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Fotografia: Filipe Barreiro
Publicado a: 16/11/2022

Música para filmes.

Space Festival’22 (Montemor-o-Velho) – Dia 1: sonoplastias em tempo real

Fotografia: Filipe Barreiro
Publicado a: 16/11/2022

Este que é um programa itinerante de concertos de música exploratória e improvisada teve no Teatro Esther de Carvalho em Montemor-o-Velho a sua incursão mais a sul. Com partida dada em Paredes de Coura, efectuou uma paragem em Ponte de Lima e seguirá viagem até Caminha, com passagem ainda por Monção. É em si mesmo uma imaginária composição de carruagens com músicos que trazem na bagagem o mais criativo que se vai fazendo por cá.

Neste percurso outonal que decorre ao longo de Novembro, entram uns passageiros e saem outros, como acontece em qualquer viagem com paragens pelo meio. No dia 11, o primeiro de três dias, desceram em Montemor para subir ao palco do Esther de Carvalho, Vera Morais e Hristo Goleminov, e mais tarde o Space Ensemble (SE) com reserva de lugar para 10 dos seus habituais elementos (Nuno Alves, Eleonor Picas, Sérgio Bastos, Jorge Queijo, Samuel Martins Coelho, Miguel Ramos, José Miguel Pinto, João Martins, João Tiago Fernandes e Henrique Fernandes). Aos primeiros coube trazer música a partir de um filme ao passo que os segundos fizeram músicas para filmes, digamos (em resumo) que se tratam de sonoplastias em criativas doses de plasticidade sonora.

Arrancam à boca de cena, neste que é provavelmente um dos teatros mais pequenos e envolventes que que há em actividade, a dupla Vera Morais (voz) e Hristo Goleminov (saxofone tenor). Na bagagem trazem o recém-editado álbum de estreia Considered the Plums (2022) com selo (e) Carimbo Porta Jazz. É música feita a plenos pulmões; e se as conversas podem ser como as cerejas esta música é no mesmo sentido como as ameixas: umas pedem outras. Confessam o seu enredo ao longo do repertório trazido e de como tudo começou num filme de Jim Jarmusch, Paterson, em que foram colher a poesia de William Carlos Williams, “local” onde Jarmusch também apanhou o título para o filme. 

Os primeiros sons são de trauteios avulsos, improvisados, que os lábios modelam entre respirações em forma de correntes de ar, e fica a deixa para a outra voz em palco poder entrar. A voz através da palheta de Hristo, que projecta vagarosamente notas sustentadas, com recurso a uma respiração contínua no instrumento. Num tema de improvisação livre, irrepetível portanto. Depois entra a poesia de Carlos Williams cantada por Morais, que dos temas vertidos em disco surgem primeiro “The Term” e “The Bare Tree”. À poesia cantada, susurrada e dita por Morais envolve-se a harmoniosa musculatura sonora do saxofonismo de Goleminov. É nas deambulações entre as dissonâncias que nos dispersam na atmosfera sonora criada e as consonâncias atingidas pela voz e saxofone que viajamos. É uma música feita de modo simples mas que alcança uma expressão enriquecida e que surpreende. Ouviram-se outros dois temas mais desse cancioneiro de ameixas, “The Soughing Wind” e “To a Poor Old Woman”, com Morais a desgustar as palavras em anagramas e permutações várias em frases possíveis conjugando good, taste, too, to … Goleminov faz-lhe réplica jogando nas chaves do seu instrumento. É todo um saber fazer que resulta num sabor primário para quem ouve. Esta música é plena de algo primordial e ancestral, que fica bem expressa na vocalização de chamarizes de animais, como habilmente ouvimos recitarem pastores. Houve tempo para “Grumos”, tema instrumental composto por Goleminov que seria contraposto com um outro de autoria de Morais, “Fog”. Neste último, dando voz ao seu poema, confessa o seu encanto pelo nevoeiro: “I like to walking through there”. Findam a prestação justamente com “This is Just to Say”, e ficava dito, cantado e tocado “Considered The Plums”.



Após intervalo, com direito a um copo de Alvarinho, seria a vez para o Space Ensemble, eles que “transportam” a razão deste festival. 

É certo que o placo do Esther de Carvalho é exíguo, mas houve espaço para acomodar bem este amplo ensemble. Vieram 10 músicos a Montemor e muitos mais instrumentos, que iam de pequenos idiofones à grande marimba, passando por uma imponente harpa. Duas alas de instrumentos e uma tela branca ao fundo recheavam o palco e a meio dois plasmas, dispostos em V, que dariam a cada ala de músicos a cadência das imagens em movimento. Ainda bem que não havia fosso de orquestra … correndo-se o risco desta bela parafernália estar lá toda enfiada. Sem bambolina alguma suspensa, ao invés estavam dispostos numa ala a harpa de Elionor Picas, os teclados e sintetizadores de Sérgio Bastos, a mesa para a electrónica e brinquedos de Nuno Alves; e na ala oposta os saxofones, clarinete e melódica de João Martins, o baixo de Miguel Ramos, uma mesa com ideofones, guitarra acústica e violino para Samuel Martins Coelho, guitarra eléctrica de José Miguel Pinto, a bateria de Jorge Queijo; e ao fundo sob a tela a marimba para João Tiago Fernandes bem como o contrabaixo eléctrico e o acordeão diatónico de Henrique Fernandes. 

No disco recém-editado deste ensemble Music For Short Films Vol.1 cabem ainda mais músicos (13 no total) para além dos que se apresentaram em palco. O quadro síntese, que ilustra o formato físico do registo, elucida bem quem toca o quê e em qual das 11 composições gravadas. Alves, a quem cabe a direcção artística do Ensemble, haveria de esclarecer, mais adiante, que em palco tocariam composições do disco e outras fora dele. O registo é uma mostra de música para curtas-metragens, sobretudo de animação, que começou em 2005. É uma actividade de programas sem paralelo entre nós. 

Em Montemor começam a sessão da noite, depois de terem tocado para um público escolar à tarde, com a animação Mal de Terre (2012) da realizadora Olesya Shchukina e que conta a história do regresso a terra de um marinheiro russo após a sua grande viagem. A viagem sonora foi composta em tempo real por harpa, teclas, electrónica, bateria, guitarra, baixo e voz. E nisto seriamos confrontados com uma certa dualidade insuperável, entre o olhar a tela e o ver a música acontecer vinda de cada um dos músicos. Talvez a experiência numa sala ampla possa dar esse duplo prazer em simultâneo, ali revelou-se um confronto permanente. A guitarra dá lugar ao violino nas mãos de Samuel para a projecção de nova curta, Little Boat (2011) de Nelson Boles, com o SE a mostrar toda uma roupagem onírica para acomodar as imagens em movimento. Seguimos no programa de aventuras marítimas, a que foi dado o engenhoso nome de Piratas e Sereias, Ostras e Baleias, com a animação Rendez Vous (2010) de Titouan Bordeau, num filme de animada pirataria. O SE prossegue em incessante eficácia sonoplástica. Neste filme confessamos que pela sedução das imagens e habituação ao cenário, desligamos um pouco mais a atenção prestada ao exercício sonoro dos músicos. Para fechar este primeiro ciclo do programa do mar, projectaram e musicaram Tsunami (2015) de Sophie Kampmark, numa animação da acção, que o título revela, vivida pela realizadora em Tóquio em 2011. De referir que esta composição que foi o primeiro avanço do albúm do SE. Os desenho animados são de uma beleza apaixonante, e que o SE soube igualar com dose de mestria. Destaque para o som envolvente vindo das taças tibetanas operadas por Martins Coelho.

O filme-concerto assume outras latitudes com a projecção de filmes do programa Filmes da Terra do Pai Natal. Consiste em animações de plasticina com recurso à técnica de stop-motion pela dupla finlandesa Virtanen e Härkönen para a série Turilas & Jäärä (2001), da qual se projectam um par de episódios, “Purkapaiiva” e “Liftari”. Para este efeito o SE modifica-se, e entram em cena Henrique Fernandes no contrabaixo e acordeão diatónico, João Martins nos sopros e Tiago Fernandes na marimba e percussões. A sonoplastia adquire retoques de uma música concreta, sobretudo para reforçar planos de acções da narrativa, tais como o corte de vegetação perpetrado por uns “bichos maus”. Henrique faz um uso expressivo e versátil do seu minimal contrabaixo e mostra-se multifacetado ao abordar o diatónico fole e ainda um serrote de arco. Martins por seu lado traz a palco ou, melhor, aos filmes sons que estamos mais habituados do ideário musical infantil, como o da melódica. Mas é na acção percutiva de outro Fernandes , na marimba, que a magia tem verdadeira dimensão. Com esta renovação em palco, enche-se ainda mais o arsenal do SE e isto eleva-o para outro patamar e deveras orgânico. 

Voltam as atmosferas marítimas. Volta-se ao programa Piratas e Baleias… volta a permutar o SE, isto para se ver e ouvir duas absolutas pérolas nesta simbiose cinema-concerto em tempo real. Crabe Phare (2016) de Gaëtan Borde e Fisher (2011) de Yoram Benz. A incrível animação criativa posta em evidência nestas duas obras dá aso ao SE para uma plena sonoplastia exploratória.  

No fim o que se pede é quem leu vá ver; ou que quem já viu algumas das curtas referidas as vá ouvir também junto deste colectivo que impressiona. O SE volta a encantar seguramente assim que se sentar para ver e ouvir o programa preparado para o dia 26 de Novembro em Caminha, para encerrar o Space Festival’22… estaremos para isso a caminho de Caminha. 


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