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Fotografia: Calif Ferreira
Publicado a: 31/01/2022

A vinda da artista a Portugal converteu-se em concertos que tão cedo não serão esquecidos.

Sofia Borges, ao vivo, em dois actos: um dedo e tudo o mais

Fotografia: Calif Ferreira
Publicado a: 31/01/2022

Residente em Berlim, de cuja cena é uma figura incontornável, a percussionista Sofia Borges esteve em Lisboa para duas datas que, no passado fim-de-semana, se destacaram no panorama de espectáculos da capital. Primeiro, a 27 de Janeiro, rumou até à SMUP, na Parede, para integrar uma edição da série DeScomposição Transitória – dedicada às interacções entre som e imagem – que teve também como convidada de Maria do Mar e Felice Furioso, os seus curadores, a artista visual Raquel Melgue. Duas baterias, muita percussão adicional, violino e vídeo. A ideia era tomar o vídeo como partitura e criar música espontaneamente.

Na tela começámos por ver um olho no canto inferior direito e, no centro, um dedo que premia insistentemente algo que não estava representado, uma superfície. Podia ser uma campainha, e foram campainhas, pequenos sinos, que se ouviram, único momento em que a vertente áudio ilustrou de forma assumida o que nos era transmitido visualmente. Era um dedo percussivo, de pequenos gestos repetitivos, anunciando uma abordagem marcada pela subtileza, feita de eventos liliputianos, ainda que a música crescesse em intensidade e volume ao longo da duração da performance. Depois, no lugar do dedo, surgiu o que parecia ser um monitor de retorno de som, se bem que este mostrasse imagens, como um televisor. Em dado momento, o ecrã do monitor foi preenchido com o que poderia passar por um enxame de pássaros ou insectos, com o contraponto irónico do comando de computador que, ao lado, sob a designação Flying Things, incluía a possibilidade de fazer stop. O mote era claro: permitir a fluência do que acontecesse musicalmente, até ao momento em que um stop conduzisse a outra situação. Desenvolvimento e corte eram as duas premissas em jogo, apenas e só.

Sofia Borges e Felice Furioso colaram de imediato, um complementando o que o outro fazia com as peles, os metais e os objectos que levavam, de tal modo que se tornou difícil distinguir o que cada um colocava na trama sonora. A combinação de uma tal presença da percussão com um violino, o de Maria do Mar, era um risco, pois este podia desaparecer no meio da tempestade que irrompeu pelo salão da SMUP. A violinista aceitou o desafio e deitou mais achas à fogueira, desmultiplicando-se em fraseados e harmónicos. Em determinada altura reivindicando mesmo o contraste mais absoluto para com as intrincadas texturas em construção: a introdução de uma melodia que mimetizava a pressão do dedo sobre a superfície desconhecida, já quando esse dedo não se vislumbrava. A única referência do domínio da improvisação para o que estava a suceder era o duo de violino e bateria de Billy Bang e Kahil El’Zabar, mas remetendo-nos igualmente para as composições de Xenakis para percussão e, em simultâneo, para com o que faria um cordofone de arco num contexto punk (ou com o que a própria Mar fez com Ameeba no tema “Quarenta e Oito Anos e Uma Sardinha para Cinco”, da colectânea The Power of Union – Fight the Fascists, e nos palcos com a banda hardcore de mulheres Matriarca Paralítica). Não poderia ter sido mais incendiário.

Meia-hora passada, o ecrã do monitor passou a mostrar grão, ruído apenas, e o vídeo terminou, com a tela a converter-se ao cinzento. O trio restante passou a tocar esse cinzento e depois Furioso e Mar retiraram-se, com Sofia Borges a iniciar, sozinha, uma desconstrução de tudo o que tinha ficado para trás, em descida, retirando fios à teia urdida até ficar somente o silêncio, um silêncio longo tornado música. O silêncio equivalente ao anterior desaparecimento das imagens, tornado definitivo até soarem as primeiras, e entusiásticas, palmas do público.



No dia seguinte, a 28, Sofia Borges apresentou-se na BOTA, no coração de Lisboa (Anjos), em duas situações. A inicial foi um solo, não anunciado, de percussão electroacústica, que ainda mais evidenciou a sua irrequieta capacidade manipulativa dos muitos recursos de que dispunha. Toda a bateria estava microfonada de muito perto, e dispunha de uma série de pedais de guitarra que a também compositora ia ligando e desligando consoante o que fazia com o arsenal percussivo. Num segmento especialmente interessante, deteve-se na pedaleira e no processamento electrónico dos materiais que tinha antes registado, assumindo o carácter lo-fi e transistorizado, sujo e próximo do rock, da situação. Se na noite anterior assistíramos ao seu lado mais conotado com a música contemporânea, agora parecia que estávamos numa okupa berlinense.  

Só depois tocou o trio com Maria do Mar e Abdul Moimême, ela com uma violeta (vulgo viola, ou violino alto), ele com uma guitarra eléctrica disposta na horizontal, sobrepondo-lhe chapas e artefactos metálicos vários. Se desta vez não havia vídeo, a música ganhou desde logo um carácter visual, cinematográfico até, impondo um ambiente e um estado de espírito muito específicos. Sobre uma base introspectiva e cursiva, como um rio calmo, iam surgindo erupções, em sobreposição de motivos, dinâmicas, decibéis e inquietações, para muito depressa tudo voltar à primeira forma. A música era ondulante, aquática, com ondas de densidade a sucederem-se ciclicamente, como se fossem pulsações, súbitas formações que segundos depois se desfaziam. O formato de triângulo, com a guitarra preparada e a percussão a ocuparem os vértices inferiores e a viola o superior, foi o escolhido, adoptando os princípios melódico, harmónico e rítmico representados pelos instrumentos em causa. Só que esse mesmo triângulo ia sendo invertido ou contrariado por operações de bending geométrico ou de desligamento das linhas de união. Por exemplo, quando Moimême sublinhava ou prolongava os timbres da viola recordando as funções de um guitarrista convencional. Ou quando Maria do Mar chamava a si um estatuto percussivo, somando-se ao que faziam Abdul Moimême e Sofia Borges por baixo, ao lado ou mais acima.

Neste enquadramento, o concerto foi de reminiscências – as da música de câmara, do jazz livre, do rock alternativo – e novos baralhamentos de cartas, dentro das coordenadas da chamada EAI (Electro-Acoustic Improvisation), mas levando o factor improvisação para o âmbito da música experimental ou exploratória. Ou seja, não foi uma normal actuação de música improvisada, porque se evitaram os clichés da mesma: o momento e a intuição foram ferramentas composicionais e o que se ouviu tinha por detrás uma atenção constante à elaboração de estruturas (e correspondentes formas), a de conjunto acabada de descrever e as de micro-esqueletos que se formavam por oportunidade. Aliás, o sentido de oportunidade foi chave e nesse aspecto Mar esteve particularmente bem: retirava-se quando percebia que a violeta estaria a mais e regressava às intrigas no preciso instante em que tinha algo que era importante acrescentar. Moimême destacou-se ao nível do controlo e da contenção, ambos exímios, e quanto a Sofia Borges ficaram finalmente claras, no país em que nasceu, as razões que levaram a que seja um caso de sucesso na Alemanha. Uma bastante concreta: a sua habilidade de dominar o quase aleatório, o acidente mesmo, por meio de uma técnica impecável e de converter esta em linguagem e em expressão. Algo de precioso ocorreu com a sua vinda a Portugal e esta não será esquecida tão cedo por quem a testemunhou. Eis como uma questão de dedos traz tanto consigo.

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