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Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 11/12/2023

Em permanência.

Som Desorganizado’23 — Dia 2: ouvir de olhos fechados — imaginar o real

Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 11/12/2023

Retorno. Quem passa pela Sonoscopia há-de querer voltar. O passado foi bem recente — ontem, mas desperta já uma vontade no amanhã. O hoje, 9 de Dezembro, tem lugar ainda a tempo do Som Desorganizado no último dia de programa. Arco temporal de curta duração este, alcance mais longínquo pretendido, esperar a permanência para além da memória auditiva. Registar para voltar, escrever, fotografar e gravar como acção de remedeio possível.

Mais gente, ainda cabem mais para a partilha do som. Mais a emitir, mais a receber, mais a transmutar. A medida certa da desmesura. Tarde chuvosa a pedir recolhimentos, aglomerando pares para reunião. Mais gente a jogar as peças na batalha do tabuleiro sonoro da instalação Indeterminate Structures (2023) de Wouter Jaspers, inventor neerlandês hoje presente e que vai fazendo mediações na medida das vontades dos que sobem ao espaço. Recém aterrado no Porto, vindo do Node Festival (Modena, Itália) onde actuou com o saxofonista norueguês Bendik Giske, que recentemente passou pelo BoCa, no Panteão. Jaspers que retorna à Sonoscopia depois de em Junho último ter ministrado com Stefan Goetsch (Hainbach) uma primeira exploração do Sonoscopia Sound Studio.

Rafael Toral, mais que um retorno, uma permanência na casa. Hoje para a segunda parte a solo, de volta do som da guitarra eléctrica. Nas palavras introdutórias do próprio, querendo saber que som está contido numa guitarra. Fazer música sustentada em notas e acordes. Novo saber fazer, desligando-se temporalmente do seu percurso exploratório do som, do ontem. Foco rubro, sala povoada de corpos ouvintes, há muitos olhos fechados, parecendo uma sessão meditativa, sê-lo-ia, conduzidos pela guitarra lânguida de Toral, sucessivas harmonias, em cascatas. Almofadas suportam os corpos, o tecto limita o som, caixa ressonante inusitada. Fim de tarde bucólica, saborosa melodia distendida no tempo. Toral de retorno ao som da guitarra, em “disposições de novas (e velhas) direcções”, a caminho da sua “terceira fase”, que se revelará em disco. Fazendo crescer ainda mais a vontade para ouvir o aguardado álbum Spectral Evolution, com edição anunciada para Fevereiro. O álbum que já se revela na beleza da capa, num chapim pousado.

Convocados a voltar, agora para conversar e partilhar, em jeito de palestras. Habituais comensais da casa, Raquel Castro e Joaquim Durães, à vez, mas num propósito em simultâneo, na partilha da experiência de colectivos e organizações. Ambos protagonistas de eventos de referência. Raquel leva para lá de vinte anos como curadora e programadora de sound art: Sonora, como Associação; Lisboa Soa (2016-), como programadora; curadora “Sound Art in Public Spaces” numa rede de festivais europeus (Sound Now) como no Wilde Westen Festival (Kortrijk, Bélgica), no Festival November Music (Den Bosch, Países Baixos), no SPOR Festival (Aarhus, Dinamarca), no The Onassis Stegi (Atenas, Grécia) e no Ultima Festival (Oslo, Noruega). Estímulos que levaram as pessoas a ouvir, de olhos fechados para o som, receber de volta maior, na satisfação da instigo-investigadora sonora que tem reflectindo nisto do envolvimento das pessoas com o som e o espaço. Educadora aural, que promove como programadora eventos inclusivos, desligando isso como coisa de gueto. Podemos percepcionar muito do seu saber fazer sonoro no filme Soa (2020). “Estamos rodeados por todo o tipo de som, mas o quão somos conscientes disso?” pergunta retórica de Castro, servindo de guião na sua acção interventiva. Outra premissa fulcral é a de revelar e potenciar o som do lugar, nisso juntamente com a Sonoscopia (Gustavo Costa, Henrique Fernandes) desenvolveu a instalação sonora “oCo”, uma estrutura captadora:emissora, estreada no Space21 – Experimental Music & Sound Art em Slemani (Iraque). Intervindo com a “acção de uma estrutura que tem a capacidade de transformar o som que nos rodeia e que nos une, permite-nos assim questionar toda as nossas relações humanas e de que forma nos relacionamos com a natureza”. O som do lugar importa também a Joaquim. As soundwalks inseridas na programação do insular festival Tremor, levam a percorrer a paisagem da ilha de S. Miguel (Açores) em camadas que revestem e acrescem de mais som a paisagem envolvente e calcorreada. Durães traz em revista a sua inquietude interventiva, desde 2004 nos tempos de Barcelona, muitos concertos e festas que foi sabendo transpor à realidade de cá e se tem revelado no que hoje conhecemos como a actividade da editora e programadora Lovers & Lollypops. O nervo no fazer vem da adolescência, da fanzine, de bandas e concertos, mudou o modo, a estrutura e o saber. Hoje garantiu espaços onde a volátil vontade de instituições para fazer acontecer é minimizada. A Sonoscopia é disso também um exemplo. Estabelecendo estruturas sólidas para programar e criar, muito dos seus artistas, desenvolvendo uma comunidade sonora, identitária do lugar.



Ainda dentro do programa palestra toma lugar oratório Wouter Jaspers, liga-se mais na temática Luthiers — foi ontem, mas chegou hoje, a tempo de partilhar a suas caixas sonoras de madeira. Antes de serem ouvidos, despertam atenção como esculturas. Escultor sonoro, partindo da natureza orgânica, as caixas de madeira como fonte acústica, desenvolvendo sobre elas outras fontes sónicas. Jaspers está maravilhado com a cortiça, material que recuperou num monte que ia para queimar… valorizar o lixo, revindicando luxo para si. Para Jaspers, a cortiça permite-lhe desenvolver novos sistemas de captação — microfones extraordinários, que vai disponibilizar em 2024. Define-se pelo “fazer peças, arte, música, fazer com as mãos, fazer com que as pessoas se encontrem, fazer pensar, ser útil, ser um recurso.” Prefere “tocar que falar do tocar”. Cresce em Tilburg, na qual faz acontecer Optimus Prime Noise Fest, onde fez rádio e criou a editora Vatican Analog, dedicada à noise music, funcionando como “plataforma para sons atípicos de alta qualidade”, como apresenta. Parte para a construção de instrumentos, electroacústicos. Hoje acontece-lhe ir a um concerto e ver músicos a tocar com instrumentos que inventou. É ainda director de som e performer junto da Kammerensemble Neue Musik Berlin. Ouvir o som é ver interacção, reflexão, refracção, difusão. Mostra, entre outros, o GongAmp, escultura emitindo som a partir de um címbalo invertido ressonante desde frequências de rádio. Jaspers percorre todo o arco criativo do som, idealiza, constrói, pratica, cria e reflecte a acção sonora desenvolvida.

Ligação directa estabelecida para o fim de tarde, Nicolas Collins em concerto. Apresenta três peças para música electrónica, com instrumentos únicos, os seus. Peça para !trumpet, em que software e hardware permitem a abordagem de um corpo de base de trompete soar a múltiplas vozes, através de uma surdina que tem dispositivos MIDI. Uma panóplia de possibilidades, as vozes que Collins quiser. Envereda por sonoridades que encaixam na perfeição numa animação desenrolada no momento. Olhos fechados a ouvir e expressões divertidas em muitos rostos. A vontade em ver a natureza do som, em racionalizar, contraponto à emoção. A escolha é facultativa, ver e ouvir, ouvir sem ver ou o melhor dos dois, alternando os estados perceptivos. Na parede desenha-se fascinante diálogo entre o músico, o instrumento e as sombras de ambos, versão quasi Lucky Lukiana. As crianças na plateia divertem-se imenso com o som. Ver a emoção do ouvir. Collins apresenta a segunda peça como sendo uma canção de amor, ainda que não se acredite como, adverte. Acerca de um pica-pau que se assomou da chaminé metálica da sua casa às cinco da manhã e ressoou como se imagina… Recuperando o inusitado momento, Collins construi um dispositivo de mão, electromagnético, que lhe permite experimentar superfícies partindo de um matraquear semelhante ao da ave no som. E avança por onde lhe apetece, explorando a ressonância dos materiais disponíveis por perto, portas, vigas, chão, pernas de mesa, parede, ar até deixar envolver a atmosfera sonora com gravações de campo feitas do próprio intruso daquela noite que nos contou ter tido lugar. Um conto feito de sons, registos cruzando lugares, o presente com o vivido. Terceira e derradeira peça-instrumento, feedback de “mão-cheia”. Luva sensitiva e bobinetes indutoras de campos electromagnéticos. Como ensina Collins aos seus alunos: “quando não tens inspiração, vai para um feedback, que resulta”. É o som a alimentar-se de si mesmo. Faz uso da mão, como no princípio de um teremim. O instrumento que se toca sem ser tocado.

Retemperar, num repasto vindo da criativa cozinha, uma salada de arroz selvagem e agrião, estufado de couve-flor e lentilhas a acompanhar um bulgur de legumes, num voilà culinário de Patrícia Caveiro (Sonoscopia).

Concerto final para o duo francófono de música electrónica eRikm & Jean Philippe Gross. Dispositivos para assegurar a passagem do universo analógico para o digital em cima das mesas. Há gravadores, receptores, pequenos alto-falantes, cabos e cabos, mesas de controladores à mercê de Gross. Há um computador portátil, um ecrã táctil, um controlador fotossensível, um flash, um telemóvel e uma tarola disponíveis para eRikm. Despertam ascensão de imediato, crescendos a bordo de veículos em emergência, explosão e ruptura. Rebentamentos sonoros que abrem sulcos para novos campos, numa electronica que povoa e crepita, microtonalidades, um pulsar pós-catástrofe. eRikm conduz o som, levando o fluxo até onde pretende, estimula com flashes oportunos, produzindo clarões sonoros, frutos de tensão cumulativa. Som crepuscular, no limiar da percepção, flutuante. Gross está comprometido com o detalhe, tímbrico, com a textura, nos contrastes e efeitos acústicos interactuantes. O resultado é uma coreografia sonora que se desenvolve na imaginação do real. Os momentos de acção, deste Som Desorganizado, contaram com a imprescindível interpretação tornada visual nos ouvidos da artista Ana Torrie. Gravura do (tempo) real. Trouxe goivas, placas de madeira, tintas rolo e até um baren — instrumento de impressão japonês, de folha de bambu. Torrie é gravurista, aqui num esculpir da placa desde o som, vindo dos escultores sonoros. Pudemos espreitar os primeiros resultados, como blocos de esquiços visuais, primeiras impressões, as matrizes, na prática de xilogravura. Como que um gravar do som transmutado para madeira, nas expressões dos praticantes do som eternizadas em gravura, a suspensão do tempo. Resta aguardar o que for necessário até surgir a impressão desejada, as provas que a artista há-de imprimir e escolher, como contributos para o registo, eternizando a ordem do experimentado Som Desorganizado.


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