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Fotografia: Miguel Estima
Publicado a: 26/11/2022

Entre o silêncio e o sonho.

Space Festival’22 (Caminha) – Dia 1: longe do centro, perto do coração

Fotografia: Miguel Estima
Publicado a: 26/11/2022

A economia de escala aplicada aos festivais de música raramente resulta: quase sempre aumentam-se audiências na razão inversa com que se baixam critérios de qualidade artística. Vender bilhetes, sobretudo quando tal objectivo procura alcançar números na ordem dos muitos milhares, implica preocupações que não se compadecem com ideias de desafio, choque, risco, disrupção e até ruptura. Para encontrarmos esses vectores em plena função num cartaz há que fugir dos centros — muitas vezes geográficos, mas sobretudo da atenção mediática — e procurar em lugares como Viseu e Braga, Guimarães e Coimbra, São João da Madeira, Famalicão, Évora (tudo locais que visitámos musicalmente nos últimos meses…) ou, no caso do Space Festival, em espaços de um percurso minhoto desenhado entre Paredes de Coura, Monção, Ponte de Lima e Caminha, com um significativo desvio por Montemor-o-Velho, localidade a meio caminho entre a já mencionada “cidade dos estudantes” e a Figueira da Foz. Por aí, cruzámo-nos em tempos recentes com propostas musicais que não temem evitar a norma, arriscar o confronto com novos públicos usando verbas de diferentes plataformas (das autárquicas às estabelecidas pelo actual governo) para darem espaço a projectos que, de outra forma, não teriam qualquer hipótese de se fazerem ouvir. E isso também importa.

Na derradeira etapa do périplo do Space Festival encontra-se Caminha, cidade na fronteira do Minho com a Galiza, espaço de transição entre mundos, culturas e territórios que acolheu, nesta passada sexta feira, concertos de Margarida Garcia e do novíssimo projecto do guitarrista André B. Silva, Sonhário, que subiu ao palco do centenário e belíssimo teatro Valadares em substituição do Rite of Trio, projecto que também tem Silva ao leme, mas que não se pode apresentar devido a súbito problema de saúde de Pedro Melo Alves (que através das redes sociais nos deixou saber que já está tudo bem — maravilha!).

Um evento como o Space Festival — tal como acontece com outros como o Semibreve, Que Jazz é Este?, Jardins Efémeros, Imaterial, Guimarães Jazz, Mucho Flow, Jazz ao Centro, etc. — proporciona um outro tipo de experiência: desde logo uma possibilidade de contactar de forma muito mais próxima com os territórios “periféricos”, com tudo o que isso implica ao nível da fruição de diferentes patrimónios culturais que se estendem dos museus à gastronomia, da arquitectura à paisagem natural; depois, uma maior proximidade com os artistas, tantas vezes figuras de corpo presente nos mesmos espaços em que a música acontece, algo que contrasta com as inalcançáveis estrelas que preenchem os lugares cimeiros dos cartazes dos tais eventos de maior escala. Junta-se tudo e o que se recebe é realmente extraordinário.

Na sexta-feira, o Valadares começou por acolher a contrabaixista Margarida Garcia que nos presenteou com uma ode ao silêncio, uma delicada apresentação em que tocou todo o seu curioso instrumento de construção polaca, contrabaixo eléctrico de esguio corpo sólido em mogno de que extraiu drones de uma estonteante subtileza. A música de Margarida Garcia é ambiental no sentido em que habita as margens do silêncio, entrelaçando-se com ele em ténues jogos de luz e sombra, umas vezes fugindo dele, outras abraçando-o como uma inevitabilidade.

Nessas tangentes, sempre altamente processadas, Margarida encontra um espaço de discreto maravilhamento, procurando na harmónica reverberação desenhada com todo o cuidado com arco sobre cordas, mas também com o que parece ser uma bola de borracha que faz vibrar a madeira nobre o lugar onde os nossos pensamentos podem escapar ao presente. Sem proferir uma única palavra, Margarida Garcia disse muito. 



O final da primeira noite coube então a Sonhário, aventura de exploração da onírica dimensão em que se entra quando fechamos os olhos que André B. Silva protagonizou juntamente com João Pedro Brandão (saxofone e flauta), Sérgio Tavares (contrabaixo) e Miguel Rodrigues (bateria).

No final do concerto, o líder guitarrista descodificou tudo o que nos apresentou: quando por força maior, apenas há alguns dias, Pedro Melo Alves se viu obrigado a escusar-se a esta apresentação, André esboçou, numa madrugada de insónia, o projecto que ontem desvendou. Os seus absurdos sonhos (não são todos assim?) de elefantes bebés, tarolas feitas de rede com carne dentro, Bagão Felix, exposições estranhas são relatados com a sua voz lacónica, nuns casos, ou reproduzidos a partir do telemóvel na voz de amigos, com o som a ser captado e amplificado não por um microfone, mas antes pelos pickups da sua guitarra, noutros. A intenção parece ser a de nos desligar no momento e de projectar as nossas imaginações para esse reino onde se voa ou se mergulha em abismos, onde os animais falam e as leis da física não contam para nada.

Com “dream catchers” (tinha que ser…) pendurados nos suportes de microfones e tripés de instrumentos, André B. Silva conduziu o ensemble por uma música altamente abstracta, muito textural (escovas na bateria, arco no contrabaixo, efeitos de amplificação harmónica na guitarra e saxofone/flauta), altamente atonal, com as pautas para todos os instrumentos a sublinharem a intencionalidade de tudo o que por ali se escutou. Seria interessante escutar esta música como banda sonora alternativa para as sequências surreais de Spellbound, o filme de 1945 de Alfred Hitchcock que contou com cenários concebidos por Salvador Dali.

No final da noite, o velho bar ao lado do teatro serviu de encontro entre músicos, gente da organização do festival e algum público. Política, arte, vida e gastronomia foram assuntos de conversa noite fora. A memória não consegue evitar guardar estes momentos todos. Qual Instagram, qual quê…


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