pub

Fotografia: Rui Ferreira
Publicado a: 06/11/2023

O futuro mapeado pelo Cluster – Grupo Experimental de Matosinhos e pelo trio de Jorge Queijo.

Space Festival’23 — Dia 3: encontrar o amanhã já hoje

Fotografia: Rui Ferreira
Publicado a: 06/11/2023

Ansiedade musical não preocupa, nem pede tratamentos, apenas ouvidos e um fazer acontecer. Para as despedidas do Space Festival (SF) a Montemor-o-Velho no Teatro Esther de Carvalho mostraram-se as faces de expressão mais recente, quer na idade de muitos dos executantes quer na idade dos agrupamentos, com Cluster – Grupo Experimental de Matosinhos e o trio de Jorge Queijo, João Mortágua e Olivia Pinto. O Cluster é composto pela soma vinda dos processos criativos e experimentais de jovens músicos e foi desenvolvido em 2020 pelo Programa Educativo da Orquestra de Jazz de Matosinhos. O trio de Queijo apresenta-se pela primeira vez, após residência, deixando de ser só deles a música que fazem. O SF assume também esse papel de incubador com impulso seminal. 

O Cluster teve palco no SF’22 em Monção, ouvimo-los a fazer coisas inovadoras como a utilização dos telemóveis dos presentes da plateia na construção em tempo real de nova música. Voltaram desta feita para apresentar uma colectiva construção em torno de AG – Augusto Gomes (1910-76), artista multifacetado que Matosinhos viu nascer e que o Cluster enaltece com esta apresentação também ela multifacetada. “AG” estreou-se em Julho e nasce de uma prática de trabalho assente na combinação de elementos visuais e sonoros. São cúmplices musicais em cena Afonso Leite (violoncelo), Afonso Moura & Mafalda Maia (saxofones alto), Diego Correia (voz), Diogo Faria (guitarra eléctrica), Leonor Tinoco (flauta), Marta Nabais (teclados) e Nuno Magalhães (clarinete), numa prestação que transcende a acção de tocar instrumentos. Em cena começam por desenhar em modo coreográfico a disposição dos músicos em figurado modo de invisuais praticantes levados pela vidente voz. Colocados foram o violoncelista e o guitarrista em palco, o clarinetista na coxia, a flautista no bordo da primeira fila da plateia, assim como o saxofonista, e a saxofonista é conduzida até à outra ponta da primeira fila para lhe juntar também a teclista com uma melódica em mãos. Tocam notas, num “Prelúdio”, prolongadas em regime minimal, lento começo. A actuação desenvolve-se para quadros musicados, na tela para cada peça tocada é projectada ora colagens (“Colagem I, II e III”) de desenhos e pinturas de AG ora obras selecionadas do autor neorrealista (“A Testemunha”, “Espera II”, “A Saudade”). Assim foram compostas por Catarina Ribeiro e o próprio Cluster em colectivo os temas apresentados com as imagens projectadas a cargo de Alexandra Almeida e Sílvia Brito Cunha. Mas em mais um momento pleno de criatividade inventiva o Cluster sai do lugar de palco para apresentar, em duplo tempo real, um direto via Instagram da filmagem dos desenhos de retratos riscados pelos músicos comprometidos a outra arte naquele momento. No lugar o uso de um telemóvel, irremediável mau protagonista sempre-presente, voltou a ser convocado pelo Cluster em concerto de modo necessário e adjuvante. Bem melhor que proibir é reinventar formas de incluir. “Eu já sei quem sou / Sou o que não fui” recita Diego Correia actuando como AG. Voz que se tornaria instrumento de onomatopeias com o ensemble aos comandos do director Duarte Cardoso para os quadros finais com a música a assumir uma transformação, para um maior fulgor. O Cluster explora a zona transfronteiriça da música-coreografia-imagem compondo num dinamismo que aponta para novos processos de possibilidades.



À hora de matiné de domingo estreou Jorge Queijo o seu novo trio. O baterista Queijo vive o presente com desmedida intensidade a caminho de um futuro bem próximo, pondo em práctica o que o passado recente despontou em ideias e vontades. Em 2023 está envolvido a compor para uma produção televisiva, estreia o novo trio, vê a edição de seu novo ensemble Nelembe ter lugar nas prateleiras e nas plataformas. Nele vivem “uma celebração musical onde a única regra é a ausência de regras, e a vontade de ser livre que só a música nos dá”, como o definem os músicos participantes. Nele tem lugar também o novo parceiro criativo de Queijo, João Mortágua (saxofone alto e soprano curvo). Os dois músicos juntaram aos seus instrumentos, ao som grave e certeiro que a música que querem fazer pede, o baixo de Olivia Pinto — jovem instrumentista que fez do convite uma passagem para a maioridade, neste caso também musical. Montemor-o-Velho serviu-lhes de casa ao que de novo querem fazer, em residência de 2 dias. Assumem durante a prestação que muitos dos temas nem têm nome, apenas um, e nomeia feras, que Queijo recuperou da gaveta onde permanecia desde os tempos da ESMAE no Porto. E devem ser ouvidos em aberto, sem que estejam em definitiva terminados. Teria sido belo o local programado para o concerto, a igreja medieval de Sta. Maria Madalena, em meia ruína que comunicaria com o meio construído edifício musical do trio. Há ideias de Mortágua seguidas pelos outros dois, há ideias de Queijo, e Olivia a contribuir no processo que edifica a música que se escuta. O que mais surpreende, embora se trate mais de uma confirmação, é a “voz” de Mortágua no alto. Pleno de carácter inovador, nos primeiros temas assumindo um desempenho de som anómalo do instrumento, vindo da carga nas electrónicas. É como o ouvir em constante tocar a derrapar no tempo e no modo, num registo feito de desatino assumidamente atinado na atitude. É o espaço de construções exploratórias que Mortágua guardou até aqui chegado, que não se revela nem em AXES (sexteto), nem em MAZAM (quarteto) nem em Quang Ny Lys (trio) outras formações onde é possível ouvir em composição o saxofonismo prolífico de Mortágua. Junto com Queijo e Olivia desprende uma “voz” que vai a campos mais delirantes e divertidos dos que já ousa chegar juntando a sua à voz de Rita Maria em Quang Ny Lys. Podemos esperar um Mortágua a chegar ao momento onde vem “recobrar a seriedade que tinha em criança ao brincar” como escrevia Nietzsche acerca da maturidade humana. Queijo expande o seu baterismo alcançando estadio de grande fulgor, levantando-nos do chão, experimenta além das peles e címbalos o instrumento e abraça geografias de influências que chegam desde África, como revela na apresentação do tema fecho de concerto. Olivia é segura e comedida, conduz o rumo do tempo neste espaço que se afirma de liberdade (re)creativa do trio que anuncia um amanhã a que devemos estar bem atentos.

Ficam as despedidas para Montemor-o-Velho, com a suspeita convicta de que o SF deixará igual perfume musical, nos outros territórios onde segue em digressão exploratória até dia 12.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos