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Fotografia: Filipe Barreiro
Publicado a: 17/11/2022

Fora do lugar.

Space Festival’22 (Montemor-o-Velho) – Dia 3: a galgar as margens

Fotografia: Filipe Barreiro
Publicado a: 17/11/2022

Derradeiro dia de SF’22 em Montemor-o-Velho, onde o Mondego tem por costume transbordar as margens. Foi algo como isso o que aconteceu em versão sonora, sem que dessa coincidência de factos se apercebessem, por certo, Krake e Cíntia, os nome chamados para “inundar” a sala do Teatro Esther de Carvalho na matiné de domingo, 13 de Novembro.

Krake é o alter-ego usado por Pedro Oliveira no ataque a solo para bateria preparada. Surge em palco no Space Festival sob um ténue mas confortável foco de luz, o suficiente para saber onde colocaria as baquetas e a nós para notarmos como o instrumento que ali estava era para lá de uma bateria. Instrumento esse que se notava acrescentado com mais apetrechos, tais como molas e um par de cordofones inspirados, quem sabe, em koto. E com um baterista a começar por tocar em pé e a usar um arco para começo de acção, seria de esperar tudo menos uma prática convencional de bateria. O início faz-se pelas arcadas a fustigar as bordas dos címbalos, e em doses abusivas adensa a atmosfera da sala em tons metálicos. A tensão é intervalada pela ida às peles, que por ora são do bombo, forte e penetrante no registo. E nisto está montada a teia sonora de base, sobre a qual se irão, daí em diante, sobrepondo múltiplas camadas já obtidas com recurso a baquetas percorrendo as peles e címbalos. Este baterismo de Krake traz uma dimensão maior, para além do reconhecível espaço que guardamos para este instrumento. De um certo modo deixa de ser apenas um meio de percussão para ser também um de expansão sonora. Pelo recurso aos tais dispositivos — tipo kotos — que estão posicionados sobre os tímbalos e que assim lhe emprestam potência de som, devolvem um modelado ondulante o espectro sonoro em oscilantes constantes. No que transparecia como um contínuo teve um momento de calmaria, quase silenciosa, a que Krake retoma o pulso servindo-se da sua voz para um curto mantra que daria a sustentação dali em diante. As baquetas dão lugar a maracas, e a realidade vira para uma cadência em transe crescente. Somos convocados para voltar com os pés ao chão e sentir o ritmo desafiante, chamativo. A complexidade aumenta, muito à custa da energia imposta e com recurso a mais objectos trazidos à cena percutiva. São nisto convocadas taças metálicas e pratos soltos que deambulam sobre as peles ao ritmo que chega a pontos desconcertantes. Saltam, dançam, pululam e nós também, sem levantar da cadeira. Entram chocalhos que badalam, e Krake não se contém e leva-os para mais longe, até nós. Deixa a bateria a “tocar por si”, num suspensão em contínuo sonoro e sai da boca de cena com os chocalhos nas mãos, a tocar, rodeia a plateia, em xamanismo, saindo pela porta dos pares e voltando pela dos ímpares, e ficamos envoltos, sem saída livre para fugir daquele transe sonoro. Regressa ao seu dispositivo-base e finda tudo, deixando cair subitamente o ritual por terra. Foi avassalador e demonstrativo de onde se pode chegar tendo uma bateria por diante. Ou terá sido bem mais como dela se consegue sair?

Pausa para retemperar e degustar o Alvarinho de honra. Dois dedos de conversa enquanto no palco era acomodado o dispositivo para os Cíntia.



Cíntia são proventos, o que há-de vir. Do que já se ouviu deles e do que se escreveu partimos com expectativa para o concerto. Focar este trio na idade dos seus músicos é talvez redutor. Por um lado pela música praticada mas por outro justifica-s pois há essa enorme possibilidade do muito que estará por vir deles. Razão de sobra para verem incluído no catálogo da Cena Jovem da Jazz.pt o seu disco de estreia, Sítio. E Cíntia são: Tom Maciel no teclados e sintetizadores, Simão Bárcia em guitarra eléctrica e electrónicas e Ricardo Oliveira na bateria. 

São literalmente chamados ao placo, um a um, pela voz oculta de um deles. Trio de jazz, ou não-jazz. Isto não pela falta de baixo ou de algum instrumento de sopro, disso já vimos acontecer e chamar-lhe jazz, mas por outra razão desafiante que se entenderá concerto adiante. “Fora do lugar” pode bem ser um descritor desta música que nos trazem. Despegam o concerto de Sítio para lá nos colocarem de imediato, nesse lugar, o deles, claro está, e que passa a ser o nosso também, pelo menos enquanto ali estiverem a tocar. O psicadelismo é uma das linguagens que ocupam esse sítio, mas não só, com Maciel a fazer notar isso mesmo pela estrutura de notas que produz das teclas de que se ocupa. Bárcia por outra está ocupado em três patamares na plataforma onde encontra comando para electrónica, nas cordas da guitarra, e no conjunto de pedais no chão, e com isso desvenda sonoridades que nos surpreendem a cada impulso. Se estivéssemos de olhos fechados, não saberíamos de onde provinham. Oliveira é o garante da sustentação, na firme e concentrada dose do ritmo produzido na bateria. Começam de forma subtil como que ajustando-se no lugar ocupado. Fraseados descontínuos para as teclas, riffs isolados nas cordas e toques suaves nos pratos e peles. Porém, logo ao terceiro tema, apresentado “Comboio das 5:30” estavam em estado de sítio, e nem foi preciso ver as horas para sentir que aquele “trem” estava a tempo e horas a chegar, ou mesmo até adiantado ao presente, ou então éramos nós que até então estávamos atrasados para esta música. Música que para a descrever pede em igual medida o que nos devolve, outra dimensão da escrita. É puro deleite extravasado das teclas de Maciel, onde tudo o que houver para carregar é tocado, mas nunca à toa; onde Bárcia aumenta e expande, com a sua guitarra, a expressão da diversão assumida. Talvez seja pelo toque compenetrado da bateria de Oliveira que lhe possamos chamar jazz? E se for preciso nem há que canonizar esta música. Encaremos que talvez essa seja uma armadilha montada. Passam por “Exercícios de Desconcentração” e “Jetelegue” para em seguida ficarem “Dois Corvos Numa Esplanada”. Nesta última estabelecem um diálogo que impondo uma libertação vocal à vez, nela expressam homenagem a dois compositores predilectos, Frank Zappa e Hermeto Pascoal. Há laivos disso mesmo na música deste trio , mas isto fica aqui escrito apenas porque houve a confissão disso mesmo pelo próprio Maciel na apresentação do tema em palco. Bem mais útil é deixar a música de Cíntia desamparada de muletas, que seja a deles próprios antes demais. De momento é a que se ouve em Sítio, embora assumam que há já outros temas na calha, mas ainda é cedo para tal. E isto dito por quem está num tempo adiante deste presente, ou pelo menos a tentar torná-lo mais futuro. “Teia” é tecida ali em palco, e envolve-nos que nem presas fáceis daquela música. Nisto somos convocados para uma “Introspecção Mística”. Convocado estava Gilberto Gil, que num “sample” surge para voltar a contar, em sua defesa, o uso da maconha, aquando da sua detenção pelo regime ditaturial militar brasileiro. E foram este músicos que nos haviam ainda de servir “Vitamina de Abacate” para sorvermos até à última gota, naquilo que é uma paródia sonorizada em que se transforma o diálogo estabelecido entre uns registos discursivos do Pastor Silas Malafaia, disparados pelos pés de Bárcia, e as respostas sonoras destes músicos a tamanhas manifestações de inquieto espírito humano. Com a sua vinda Cínta traz mais, transborda margens e galga o que de barreiras existir.

E vamos ao disco Sítio para nos situarmos melhor. De lá retirarmos a citação precisa de Gil tão a propósito e contemporâneo: “A gente ’tá vivendo momentos em que se busca toda uma descontração com relação a novos hábitos, formação de novos padrões, de novos conceitos, sobre atitude social, sobre comportamento particualr, sobre respeito à vida privada”.

A próxima paragem para este “galgador” de margens sonoras que pretende ser Space Festival é em Monção, de 18 a 20 de Novembro.


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