jazz do trio Bode Wilson, de João Pedro Brandão nos saxofones alto e soprano, na flauta transversal e na pedaleira de órgão, com Cabaud no contrabaixo, Marcos Cavaleiro na bateria, e com as bailarinas Ana Rita Xavier e Wura Moraes. A música está inscrita desde 2022 no catálogo Carimbo Porta-Jazz, no entanto a leitura da expressão musical aos olhos do jogo da dança das tensões é aqui, em cima do linóleo negro. A escuridão vivida como apagão da luz resplandecente da talha dourada do retábulo e sobretudo experienciada no silêncio, como emissão musical, foi o ponto de viragem no espectáculo. Pode ter sido o oitavo quadro que a folha de sala alude com “Nascimento de um Astro”, mas remete sempre na possibilidade ao astro John Cage, que com a seminal peça ao piano na qual se inscreveu no éter essa retemperada e vibrante peça ensurdecedora de 4 minutos e trinta e três segundos de expressão maior. Até então, neste Aether, as bailarinas desencadearam jogos de toque e foge, de escondidas, numa timidez que ia sendo servida pelo discurso enigmático do trio de músicos. A luz precisa de Cárin Geada foi de uma simbiose perfeita com os relevos do retábulo, numa harmonia cénica coesa com os figurinos empenhados pelos músicos e pelas bailarinas que os tornaram esvoaçantes. Aether que do nome nos remete para o que este cruzamento ajuda a contar, numa procura da quinta-essência da física aristotélica — éter. Estado aural como requinte, um busca que permanece irresolúvel como principio de utopia. Ficámos bem mais por perto, nesse assim entendido segundo acto, num pós-silêncio depurador, sucedendo-lhe a excitação da matéria sonora, dançante, da qual se fez luz mais intensa, no retábulo barroco e em muitos de nós contemporâneos desta arte onde a música nos trouxe.