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Fotografia: Maria Leonardo Cabrita
Publicado a: 26/01/2022

Com o foco naquilo que se vai encontrando na caminhada.

Sofia Borges: “Gosto muito de pensar que o destino é o próprio caminho”

Fotografia: Maria Leonardo Cabrita
Publicado a: 26/01/2022

Para Sofia Borges, percussionista, manipuladora de electrónica e compositora em diversas frentes musicais (contemporânea, improvisada, free jazz e mais) e transdisciplinares, não é o objectivo a que se propõe o que mais interessa, mas o percurso que se toma para lá chegar.

A artista radicada em Berlim está em Lisboa para duas datas. Amanhã (27 de Janeiro) integra uma nova edição da série DeScomposição Transitória, na SMUP, e na sexta-feira toca na BOTA com Maria do Mar e Abdul Moimême. Duas paragens numa viagem pessoal que é já, comenta a própria à Rimas e Batidas, o seu destino. Esta que a traz de volta a Lisboa, depois de algum tempo ausente, tem essa relevante importância.



Pertences a já um grande grupo de músicos portugueses que optaram por desenvolver a sua actividade em outros países que não o seu, em busca de melhores oportunidades. Como tem sido a tua experiência em Berlim? Sentes-te integrada na cena local, tiveste dificuldades de inserção ou foi um processo natural?

Sim, sinto-me integrada na cena local. Inicialmente tive algumas dificuldades, mas creio que foram parte de um processo natural de integração. Berlim tem uma vida cultural riquíssima e isso deu-me a possibilidade de trabalhar regularmente nas diversas áreas de que gosto. Para além disso, a sua localização geográfica permite que se chegue facilmente de comboio a outros países do centro da Europa e esse factor abriu-me as portas a alguns projectos internacionais. Recentemente estive a gravar em Amesterdão e no ano passado passei algumas semanas a ensaiar em França e na Bélgica. Provavelmente isso não teria sido possível se vivesse em Portugal. 

Poucas oportunidades tem havido de te ouvirmos em Portugal, e menos ainda desde que surgiu a pandemia. Que significado têm para ti os dois concertos em que participarás agora? Um deles, o trio com Maria do Mar e Abdul Moimême na Bota, é a reposição de um projecto que surgiu em 2018, mas não teve continuidade. Este reencontro confirma a vossa vontade de que se torne em algo a explorar mais permanentemente? O outro concerto, inserido no ciclo DeScomposição Transitória, é igualmente com Maria do Mar, mas em contexto intermédia, com vídeo de Raquel Melgue. Trabalhas em Berlim com dança (ainda recentemente com Meg Stuart), teatro e criações visuais de diferentes tipos, pelo que estarás no teu elemento natural…

Quando vim para a Alemanha, em 2009, acreditava que iria viver entre os dois países, que iria manter uma actividade profissional regular em Portugal e que iria continuar a tocar com os meus colegas e amigos com quem estudei em Lisboa. Era essa a minha intenção. Mas, pelas oportunidades que foram surgindo, a minha vida ficou logo desde cedo estruturada na Alemanha. Por isso, estes dois concertos vão de encontro à vontade que sempre tive de tocar regularmente e de passar mais tempo em Portugal. 

Em 2018, quando eu, Maria do Mar e Abdul Moimême tocámos em trio pela primeira vez, ficou clara a vontade de nos voltarmos a juntar. No entanto, devido a factores tais como distância geográfica, agendas preenchidas e pandemia, não houve disponibilidade para tal. Por isso, grande parte do meu entusiasmo nesta minha vinda a Portugal reside na oportunidade de voltar a juntar este trio e na possibilidade de que se transforme em algo permanente. Em relação ao concerto do ciclo DeScomposição Transitória, e como referiste, a multidisciplinaridade sempre foi um elemento natural para mim. Adoro articular e desenvolver o meu universo sonoro com elementos visuais, de dança e movimento. É bastante estimulante para mim mergulhar no universo de artistas de outras áreas e tentar olhar para o meu trabalho com outros olhos. E depois voltar para o meu lugar e continuar a desenvolver o meu trabalho com essa informação, repetindo o processo, numa espécie de loop. Por isso, estou bastante entusiasmada em poder mergulhar no universo de Raquel Melgue.

Curiosamente, conheci os três músicos com que irei tocar no MIA em 2017.  Por essa ocasião toquei com o Abdul num projecto chamado Dinah-Moe-Phone e fiquei bastante impressionada com a originalidade e a sensibilidade do seu trabalho. A criatividade  e a energia de Felice Furioso também me chamaram à atenção nesse evento, e fiz questão de lhe dizer que apreciava bastante o seu trabalho, embora não tenhamos tido a oportunidade de tocar juntos. Com Maria do Mar toquei algumas vezes em jam sessions nesse ano, e o primeiro projecto conjunto foi o trio com Abdul Moimême em 2018. A Mar tem uma força imensa, quer como artista, quer como pessoa, e devo-lhe a ela o facto de poder tocar agora em Lisboa.

A tua actividade musical reparte-se em diversos domínios, e tanto numa perspectiva de composição como de execução instrumental: música contemporânea (de câmara, orquestral e vocal), música improvisada e música experimental (com electroacústica). Estas diferentes dedicações devem-se a que necessidades criativas tuas? Reflectem-se entre si, ou perguntando de outro modo: há elementos de uma que surjam nas outras?

Sim, estas diferentes abordagens devem-se definitivamente a necessidades criativas minhas. Mas sendo elas tão distintas à partida, para mim fazem parte umas das outras. São diferentes facetas do mesmo universo. Eu já tocava em diferentes contextos e depois comecei a improvisar, a compor e a utilizar electrónica mais ou menos na mesma altura. Desde cedo que comecei a utilizar elementos destas diferentes áreas de forma permeável. Quando comecei a trabalhar com electrónica percebi que o computador e um controlador MIDI não chegavam, que teria de trabalhar com objectos e instrumentos de percussão, objectos cuja fisicalidade me fosse mais familiar.

Em cada uma dessas tendências da música de hoje participas em projectos que te são fulcrais: Red List Ensemble (improvisação livre), Das Wilde Klingen (teatro musical), SORBD (free jazz). Podes falar um pouco sobre eles?

O Red List Ensemble nasceu por iniciativa do violoncelista Guilherme Rodrigues e deu-me a oportunidade de tocar com alguns músicos que admiro imenso, mas com quem nunca tinha tido tocado antes, nomeadamente Michael Thieke, Klaus Küvers e Richard Scott. É um grupo sem hierarquias, um ensemble que improvisa. Sentamo-nos para tocar completamente em branco, sem definirmos qualquer linha ou conceito, e fascina-me o facto de me sentir sempre como se estivesse a tocar música de câmara, mas sem partitura.

O ensemble Das Wilde Klingen é um grupo transdisciplinar que junta elementos de teatro musical, performance/movimento , action poetry e, mais esporadicamente,  elementos visuais. Tem a particularidade de se apresentar com um programa diferente a cada concerto que faz. Até hoje só repetimos um programa. Funciona como uma espécie de laboratório em que improvisamos por via de conceitos dramatúrgicos. 

O quinteto SORBD nasceu da vontade de Edith Steyer, Rieko Okuda, Mia Dyberg e eu de tocarmos juntas. Já tínhamos tocado umas com as outras em diferentes projectos, mas nunca as quatro na mesma formação. Entretanto, estávamos à procura de contrabaixista e, por coincidência, a francesa Marion Ruault estava em Berlim e convidámo-la para tocar connosco. Como não podia tocar em todas as datas que tínhamos agendadas, convidámos também Isi Rößler, que acabou por se tornar a contrabaixista efectiva do grupo. Tanto improvisamos sem qualquer instrução prévia como a partir de ideias, conceitos e composições, estruturando previamente aquilo que vamos tocar. Este quinteto tem uma paleta sonora imensa e, se tudo correr bem, teremos novidades ainda este ano! 

Estás muito envolvida com a cena da improvisação livre berlinense e, entre muitas outras colaborações, com figuras como Mia Dyberg, Ignaz Schick e Michael Muller. Como tem sido esse trabalho e que outras parcerias podes assinalar?

Toco com Mia Dyberg em vários projectos (Red List Ensemble, SORBD) e em outras formações ad-hoc. Foi das primeiras pessoas que conheci em Berlim, por isso já temos um historial longo. Ignaz Schick também foi das primeiras pessoas que conheci em Berlim e tenho participado em diversos projectos desenvolvidos por ele, tais como o Ensemble Circuit Trainnig ou o quarteto de percussão com Robyn Schulkowsky, Emilio Gordoa e Alex Babel, formações das quais o Ignaz é o director artístico. Portanto, o trabalho na cena berlinense tem sido rico e diverso. Gostava de assinalar a estreia recente do meu quarteto audiovisual formado por Anaïs Tuerlinckx (piano preparado, string box), Ulf Mengersen (contrabaixo), Linea (video-arte) e eu na percussão. Estou neste momento a preparar alguns projectos com  Rieko Okuda, Jasper Stadhouders, Christian Kuhn, Nick Dunston e Anil Eraslan, pelo que o ano de 2022 parece promissor. 

És, portanto, uma compositora que improvisa, ou uma improvisadora que compõe. Isto permite-te ter uma visão particular do outro lado e de como escrita e criação imediata se podem relacionar. Por exemplo, sobre como improvisando se compõe ou como se compõe de modo a permitir a improvisação. A que reflexões te conduzem este posicionamento particular? 

Para mim, a improvisação é um meio de gerar música e, por isso, uma forma de composição. Para mim, composição e improvisação não são coisas antagónicas. Há elementos de uma e de outra que se sobrepõem ou intersectam. 

Enquanto compositora e, por vezes, intérprete, para além da notação convencional utilizas muito partituras gráficas. O que podes dizer sobre este factor? É para a escrita/leitura como que o equivalente ao uso instrumental de técnicas extensivas?

Para mim uma partitura é um meio para atingir um fim. É uma maneira de registar ideias musicais para que nos possamos lembrar delas, tocá-las mais tarde e repeti-las. Tem um carácter puramente funcional e não é um fim em si mesmo. Aprecio muito artistas que fazem da partitura um objecto de arte por si só, há obras fascinantes, mas não é o meu caso. Utilizo a partitura gráfica ou elementos gráficos em partituras mais convencionais para expressar ideias, texturas ou processos que não seriam tão claros se optasse por usar uma simbologia mais convencional. E nesse aspecto sim, a partitura gráfica ou elementos gráficos acabam por funcionar como uma extensão da notação convencional.

A transdisciplinaridade é uma componente importante do teu trabalho, tal como já falámos a propósito da tua participação no DeScomposição Transitória. Em termos de abordagens, determina-te uma postura musical muito diferente?

Absolutamente! Para dar um exemplo bem concreto: quando trabalho com dança não faço uma música para uma coreografia, não chego com uma partitura feita no primeiro ensaio e não pretendo que um coreógrafo, performer ou “mover” faça uma coreografia para uma partitura minha. Gosto de desenvolver a parte musical ao mesmo tempo que os performers e bailarinos desenvolvem a parte de movimento, permitindo que ambos os elementos nasçam ao mesmo tempo, que um elemento influencie o outro e que cresçam juntos, numa espécie de simbiose. É assim que encaro a transdisciplinaridade. Este processo é completamente contrário àquela ideia muito difundida (e em que muita gente acredita) do compositor que sabe sempre exactamente o que quer, quando e porquê. 



Enquanto percussionista, que é como vamos ouvir-te agora, utilizas tanto bateria e percussão de orquestra como objectos do quotidiano, brinquedos e o que se proporcione, com uma paleta de timbres e possibilidades bastante aumentada. O que procuras e que referências tens neste âmbito?

Há aquele conto de Sophia Mello Breyner em que um casal procura um lugar idílico, não consegue encontrá-lo e, por estar tão obcecado em encontrar esse lugar, não repara em todas as coisas maravilhosas que existem no caminho. Li esse conto com 10 ou 11 anos e desde essa idade que tento não me esquecer disso, de olhar para o caminho em vez de me focar no destino. E é assim que encaro a minha caminhada. Receio que, ao definir objectivos, me distancie deles e nesse aspecto prefiro não me focar naquilo que procuro, mas naquilo que vou encontrando. Quase todos os objectos e brinquedos que incorporo na minha música foram frutos do acaso e quase todos têm uma história de como entraram na minha música. Nenhuma dessas histórias começa com “um certo dia estava à procura de um determinado som, ou objecto e ….”. Gosto muito de pensar que o destino é o próprio caminho, é a viagem em si.

Usas a electrónica para processamento da percussão e em enquadramentos electroacústicos. O que te permite e para que te serve, tendo em conta que a maior parte do que fazes é acústico, ou seja, que tal enfoque te ocupa apenas até certo ponto?

O uso de electrónica está relacionado com a tua pergunta anterior. Nunca tinha tido qualquer intenção de usar electrónica quando a descobri, através de uma disciplina obrigatória, quando estava a estudar composição na ESML. Desde aí nunca mais a larguei. Foi uma das tais coisas que encontrei no caminho. A electrónica serve-me essencialmente para encontrar espaços e texturas e trazer elementos, tais como field recordings, para as minhas peças e performances, que de outra forma não seria possível. Ou talvez fosse possível, mas eu habituei-me a encontrar esses espaços e texturas por via da tecnologia. Dependendo do projecto em questão, a electrónica pode ter um peso maior ou menor na obra final. Tenho peças, a exemplo de Chimeric Offering, que gravei recentemente e em que a componente electrónica é basilar. 

Escolhes habitualmente o formato solo para apresentares a tua música. O que te leva a fazê-lo?

Nunca reflecti muito sobre isso, mas creio que tem a ver principalmente com a minha personalidade e da forma como cresci. Apesar de ter uma família grande, aprendi desde cedo a estar sozinha: a ler, a praticar o meu instrumento, a pintar e desenhar, estudar e mais tarde a compor e viajar. Por me ter habituado desde cedo a ter um espaço em que aprendo, descubro e exploro sozinha, nunca senti o formato solo como algo de excepcional. Para mim foi o caminho natural, apesar de estatisticamente tocar mais vezes acompanhada do que a solo.  

Tens-te igualmente dedicado ao ensino e à pedagogia (aliás, trabalhas muito com e para crianças), bem como à investigação. O que podes contar sobre estes outros trabalhos?

Tenho tido a felicidade de, em Berlim, ter a oportunidade de participar em projectos pedagógicos absolutamente pioneiros, tais como o Klangradar. Este projecto permite que alunos das escolas públicas trabalhem durante vários meses num projecto criativo com um compositor ou compositora, durante o horário das aulas curriculares de música (em Berlim a disciplina de música é obrigatória para todos os alunos do primeiro ano do ensino básico ao último ano do secundário). Já trabalhei com três turmas no âmbito deste projecto, a última das quais durante o primeiro lockdown. Tivemos de adaptar um projecto altamente desafiante por si só, de modo a que pudesse continuar em formato online. Foi uma experiência absolutamente incrível, da qual poderia falar durante horas! Neste momento, dou aulas numa escola de música pública em Berlim, no departamento de Música Contemporânea, Performance e Sound Art, e iniciei recentemente uma colaboração com o departamento de Educação Musical. Os alunos mais novos que ingressam na nossa escola têm um ano em que podem experimentar vários instrumentos antes de escolherem aquele com que realmente querem tocar. A partir deste ano lectivo, estes alunos têm também acesso a um bloco exclusivamente criativo em que gravam, compõem e improvisam, o que possibilita que esta geração de estudantes tenha, logo no primeiro ano em que frequenta uma escola de música, contacto com uma série de matérias que outras gerações ou nunca tiveram ou só tiveram ao fim de 9 ou 10 anos depois de iniciarem a sua aprendizagem musical. 

Presumo que tens tido a possibilidade de observar o que se vai fazendo em Portugal nos circuitos da tua própria actividade musical. Como vês a cena portuguesa e que personalidades e trabalhos criativos te têm mais chamado a atenção?

Sim, observo o que se vai passando em Portugal e é entusiasmante ver como se desenvolve dia após dia. Todas as semanas há músicos aqui em Berlim que me dizem que já tocaram com este ou aquele músico português e muitas vezes são colegas que eu nem sequer conheço. Fico contente e de certa forma orgulhosa pela cena portuguesa se ter tornado tão vibrante. Vou acompanhando o que se passa na Sonoscopia. Uma vez que vários músicos aqui de Berlim colaboram ou colaboraram com esta associação, a Sonoscopia tornou-se tema frequente de conversa aqui em Berlim. Para além de Maria do Mar, Abdul Moimême, Paulo Chagas e outros colegas que por diversas razões me são mais próximos, tenho acompanhado também personalidades como Rodrigo Amado, Pedro Melo Alves, Luís Lopes e Luís Vicente. Chamaram-me a atenção, entre outros, Lumina de Pedro Melo Alves/Omniae Large Ensemble e Chão Vermelho de Joana Guerra.

És uma das poucas mulheres em cenários musicais hegemonizados por homens e por uma mentalidade patriarcal, binária e hetero-normativa. E muito provavelmente, mais em Portugal do que na Alemanha. Que questões, problemas e pensamentos este cenário te coloca?

Este cenário coloca-me tantas questões e tantos problemas que podíamos fazer uma entrevista só sobre este tópico. Creio que esta questão não pode ser desassociada de outras, tais como cor de pele, nacionalidade, poder económico, nível educacional… Na Alemanha, para além de estar numa sociedade patriarcal, ainda tenho de lidar com o facto de ser uma emigrante de pele castanha clara. Há diferenças entre os dois países tanto para o bem como para o mal. Gostava, para já, apenas de mencionar que o gender pay gap é ultrajante em ambos os países. Não sei se em Portugal há estudos sobre isso, mas na Alemanha o gender pay gap é ainda maior no sector artístico e cultural do que em outras indústrias. 

O que planeias fazer de seguida? O que te falta ainda realizar no teu intenso percurso?

Eu cresci de forma privilegiada, tive acesso a coisas que a maioria das pessoas não tem. Aprendi a reconhecer esse mesmo privilégio e custa-me pensar em termos daquilo que me falta, seja qual for o domínio da minha vida. No outro dia estive a organizar o meu arquivo de gravações de ensaios e concertos e reparei na quantidade de músicos incríveis com quem já toquei. Sinto uma gratidão enorme por isso e, se parasse por aqui, já não teria muito por onde me poderia queixar.  Quanto a planos, tenho muitos e brevemente haverá novidades. Mas lá está, o destino é a própria viagem!  


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