Nesta sua quinta edição, o Som Riscado, Festival de Som e Imagem de Loulé, viu-se confrontado com uma nova e sombria realidade, mas, e ainda assim, decidiu que a cultura é um bem e uma prática que, respeitando as normas de segurança em vigor, pode e deve continuar a ter lugar. E ver miúdos de escola fascinados com as suas próprias vozes processadas enquanto um piano dialoga com elas (Pianoscópio) ou outros miúdos encantados com robots que respondem a ordens e criam uma cacofonia de ritmos e ruídos oferece-nos a todos algum conforto, sobretudo aos que ainda acreditam no futuro.
Ontem, no Cineteatro Louletano, a boca de cena fez-se janela sobre a paisagem e sobre a memória. Em primeiro lugar da América. Ou de uma certa ideia da América, aquela que cabia dentro das câmaras de super-8 que filmaram auto-estradas e camiões, comboios e desfiladeiros, gente de outro tempo cujos sorrisos e danças ficaram para sempre registados na luz trémula daquelas películas. As imagens foram seleccionadas e sequenciadas por Jorge Quintela e adequam-se na perfeição à música de Miramar, o projecto que Frankie Chavez e Peixe criaram juntos.
Ora, estes dois músicos possuem ambos assinaláveis currículos: Chavez notabilizou-se como esteta das guitarras em múltiplos projectos em que foi expondo a sua paixão pelos blues e pela folk, pelo rock de recorte mais clássico, pelo country e pelo surf que existe dentro das guitarras do Hawai, e, sozinho ou acompanhado, em palco e em estúdio, criou o seu próprio lugar e uma assinalável discografia.
Peixe, por outro lado, integrou os Ornatos Violeta, Pluto e Zelig e explorou com criativa curiosidade as possibilidades expressivas da guitarra, afirmando-se igualmente como um músico capaz de dar novas vidas e ideias a um dos mais tradicionais instrumentos da música popular. Feliz portanto este encontro, este diálogo e esta cumplicidade que Peixe e Frankie estabeleceram.
Ao vivo, a sua música provou ser amplamente cinemática, cruzando de forma absolutamente livre os terrenos da folk e dos blues, evocando figuras como Ry Cooder ou John Fahey, em discursos sofisticadamente dedilhados e entrelaçados, num constante e íntimo diálogo. Peixe oscilou entre uma guitarra acústica de incrível riqueza tonal, uma guitarra eléctrica a que aplicou um cromaticamente expressivo bottleneck e Frankie Chavez, por outro lado, puxou de acústica, lapsteel e portuguesa para nos demonstrar igualmente como é dono de um amplo leque de recursos técnicos que desaguam sempre em esquemas melódicos e harmónicos carregados de imagens. Como aquelas que nos transportaram até uns anos 60 feitos de movimento, de gente e de campos sem fim a que aquela música assentava de forma absolutamente perfeita. Houve tempo para passar em revista malhas de Miramar, o belíssimo álbum que lançaram no início do ano passado, mas também para antecipar música nova, do próximo registo que deverá ver a luz do dia em 2021. Uma ideia: pelo que se pode ontem ouvir, a música que aí vem seria perfeita para ilustrar as imagens de Alone in the Wilderness, o mítico filme de Dick Proenneke. Fica a ideia!
O final da noite pertenceu ao projecto Grafonola Voadora que apresentou o trabalho discográfico que resulta de uma colaboração com o declamador e poeta Napoleão Mira. A música de Luís Galrito, as imagens de João Espada e as palavras de Napoleão evocam lugares ao sul, cidades noturnas, paixões, saudades e dúvidas, numa dança constante entre o moderno e o tradicional, com piano e sintetizadores, acordeão, guitarra portuguesa e batidas electrónicas a cruzarem-se para darem à voz do declamador que é poeta e actor nas suas próprias histórias a banda sonora adequada. E cada canção falada se transforma assim num filme.
Hoje, o Som Riscado promete mais um dia cheio. Prossegue o espectáculo/instalação Pianoscópio (Convento de Santo António), mas também há entradas no programa para uma oficina de criação de instrumentos musicais em ambiente 3D a cargo de Victor Gama (Palácio Gama Lobo), para concertos com 2 projetos musicais algarvios: 2143 / Heroin Holiday Big Band + Alunos do Curso de Imagem Animada da Escola Superior de Educação e Comunicação da Universidade do Algarve (curadoria: Caribe Ibérico) que decorrerão a partir das 16 horas no Auditório do Solar da Música Nova e, a partir das 19 horas no Cineteatro Louletano, para as apresentações de ‘Vanishing Quasars’, espectáculo multimédia de Boris Chimp 504, e, a fechar o dia, concerto de Surma com componente visual a cargo de Camille Leon e Inês Barracha, artistas algarvias.