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Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 09/12/2023

Na casa comunal do som.

Som Desorganizado’23 — Dia 1: música livre a alimentar-se dela própria

Fotografia: Marta Bento
Publicado a: 09/12/2023

Na Sonoscopia (Porto), a festa de temporada — em tempo de boas festas — faz-se antes numa celebração organizada reunindo músicos, ouvintes, inventores-construtores de novos instrumentos e tocadores-inventores na busca e partilha do som. Convocando muitos dos que ali passaram ao longo do ano, em residência, em pesquisas, em concertos. Nesta casa, que na verdade são duas numa só, têm ligação directa entre elas e o som, pesquisa-se, explora-se, constrói-se, vive-se para soar novo, e nela habitam novos e velhos instrumentos, peças muitas delas únicas, matéria que convida à partilha surpreendente de um outro som, por ouvir. Ao contrário de um arquivo ou fonoteca, aqui dá-se a escutar pela primeira vez o que o som tem. Vem-se ao encontro do som desconhecido. Para tornar isto possível, há uma organização, que funciona como associação, que possibilita a desorganização do som, nesta que se conta como a sexta edição do Som Desorganizado. Ao entrar estão músicos da casa que conhecemos doutros espaços e palcos: Gustavo Costa, Henrique Fernandes, Alberto Lopes, João Ricardo, entre outros e outras gentes funcionais a ultimar a casa antes da desordem programada. Gentes que recuperaram e mantêm a casa habitável, no conforto desde o telhado ao chão que se pisa, (in)sonorizando as assoalhadas, e são muitas, e ao fundo do logradouro há ainda uma outra casa, um estúdio de gravação. As portas estão sempre abertas, para circular o som, apenas as portas para a rua convém manter fechadas para não escapar o som, embora o espírito comunitário, minhoto, teime nesta casa também nisto, levando a evocar o dito popular num aviso: és de Braga — na porta para as traseiras.

No sotão da casa, num quarto está instalado um dispositivo sonoro: Indeterminate Structures (2023) por Wouter Jaspers, a partir de um tabuleiro de xadrez, partindo da centelha vinda de John Cage, Chess Pieces (1944), partitura para piano preparado apresentada num padrão quadrático de pretos e brancos e que John Cage pensou para Marcel Duchamps como hábil praticante. Aqui no Som Desorganizado, convidam-se visitantes da casa a uma partida. O tabuleiro tem em cada casa sensores que respondem sonoramente à presença/ausência de peças. Cada partida proporciona uma irrepetibilidade de frases, peças e composições únicas.

Descer até à cave das casas, onde todo o resto programado tem lugar. Lado-a-lado: cave-bar e paredes meias fica a cave-sala-de-concertos, a ligá-las o encantador logradouro ajardinado. Na cave-bar uma lareira aquece os músicos presentes, na cave-sala-de-concertos hão-de retribuir, em som, a chama que agora absorvem.

Concerto para voz amplificada, trombone e electrónicas analógicas a cargo de Beam Splitter: Audrey Chen & Henrik Nørstebø. Assentaram arraiais na Sonoscopia por uma semana em residência, o concerto para estes músicos é uma partilha do lugar com quem apinha a sala em cadeiras dispostas em semi-circulo, rodeando o dúo. Audrey remete de imediato para um campo aberto, para a vocalização de noitibós, num matraquear crepitante e grave, gutoral, a despertar atenção. Henrik vozeia a plenos pulmões, ora a vara curta ora a vara distendida. Emanado sopros num explorar tubular do instrumento e focando a interação no borbulhar provido da condensação interior do instrumento, gotejo abundante no chão vindo do metal. Exploram os bordos do espectro sonoro, dão arcadas que vão das frequências mais graves às mais agudas, directas sem passar pela casa de partida. Ressoa tudo o que há a ressoar entre nós e eles, na sala que devolve e alimenta o som. A manipulação de botões é permanente, faz saturar o destilado. É isso, um alambique sonoro visitado numa noite de noitibós em redor. Audrey tem entrada garantida num ajuntamento de throat singing, de grupos étnicos milenares, tais são as capacidades guturais mostradas, tem uma tónica grave de base, mas alcança falsettos naturalmente em seguida e projecta-os em redor do ponto de captação com efeitos vários. São vozes que remetem num simultâneo para um certo ancestral tornado moderno, ou antes numa invenção de uma cultura vocal intemporal. A voz de Audrey e o sopro de varas de Henrik, num diálogo hiperventilado, duas vozes que aparentam chegar exauridas ao final. Podemos escutá-las desde o seu registo debutante Rough Tongue pela berlinense Corvo Records (2017) ao recente Beauties (2023) junto às palhetas e electrónica de Eivind Lønning (trompete) e Espen Reinertsen (saxofone tenor) em edição da nova-iorquina Neither/Nor Records.

Tempo para sentar e ouvir falar de processos criativos, de novos instrumentos. Primeiro luthiers com a dupla Calhau!: Marta Ângela e João Alves. Fim, palavra projectada em “quadricirculo” na parede da sala, aludindo ao efeito loop. Chamam a atenção com o idiofone nada inventivo, um chamariz de água. Atenção cativada e explicam como começaram em 2006. Na acção exploratória do som de placas electrónicas de dispositivos prévios — circuit bending. Curto-circuitos. Depois alcançam a vontade de aliar desenho e som. O maestro desenhado com uma batuta que virado ao contrário vira um cego com bengala. Circuitos-fechados oferecendo outras possibilidades. Exploração do feedback como condução cega no processo criativo. A metodologia seguida. A circulação da/na (a) figura, mais que procurar um forma de condução é mais explorar o caminho de forma cega. “Blind conduction”. Trabalhar o texto — em loop — inspirar e expirar. Explorar os anagramas, (n)as palavras e poemas, o positivo e negativo, ligados: “Ai modos d’raiva — Aviar d’sodomia”. Alves toca um pequeno circuito electrónico com sensores fotosensiveis e intervindo nas redes da placa com os dedos. Ângela toca um dispositivo electrónico em jeito de cordofone de uma corda assente numa colher-de-pau como braço. Intervém num pickup vocalmente. Estados de alma. Circuito-fechado, não há como escapar do circulo de “Exit” de quatro lados: “EXIT/(T)IXE/(E)XIT/(T)IXE”.



De seguida, Nicolas Collins. O mestre, como Rafael Toral o haveria de referir no seu concerto mais adiante. Collins, que no dia anterior fez esgotar as vagas para o Feedback workshop, menistrado na tarde de abertura do Som Desorganizado. Em meados de setentas, construiu o seu primeiro circuito para, em 1978, montar o seu primeiro computador de “ar mais bonito”. Preponderante nos oitenta em diante na educação e promoção do circuit-bending e da música electronica exploratória. Refere que um PC por si não produz som, ao passo que uma placa electronica soa por si, sendo a acção de manipulação do circuito que podemos modular de modo a obter variantes sonoras. É a sua practica frequente junto de públicos vários, em lugares, em idades, em culturas, sempre acumulando diversidades sonoras, cada gesto, cada toque, cada um traz uma música irrepetivel e soa ao desconhecido. Mostra-nos os princípios electrónicos, em que assenta a trompete modificada, sensores e mais sensores, a essencia dos sensores magnéticos. Toca e deslumbra a plateia nas possibilidades alcançadas.

Segundo bloco de concerto. Rafael Toral, com mais de uma vintena de anos de exploração (de) na música electrónica. Informa-nos onde e com quem começou, Estados Unidos com o mestre, quem mais, Nicolas Collins. Mas Toral é mestria, basta ver a forma como conduz, em solo, os seus instrumentos, que nem maestro nas expressões com elevada dose de carga emotiva. Convoca, conduz, desfere, desliza o som com habilidade que foi apurando e demonstrando em tantas prestações, e registos vários deixados no seu percurso. Apresenta-se dizendo, recatado em modéstia, que há muito não tocava estes dispositivos, assentes na alimentação sonora em feedback e circuit-bending. Som plasmando ambiências hipnóticas, navegações divagantes num perder de vista. O rubro do espectro lumínico a ajudar a derreter o som conduzido por Toral. Três dispositivos em cena, tocados à vez. 1: Microfone ligado ao micro-amplificador Marshall. 2: Micro-amplificador Fender com um micro-circuito acopulado. 3: um instrumento que esperava ali por ele, inventado na Sonoscopia, acústico, caixa de madeira, com alto-falante, mola em espiral, que a certa altura socorreu do disposito 2 para lhe tirar mais potência sonora. Convoca no final para um já hoje (dia 9), onde voltará a ter lugar, desta feita em concerto para guitarra eléctrica.

Pausa para um tofu acarilado, partilhado, servido aos comensais do som.

Concerto da noite com The Electrics: Axel Dörner (firebird) Joe Williamson (contrabaixo), Raymon Strid (baquetas) e Sture Ericson (palhetas). Escrever Electrics é uma alegoria, nada estava electrificado nos instrumentos, sem microfones, apenas a propagação acústica do som. Voltar ao jazz nat’cool. Estes músicos levam anos de carreira, trazem quilómetros de digressão e encontram-se na Sonoscopia para uma partilha em modo ancestral do som na forma e no modo primordial da livre improvisação. Prossegue a programação nos domínios dos instrumentos inventados, desta vez por Maynard Ferguson, a quem se deve o firebird, que é um instrumento híbrido, lembra um trombone, por possuir uma vara, mas tem um resto de corpo e pistões como um trompete, é um trompete modificado. Dörner é um dos raros tocadores de firebird e só por isso é grandioso estarmos ali diante deste soprador. Do outro lado outro notável soprador, escandinavo, Ericson, traz consigo um saxofone alto, um soprano e um clarinete, ao que irá acoplar diversos objectos às campânulas. Strid, toca com baquetas, no que se pode designar em maior volume como bateria, mas que se virá acompanhada na acção por muitos mais objectos ressoantes. Williamson tão “somente” o contrabaixo, com arco de quando em vez. Tocam o jazz desprendido, incorporando sábios silêncios, com elevada elegância e mestria. É um som maioritariamente construído de diálogos sussurrantes, vozeares suportados por requintes detalhes. A condução é liderada pelos sopradores e nunca perdida no rumo do contrabaixo, a que a bateria diverge para enriquecer, no timbre, no detalhe da exploração sonora, trazendo objectos que vão desde varetas batedoras de leite — em modo automático — repousadas em taças metálicas sobre tímbalos, a caixas de madeira ressonantes. Também as campânulas do alto vêem-se revestidas de copos de plástico ou de metal, que o som faz elevar e ressoar na passagem. Mas, Dörner, nem pestaneja, dotado de uma capacidade respiratória circular invejável, circula livremente pelo espaço na “asas” do firebird, que beleza de instrumento, sóbrio e desafiador em simultâneo. A acção desenrola-se preferencialmente nas micro-escalas, nos intervalos, na percepção subtil. Um verdadeiro balanço de groove raramente surge, e em nada fica a faltar, tamanha é a cadência feita de outros modos. Tocam uma peça única, num modo único, no que parece ter sido de um folêgo só, irrepetível, o som alimentando-se de som, numa feição de amor supremo.

Hoje estaremos de volta, seguramente.


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