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Rodrigo Brandão

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Uma genialidade inquestionável.

Sly Stone, o spaced cowboy que sempre foi pedra filosofal

No cosmos da funky music, todo mundo é uma estrela. Mas existe uma hierarquia, ainda que anárquica e festiva, e no topo dela encontra-se sua Santíssima Trindade: James Brown, Sly Stone e George Clinton. Enquanto escrevo essas linhas, nosso universo procura assimilar o impacto do abalo sísmico causado pela passagem do patrono da Família Stone.

Nascido Sylvester Stewart, há 82 anos, é — sempre será — um dos maiores artistas, compositores, produtores, e bandleaders que já passou pelo planeta. Suas canções se provaram atemporais, e figuram entre as mais perfeitas do panteão pop. A genialidade de Sly Stone é inquestionável, assim como sua relevância. A tempestade de tributos que se instalou instantaneamente após o anúncio da sua ascensão, e parece se alastrar sem parar, é mais que merecida.

Vindo de uma família realmente religiosa, logo cedo ele, suas irmãs Rose e Loretta [aka Vaetta], e o irmão Freddie, formaram um grupo gospel infantil. Sob a alcunha de The Stewart Four, chegaram a gravar um compacto de louvor. Mas os dias dedicados a Deus durariam pouco. 

Carismático e comunicativo por natureza, começou carreira como disc jóquei nas ondas do rádio. Criado na Bay Area californiana, estava na hora e no lugar certos quando a contracultura começou a brotar daquela região em pique pororoca. Também tinha a idade e os talentos certos para se tornar um dos mais importantes agentes da transformação musical e sócio-cultural que se desenrolou na segunda metade dos anos 1960.

Atento ao zeitgeist, Sly se envolveu na nascente cena do rock psicadélico, e chegou a produzir alguns grupos, como The Great Society, que depois ganharia fama com o nome de Jefferson Airplane. Na intersecção entre essa estética e a da gloriosa soul music do mesmo período, cenas até então praticamente apartadas, ele enxergou o amplo espaço a ser ocupado e as múltiplas possibilidades ali contidas.

Ligeiro, tratou de expandir, para além do berço materno, a turma em torno de si. Fora Freddie, na guitarra e vocais, e Rose na voz e teclados, a formação contava com Cynthia Robinson no trompete e vocais, o lendário Larry Graham, baixista inventor da técnica de tocar batendo os dedos nas cordas conhecida como slap, que também fazia vocais; mais os caras-pálidas Jerry Martini no saxofone e Greg Errico na bateria. 

Estava formada Sly and The Family Stone, a primeira banda a incluir pretos e brancos, homens e mulheres. Hoje pode soar comum, mas na época foi um escândalo. Isso, somado ao talento transbordante, as inovações sonoras e visuais que traziam, mais a alegria radiante que emanavam no início, fez a fama do grupo se alastrar rapidamente, e logo assinaram contrato com a gravadora Epic.



A Whole New Thing, a estreia da Família, falhou em alcançar sucesso comercial em 1967, mas no ano seguinte Dance To The Music botou a banda no mapa. A partir daí, o bicho pegou. Em 1969 teve o álbum Stand, com clássicos como “Everyday People”, “Sing A Simple Song”, e a faixa-título. Como se não bastasse, ainda soltaram o single “Thank You (Falettinme Be Mice Elf Agin)”, das faixas mais funky que já pipocou nas pistas de dança desse mundão.

No mesmo ano, saíram vitoriosos do festival de Woodstock. A princípio, estavam escalados para tocar durante o dia, mas o caos que caracterizou a produção do hoje lendário evento funcionou a favor da Family Stone: acabaram por se apresentar no horário nobre da programação e entregaram uma performance estelar. Quando o documentário de mesmo nome chegou aos cinemas, ninguém podia negar que o auge da porra toda era “I Want To Take You Higher”, com Sly comandando a massa de gente e de energia no coro da canção.

Mas quando a próxima década chegou, o clima já não tava pra romance. Em 1971, os EUA estavam em conflito tanto no Vietnam quanto internamente. A esperança de uma conciliação racial foi assassinada com o reverendo Martin Luther King. Marvin Gaye perguntou What’s Going On, e Sly respondeu: There’s a Riot Goin’ On.

Lento, denso, depressivo até, o álbum encapsulou o espírito da época de forma fiel e espetacular. Naquela altura, a faceta gangsta do líder, junto aos excessos do estrelato, já tinham despachado praticamente todo o line-up clássico da banda. Larry Graham teve que sair fugido depois de um show sob ameaça de morte, Cynthia Robinson abaixou o trompete para se dedicar à maternidade da filha cujo pai era o próprio Sylvester, e Errico simplesmente se encheu daquilo tudo. Sua ausência ajudou o líder a cravar mais um marco: “Family Affair”, o single inicial de There’s a Riot Goin’ On, é o primeiro grande hit a usar bateria eletrônica que se tem notícia. Para compensar a falta da Family, Sly convocou seus parceiros de balada, uns tais de Miles Davis, Ike Turner e Bobby Womack. Por questões contratuais, nenhum deles foi creditado como contribuintes dessa obra prima.

Depois disso, as drogas começaram a drenar sua força e fortuna, mas ele ainda nos deu dois discos memoráveis, Fresh (1973), com a imbatível “If You Want Me To Stay”, e Small Talk (1974), puxado pelos grooves de “Time For Livin’” e “Loose Booty”. Ambas as faixas foram apresentadas a gerações seguintes pelos Beastie Boys, que gravaram uma versão hardcore de “Time For Livin’” e samplaram “Booty” em “Shadrach”.

Quando a gente para pra pensar que tudo isso aconteceu num espaço de sete anos, parece pouco tempo… E é! Mas os ecos desse auge são audíveis até hoje, como provam os sucessos da autobiografia, de 2023, e do documentário Sly Lives! aka The Burden of Black Genius, dirigido por Questlove, líder da banda The Roots e lançado no início desse ano.


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