Na belíssima sala do Cineteatro Louletano, ainda por cima dotada de excelentes condições acústicas, a peça Vela 6911 ressoou com especial significância tendo em conta os tempos tumultuosos que atravessamos. A obra que Victor Gama primeiramente apresentou em Chicago em 2012 e que agora conheceu a sua “estreia a sul” baseia-se num diário de uma oficial da marinha sul-africana envolvida com um teste nuclear secreto – cujos efeitos foram detectados pelo satélite americano Vela 6911 em 1979 – e que só foi descoberto há alguns anos. Aí, a militar anotou as suas angústias, dando conta de como se sentiu profundamente afectada por ter participado numa acção que danificou severamente uma área até aí praticamente intocada do planeta, com consequências devastadoras na natureza. Além de um incrível testemunho em favor da ecologia, as palavras da tenente Lindsey Rooke são uma poética observação da patética condição humana, da nossa fragilidade perante o universo, uma ideia com que qualquer pessoa se pode hoje relacionar.
Acompanhado por uma formação de câmara com músicos da Orquestra Clássica do Sul dirigidos pelo maestro Rui Pinheiro – dois violinos, duas violas, dois violoncelos, fagote e percussão –, Victor Gama tocou três dos seus incríveis instrumentos – acrux, toha e dino: o primeiro é uma belíssima escultura com agulhas metálicas afinadas; o segundo uma espécie de harpa, circular, que Gama tocou sozinho, em primeiro lugar, e acompanhado por Salomé Pais Matos, logo depois; e, finalmente, o dino, que tem semelhanças ao berimbau e a certos instrumentos tradicionais africanos, que o músico tocou usando um arco.
A música, sobretudo a componente executada pelo ensemble de câmara, apresenta pontos de contacto com a escola minimal americana e desenvolve-se em ciclos de crescente poder meditativo e em dinâmicas de envolvência e contraponto com os instrumentos de Victor Gama, todos capazes de produzirem sons de uma estonteante beleza cromática e harmónica. A conjugação com as imagens que o próprio Victor Gama captou numa viagem à Antártica confere a Vela 6911 uma profunda dimensão poética, quase como se se tratasse de um requiem, senão pela humanidade, pelo menos por uma certa inocência destruída pela ameaça atómica que continua a pesar no nosso planeta que vai enfrentando crescentes problemas de mudanças climáticas e crises ecológicas de ordem diversa. Mas há também esperança e luz nesta música, que é funda, diligente na forma como nos interroga, perturbadora a espaços, mas igualmente capaz de soar apaziguadora. A plateia do Cineteatro Louletano, praticamente esgotada, aplaudiu de forma veemente esta estreia, coroando assim aquilo que o director artístico do festival, Paulo Pires, classificou como “uma vontade antiga” do Som Riscado antes da apresentação.
O dia de ontem começou, no entanto, logo pela manhã, com a estreia do espectáculo Pianoscópio criado pela Companhia de Música Teatral no espaço fantástico do Convento de Santo António. Perante um exigente público escolar infantil, três membros desta companhia, vestidos de branco como cientistas o que confere alguma tranquilidade nestes tempos pandémicos, por estranho que possa parecer, exploraram o piano de várias formas: havia um piano “preparado” com alguns objectos e restos de outros pianos expostos e devidamente ligados a microfones de contacto que exploravam as diferentes componentes; as teclas, as cordas, os martelos, procurando dessa forma extrair da complexa mecânica daquele instrumento todas as suas possibilidades. O jovem público foi a dada altura desafiado a integrar-se no espectáculo, com elementos a serem posicionados em frente a um microfone que devolvia à plateia as suas vozes, processadas e com as quais os três “cientistas/músicos/actores” foram interagindo. E assim se percorreu a distância que parece separar a música de John Cage das canções de ninar. Momento muito interessante da programação.
Igualmente interessante foi a possibilidade dada a outros alunos, ligeiramente mais velhos, de interagirem com a escultura/instalação Phobos montada no bar do Cineteatro Louletano. Trata-se de um complexo e fascinante mecanismo com autómatos percussionistas, reverberantes, vibrantes, que produzem sons de ordem diversas que podem ser organizados e estruturados, comandados, mas que possuem igualmente, ao que parece, “vontade própria”, como por lá se ouviu dizer. Os sons, que nos rodeiam e nos quais vivemos imersos, parece dizer-nos a Sonoscopia, não são todos iguais e a música pode ser tão bela quanto estranha. Depende apenas do botão que se carrega e da voltagem disponível…
Hoje, para lá da renovada oportunidade que os públicos escolares terão de ver e ouvir as apresentações de Pianoscópio e Phobos, o programa reserva ainda, para o Cineteatro, a estreia em Loulé do concerto Miramar que resulta da união dos talentos de dois grandes guitarristas portugueses, Frankie Chavez e Peixe (19 horas), bem como a estreia nacional do espectáculo de apresentação do disco Lugar Nenhum a cargo do projecto Grafonola Voadora em colaboração com o poeta Napoleão Mira (20h30).