Decidiu lutar como uma soldjah e tem conquistado o mundo com coragem, elegância e determinação. A celebrar dez anos de carreira, Soraia Ramos é indiscutivelmente uma das mais versáteis e criativas vozes da música cabo-verdiana e afrodiaspórica contemporânea, conquistando públicos que transcendem fronteiras nacionais, estilísticas e geracionais. Na bagagem transporta uma história de luta e resiliência aliada a um timbre com raízes fundas na terra e a um coração aberto ao mundo ao qual é impossível ficar indiferente.
Com raízes em Cabo Verde, a cantora nasceu em Portugal e cresceu em França e na Suíça, onde descobriu que o seu futuro podia passar pela música. Um sonho difícil de alcançar, o que deu ainda mais valor e sentido a cada conquista que foi saboreando ao longo da caminhada. Até porque neste percurso nada lhe foi oferecido e, como nos conta em entrevista, para aqui chegar teve se agarrar com todas as forças ao seu sonho, ao seu instinto e à inspiração da sua família.
Confiante no caminho, construiu a pulso uma carreira que financiou com o seu próprio trabalho e onde teve de aprender enquanto fazia. Nesse processo, terá sido sua abertura de espírito e de ideias que lhe permitiu construir uma identidade capaz de desafiar os traços rígidos que todas as fronteiras erguem, construindo uma sonoridade que é um verdadeiro cocktail, nascido nos trânsitos que conectam a música negra global, sem nunca esquecer as suas raízes cabo-verdianas. Foi com a música, aliás, que se conectou ainda mais com essas raízes e com a história de um arquipélago que é também a história dos seus avós, referências maiores na sua vida e pilares cruciais nesta história.
De tudo isto e muito mais falámos nesta conversa que antecede o seu concerto no Theatro Circo, em Braga, no próximo sábado, dia 14 de setembro, bem a tempo de soprar as velas ao primeiro aniversário do seu álbum de estreia e de celebrar os dez anos de uma carreira que tem todo um futuro pela frente.
Estás a celebrar dez anos de carreira e o primeiro aniversário de Cocktail, o teu álbum de estreia. Na música “Um Pouco de Mim”, que lançaste em 2014, cantavas que decidiste “lutar como uma soldjah sozinha”. Olhando para estes dez anos, que balanço fazes e quais foram os momentos mais marcantes desta tua caminhada?
Foram vários e aconteceram muitas coisas boas. Foi um caminho longo e o meu álbum veio trazer uma nova chuva de fãs de vários países e estilos musicais, do rap ao trap, do R&B à música mais tradicional de Cabo Verde. Acabei por abrir mais um pouco o meu leque e sinto que hoje a minha música acaba por representar quem é realmente a Soraia. Esta sou mesmo eu, esta pessoa versátil, que gosta de se aventurar em vários estilos musicais. Tem corrido super bem, as pessoas receberam muito bem o álbum e estou a pisar palcos incríveis.
Imaginavas há dez anos que um dia pisarias alguns dos palcos por onde tens tocado?
Não, não de todo. Por exemplo, palcos como o Rock in Rio ou do Afro Nation, são palcos enormes onde via tocar alguns artistas incríveis de que era fã, mas nunca imaginei que ali tocaria. Só tenho a agradecer por tudo o que a minha carreira me tem dado.
Imagino que o Coliseu deste ano também tenha sido um momento marcante para ti.
Sem dúvida. Quando me disseram que íamos fazer o Coliseu e eu disse não, porque não achava que fosse ainda o momento ou sequer que conseguiria encher a sala. Mas a minha equipa disse-me que era este momento, que já estava marcada a data e ia acontecer. Eu só pensei: “Meu deus, meu deus…” [risos]. Mas acabámos por esgotar o Coliseu, algo que nunca pensei. Encher um Coliseu acaba por te dar uma força maior e uma vontade para fazer mais. Hoje em dia já consigo dizer que tenho a vontade de fazer um Campo Pequeno e já consigo sentir-me capaz de poder atingir isso.
E sentes que essa chegada a públicos diferentes, quer do ponto de vista estilístico, quer do ponto de vista até geográfico, foi sobretudo uma conquista do teu álbum de estreia?
Acho que já estava a começar devagarinho, mas sem dúvida que o álbum deu uma grande ajuda porque as pessoas perceberam o conceito. Eu tinha medo de que não percebessem o porquê de cantar tantos estilos, em português de Portugal, do Brasil, em crioulo, um bocadinho em francês… O álbum acabou por ser também esse cocktail de línguas, de emoções e de histórias e as pessoas perceberam o que quis transmitir.
Na abertura do teu álbum, em “Mais de Mim”, cantas que “Música carrego desde o berço / Ninguém conhece o struggle do começo / Mas eu conheço, e viver disso não tem preço”. Voltando um pouco atrás na história, como é que começa esta tua relação com a música? Indo até onde a tua memória consegue alcançar, quais são as primeiras memórias musicais que tens?
As minhas primeiras memórias começam na janela da casa da minha avó, onde me lembro de cantar para as vizinhas. Elas diziam que cantava bem, mas nessa altura ainda não tinha percebido que era este o meu caminho. Eu gostava de cantar, mas nunca pensei que iria fazer disto o meu trabalho.
Isso era na Arrentela?
Exatamente.
E em casa dos teus avós ouvia-se muita música?
Muita, sim. O meu tio também era cantor, tinha um tio que era rapper também, então acho que já vem da família. Tenho muitos tios também em Cabo Verde e eu sou sobrinha do Princezito, acho que a música já vem desse lado familiar [risos].
E em casa ouvia-se mais música tradicional cabo-verdiana, mornas, coladeiras, funaná, ou também outros estilos musicais?
Ouvia-se de tudo um pouco. Quando estava com os meus avós ouvíamos mais mornas, coladeiras, funaná, música da terra. Mas depois eu entrava na MTV e ouvia a Rihanna, Beyoncé, o Chris Brown, ouvia um bocadinho de tudo.
Sentes que esse cruzamento entre a música negra americana e a música tradicional de Cabo Verde se reflete também nas influências do teu álbum?
Sim, sem dúvidas. Conseguimos, por exemplo, ter ali um R&B e ao mesmo tempo um ritmo que vem da terra. Viajamos por muitos lados com este cocktail e eu sou tudo isso.
Cantavas para as tuas vizinhas, mas antes de começares a cantar profissionalmente passaste por muitos outros trabalhos. Quando é que percebes que a música não era apenas algo tu gostavas de fazer, mas que também podia ser a tua profissão?
Acho que foi a seguir a um concurso de canto na Suíça em que a minha tia me inscreveu. Eu não queria muito fazer, mas ela inscreveu-me e acabei por ganhar. Acho que aí alguma coisa mudou e achei que podia ter um futuro, que havia alguma coisa para ser conquistada. Então comecei a fazer covers de cantores que me inspiravam, os vídeos começaram a ter milhares de visualizações e decidi focar-me em mim mesma e começar a escrever músicas baseadas naquilo que eu vivia.
Todos nós conhecemos gente muito talentosa na música, mas que nunca se conseguiu profissionalizar. O que é que achas que no teu caso fez a diferença?
Foi preciso eu batalhar muito sozinha, sabes? Foi preciso bater a muitas portas e receber muitos “nãos”. Foi preciso trabalhar na Suíça como rececionista de um hotel, nas limpezas, em vendas, para ter algum valor para correr atrás do meu sonho. Com os trabalhos que tinha juntava dinheiro para pagar os meus próprios videoclipes. Eu acho que foi preciso ter lutado e começado a caminhada sozinha para hoje entender o valor do sucesso.
Mas houve um momento em que tiveste de arriscar tudo quando o teu patrão, na altura, te colocou assim entre a espada e a parede…
Exato. Ou ficava na Suíça como vendedora ou arriscava tudo na música. Foi nesse momento que pensei: “Sou jovem, é agora ou nunca!” Se não desse certo voltava para a Suíça. Não queria vir a arrepender-me de não ter arriscado ir atrás do meu sonho.
É nesse momento que voltas para Portugal e assinas com a Klasszik?
Sim. Os meus avós já tinham voltado também, para a reforma, e apoiaram-me de novo porque ia começar uma vida nova. Disseram-me que aquela seria sempre a minha casa e apoiaram-me para ir atrás do meu sonho.
Imagino que a história dos teus avós deva ser uma grande inspiração também para ti e para a tua caminhada.
Sem dúvida. Os meus avós acabam por ser um pilar no qual eu me espelho muito, principalmente na minha avó, que é uma mulher que é muito guerreira, com seis filhos, quatorze netos. Ela soube dar a educação certa a cada um e todos são alguém na vida. Não posso ser igual à minha avó, porque ela é única, mas o que eu mais quero é seguir os passos dela.
As tuas origens familiares são da Ilha de Santiago, mas tu já nasceste em Portugal. Costumavas ir a Cabo Verde quando eras mais nova?
Não. A primeira vez que fui a Cabo Verde foi por causa da música. Eu dizia sempre que queria ir, mas quando fosse um pouco mais velha. Acabou por ser a música que lá me levou.
E em que contexto?
Foi para fazer um concerto em Quebra Canela em 2015 ou 2016. Convidaram-me para fazer um pequeno showcase, porque eu ainda não tinha muitas músicas. Mas eles gostavam das músicas que tinha e lá fui eu. O cachê era super baixo, mas eu só queria ir conhecer o meu país e fazer o meu primeiro concerto em Cabo Verde.
Mais ou menos nessa altura, em 2016, lanças a música “Diz-me” e fazes uma digressão com 40 datas internacionais. Como é que isso aconteceu?
Eu às vezes nem sei explicar como as coisas aconteceram. Foi tudo muito de repente. Lancei o single e veio uma chuva de shows. Eu só pensava: “Como é que eu vou dar um show de uma hora se não tenho músicas para encher o repertório?” [Risos] As minhas músicas só davam para uns 20 minutos! [Risos] Mas na altura fazia também covers e cabei por juntar músicas minhas, da Cesária, de outros cantores que gostava e fazia os concertos com aquilo que tinha.
Voltando ao álbum, acabaste por fazer um cocktail muito diverso com referências à música tradicional cabo-verdiana, abordagens ao drill, ao trap, ao R&B, afrobeats, à kizomba e até ao sertanejo… Porque decidiste juntar tantos géneros no álbum e, do teu ponto de vista, o que é achas que deu coerência a toda esta junção de linguagens estéticas e culturais?
Eu acho que resultou porque as pessoas perceberam que o álbum tinha um bom conteúdo e tinha boas músicas, mesmo sabendo que arrisquei cantar em registos que não eram provavelmente a minha zona de conforto. Eu nunca pensei, por exemplo, que iria fazer um drill e acho que consegui fazer um bom drill. Podia ter dado errado, claro, as pessoas poderiam não ter gostado, mas sinto que os meus fãs confiam muito em mim e passam-me sempre essa confiança. Nem sempre é fácil fazer algo que o teu público não está à espera, porque corres sempre o risco de desiludir. Acabas sempre por ter várias opiniões, ficas com receio de desagradar a alguém, mas essa confiança que os meus fãs me passam é aquilo que faz arriscar e ter vontade de fazer músicas diferentes. Os meus fãs dão-me essa tranquilidade.
Onde é que achas que tens o público mais fiel? Em Portugal, em Cabo Verde, na diáspora?
É complicado, porque grande parte dos meus fãs é lusófono. Está em Cabo Verde, na Guiné, em São Tomé, Angola, e nestes últimos dois anos o público em Portugal cresceu bastante. Acredito que desta vez, com este álbum, também acabei por tocar mais os portugueses. Fico muito contente por ter aberto esse leque também.
Tu tens uma dupla experiência migratória, direta e indireta, já que a tua família é de origem cabo-verdiana, nasceste e estiveste na tua infância em Portugal, mas foste ainda muito nova para França e depois para a Suíça. Mesmo agora, estás em Portugal, mas sempre de malas às costas pelo mundo. De que forma achas que esta tua vida um pouco sempre em trânsito acabou por moldar a tua música e a tua identidade artística?
Eu acho que essa realidade acabou por me trazer muito, sabes? A minha música, e aquilo que eu escrevo, é muito sobre isso, sobre tudo aquilo que eu vivo. Mas o mais importante são as pessoas, sem elas a minha música não teria o impacto que tem em tantos sítios. Eu sinto que a minha música é da terra, é Cabo Verde, mas que também está bastante espalhada e gosto que muitas pessoas se possam conectar mesmo não percebendo a língua. Elas chegam lá pelo sentimento e gosto muito disso. Acho que é isso que me faz ter muitos públicos, embora o mais importante seja não perder a nossa essência.
E a tua essência é Cabo Verde?
Sim, são as minhas raízes. Mas também consigo me inspirar noutros contextos. Agora, por exemplo, estou a preparar um EP em francês. Como vivi na Suíça muitos anos e falo francês, essa também é uma língua que eu gostaria muito de explorar.
Para uma mulher forte e empoderada como tu, a conquistar tantos palcos pelo mundo, como é que olhas para o facto de a música cabo-verdiana, e também a música afro-portuguesa, ser tão dominada por homens? Porque é que há tão poucas mulheres a conseguir conquistar o destaque que, por exemplo, tu ou como a Nenny hoje têm?
Como toda a gente sabe, o mundo da música é complicado para as mulheres, não é de hoje, nem é de agora. Mas eu acredito que as mulheres têm de deixar de ter receio em aventurar-se, têm de arriscar conquistar o seu espaço e não terem receio de pedirem colaborações. Os homens acabam por se dar mais uns com os outros, acabam por fazer mais músicas em conjunto. Com as mulheres sinto que ainda há algum um receio ou um medo de desafiar para essas colaborações e isso cria um travão. Não sei porque é isso acontece, mas eu tento não ter esse problema. Com a Nenny, a gente falou, chegámos uma à outra e a música aconteceu. A conexão foi logo na hora, porque ela já seguia o meu trabalho e eu sempre mesmo gostei muito dela. A nossa música também é sobre isso, é sobre aquilo que a gente sente, sobre sermos verdadeiras com o que sentimos. Com a Carolina Deslandes foi igual. Acho que algo está a mudar, há muito mais parcerias entre as mulheres do que antigamente, mas é preciso continuar a arriscar e não ter medo.
Além delas tens tido muitas colaborações neste teu percurso — com os Calema, o Julinho KSD, Supa Squad, Apollo G, Manecas Costa e muitos, muitos mais. Quem foram as primeiras pessoas com quem colaboraste na tua carreira?
As primeiras pessoas que me deram uma mão? Foi o NGA! A Força Suprema… Respeito! No mundo mais lusófono também colaborei, no início, com o Ravidson. Mas o primeiro foi o NGA. Ele disse-me: “Olha, cantas bué, aceitas entrar num som meu?” E eu: “A sério, NGA, eu?” Ele também via as minhas covers. Na altura as minhas covers explodiam bastante nas redes sociais. Então, acho que ele viu um vídeo e contactou-me. É um gajo importantíssimo e agradeço muito.
No próximo Sábado vais atuar em Braga no ciclo PARAÍSO, uma programação do Theatro Circo que afirma querer dar “primazia às novas expressões artísticas da lusofonia”. Como é que tu olhas para este conceito de lusofonia? Para algumas pessoas parece significar a união dos povos que falam português e que partilham uma história comum, mas ao mesmo tempo também é usado para vender a ideia de que Portugal está já pacificado com o seu passado colonial, contribuindo para ocultar a forma como esse passado ainda se reflete no racismo estrutural que continua a marcar a sociedade portuguesa.
Sim. É complexo, mas eu acredito que já foi bem pior, entendes? Eu acredito realmente que está a haver uma mudança. Ainda estamos longe de chegar onde nós queremos, mas já estamos um pouco mais perto. Ainda há pessoas que pensam de forma errada, mas há muitas pessoas a lutar por esses direitos iguais. E eu sinto que nós, a nova geração, temos que continuar a luta para que isto continue a mudar. Eu acho importante nós continuarmos a tentar unir os nossos povos e daí dizer que sou lusófona. Eu sinto que represento Cabo Verde, represento a Guiné, São Tomé, Moçambique, Portugal, somos nós todos juntos. Essa é a união que faz a força, todos juntos. Hoje eu já sinto que nossos povos estão muito mais unidos.
Sentes que há um trabalho que tem sido feito e que está a dar resultados?
Sem dúvida. Claro que podíamos estar melhor, que já podíamos ter ido mais longe, mas olhando para o passado, acho que atualmente estamos num ponto melhor.
Em relação ao concerto no Theatro Circo, o que é que tens planeado e o que é que as pessoas podem esperar? Imagino que a própria sala vá influenciar o tipo de concerto que vais apresentar.
Exato. É um contexto diferente numa das salas mais bonitas do país. Vai ser um show diferente porque a sala e o contexto merecem que pensemos nessa diferença. Acho que é importante levar um show distinto, com algumas músicas mais acústicas. Faço anos nesses dias e estou ansiosa para o concerto. Vou levar as minhas músicas, a minha energia boa para partilhar como toda a gente e para a representar Cabo Verde.