[TEXTO] Rui Miguel Abreu [FOTO] Pedro Mkk
Slow J afirmou-se, justamente, como uma das mais vigorosas vozes do presente, um expoente da sua geração e um caso sério de sucesso que tem vindo a escalar os degraus da exposição pública em palcos crescentemente maiores. E, curiosamente, quando se consultam os seus dois registos presentes no site discogs.com – The Free Food Tape e The Art of Slowing Down – ainda se percebe que estão ambos registados como “not on label”: ou seja, são edições de autor, à margem de uma indústria em que, ainda assim, a sua música tem deixado fortes impressões. Visto como uma certeza para o futuro, Slow J abre-se aqui numa conversa franca sobre a sua arte, os seus processos mentais, a sua relação com as palavras e com quem as ouve.
As palavras, mesmo sendo as mesmas que já escreveste há uns anos, ganham um novo significado quando a audiência cresce da maneira que tu viste crescer?
Não tenho a certeza se elas ganham significado com o tamanho da audiência. Eu passo sempre por um processo de reinterpretá-las ou seja, elas acabam por se aplicar de formas diferentes em diferentes momentos da minha vida. Imagina, a sensação de entrar no palco é bué a sensação de vir de uma semanal normal, de um dia normal, tive stress com a minha namorada, o meu irmão está em baixo ou os meus pais estão com qualquer coisa e, quando vou para o concerto, não é que eu consiga estar 100% num ponto de equilíbrio, de paz de espírito, que me permita transmitir sempre a coisa da mesma maneira exacta. E sinto que a grande diferença acaba por ser a minha experiência e como é que eu muitas vezes ao cantar sou confrontado com imagens do que estou a viver naquele momento. E sinto que as palavras mudam mais em relação a isso, em relação à minha experiência, pelo menos para mim, porque sou eu que estou a ouvi-las nesse sentido. Não sei se responde à tua pergunta…
Sim, sim, e isso vai ao encontro de um episódio que te vou contar muito rapidamente. Recentemente entrevistei uma artista portuguesa mas que vive há muitos anos em Londres. Chama-se Ana da Silva e fez parte de um mítico grupo de punk rock, as Raincoats. E essa artista, que é guitarrista e escreve as letras da banda, descobriu em 1993 que tinha um fã chamado Kurt Cobain que a foi visitar. O Cobain era tão fã das Raincoats que as convidou para uma digressão que nunca chegou a acontecer porque ele entretanto suicidou-se. E ela conta esta história de estar em palco em Nova Iorque, uma semana antes dessa suposta digressão começar, quando foram informá-la e às colegas de banda que tinha sido descoberto o corpo dele. E recordou ela que depois de saber disso, as canções, que eram as mesmas, ganharam um novo significado. Portanto, acaba por ser aquilo que tu me estás a contar: consoante os episódios da tua vida, as palavras parece que ganham outras nuances. É isso?
Perfeitamente. E eu sinto coisas do género, e isso já se relaciona um bocado com o crescimento, que é, no meu primeiro EP, como eu estava a começar, lembro-me – e isto por acaso reparei no último concerto – que quando estava a escrever eu estava a tentar mandar mensagens subliminares a mim próprio, em termos de foco, as coisas essenciais e realmente importantes. E sinto que um álbum, sendo uma coisa que já construí por cima do EP, se calhar não vive tanto desses factores que eu sinto que são coisas chave. Penso que o EP chega a menos pessoas porque tem uma linguagem… como é que eu hei-de explicar? Também tens o factor crescimento, não é? Mais pessoas já me ouviam quando eu lancei o álbum, mas sinto que no EP que se calhar era um bocadinho mais difícil expressar-me. Percebo-me um bocado melhor no álbum. Acho que sou mais claro naquilo que quero transmitir. Mas no EP há cenas tipo, ser honesto, dizer a verdade na “Cristalina”, a questão do “concentras-te a fazer para não cair num vício”, na “Origem”. A “Origem” por exemplo é uma canção importante e eu acho que o significado dela vai acompanhar-me até ao fim da minha carreira.
Estás a falar de no EP teres escrito sobretudo para ti próprio e no álbum já teres consciência que tinhas um público?
Não propriamente. Simplesmente há coisas que já estavam ditas no EP que eu não precisei de repetir no álbum.
Questões que já estavam arrumadas.
Exacto. E está tão lá para trás que eu às vezes quando ouço, porque eu toco algumas delas ao vivo, surpreendo-me… não me interpretes mal, mas é o quão sábias eram aquelas palavras para mim e o quão relevantes são para mim hoje em dia. Quando começo a voar um bocado e os pés começam-se a afastar da Terra…
Elas são uma âncora. Puxam-te para baixo.
Ya. De valores base. Que eu sinto que vão ser importantes sempre. Imagino que o mais difícil para um Jay-Z ou um Kanye West quando fazem um álbum hoje em dia seja eles chegarem ao estúdio e não serem o Jay-Z milionário e o Kanye West milionário. Eu acho que a questão difícil para eles hoje em dia é chegarem ao estúdio e serem as crianças que eles eram quando começaram a criar, o interesse pelos barulhinhos e as merdinhas. E não se vai ser um hit. E eu acho que essa rebobinagem é crucial e eu tenho usado muito o meu EP para me trazer de volta.
Tu tens tocado muito ao vivo. Tu sentes que no material que espalhaste pelo EP e álbum existem coisas mais apropriadas para os auscultadores e material mais apropriado para ser executado ao vivo? Há palavras que resultam melhor ao vivo quando estamos a partilhar uma vibração colectiva, e outras que resultam melhor quando estamos sozinhos fechados com auscultadores? No teu caso específico.
É difícil eu responder-te em relação ao meu caso específico. Eu sinto completamente que há isso na minha experiência como fã. Mas eu não consigo ter a sensação do que é ouvir a minha música nos auscultadores sem ser eu. Portanto a minha resposta pode ser na teoria que algumas fariam mais sentido, outras não. Mas, não sei bem porquê, há músicas que são bué para baixo que resultam bué bem ao vivo.
Dá-me um exemplo.
A “Às Vezes” é das maiores músicas que eu toco ao vivo. A “Serenata” é das maiores músicas que eu toco ao vivo. Que não são tão esperadas. A “Sonhei P’ra Dentro” é um exemplo de uma música que eu acho que resulta melhor ao vivo do que nos fones.
Estranho, mas sim.
Não sei… Porque acho que a linguagem que foi usada… Eu sempre vi a música um bocado como uma cena que ia… eu imaginava uma fadista. E atenção: eu escrevi muitas coisas no meu álbum que imaginava outras pessoas a cantarem, simplesmente como não tinha um nome grande não conseguia como produtor trazê-las para o álbum e então executei eu. A “Sonhei P’ra Dentro”, por exemplo, é um som em que tens o momento [começa a cantar] a linha é de fado, não é? E depois “Ma nigga eu ’tou no grind 24/7” é um choque completo de transição e essa cena ao vivo resulta muito bem. Eu sinto que é uma cena que nos fones, quando estás mais introspectivo, se calhar é só choque. Não é transmitido da mesma forma. Mas ao vivo, então com o Fred na bateria, é tipo metal.
Quem é que tu tinhas imaginado nos teus delírios de fã para esse pedacinho dessa canção?
Nunca tive ninguém em concreto. Aí era só uma fadista.
Nunca chegou a ter um nome essa fadista.
Exactamente. No caso da “Casa”, eu tinha imaginado os Da Weasel: o verso era o Carlão e o refrão era o Virgul. Mesmo que fosse impossível executá-lo assim, mas pronto… E havia mais algumas, se eu ouvisse conseguia te sacar mais umas quantas.
Olha, vamos falar um bocadinho da parte técnica. Como é que és tu a escrever? Eu até nestas experiências do Debaixo na Língua, tenho conversado com muita gente, e existem pessoas que não têm problemas em dizer que as letras dão muita luta, que é quase palavra a palavra, e que têm de andar ali semanas de volta de uma letra para a esculpir até ela assumir a forma final. Há outras que confessam que acordam e a letra jorra deles e de repente cinco minutos depois está lá a letra no papel toda escrita. Há quem diga que as letras nascem a partir do som, que começam a cantarolar coisas que não são palavras, que são apenas sons, e que de repente começam a ouvir palavras nesses sons. Como é que acontece no teu caso? Como é que nasce a típica, se é que existe isso, letra do Slow J? É uma coisa que dá luta, que é simples, é transparente…?
Não há propriamente um processo fixo. E acho que com tudo o que eu faço sempre que eu acho que “agora arranjei a maneira”, ela deixa de resultar. Acho que o processo é a evolução do processo. Porque todos esses casos já me aconteceram. Tudo o que acabaste de dizer. Há momentos em que eu estou a fazer mais beats, há momentos em que eu estou a escrever mais letras. Durante o meu álbum, havia poucas letras que eu já tinha escritas antes de ter um beat. Ou seja, quase tudo foi escrito para o beat e para o álbum. Enquanto que por exemplo no meu EP eu tinha letras que eu passava uma tarde a escrever. Tinha letras a mais. Tinha letras que se eu fosse a uma cypher… Fechei o EP e comecei o processo do álbum e inverteu, deixei de ter um stock de letras e passei a ter muito mais um stock de beats. E a escrever para os instrumentais…
E são os beats que determinam a temática? Muitos MCs dizem que quando ouvem um beat, o beat puxa para um determinado assunto, para um determinado tipo de flow, para um determinado conjunto de ideias que querem transmitir. E que é como se o beat já viesse com uma série de instruções lá dentro que os orientam na escrita das palavras. Como é que é contigo?
Para mim não há regras porque eu faço os beats… Imagina, o “Às Vezes”, por exemplo, a sensação foi de… eu estava muito triste e falei ao telefone várias vezes com pessoas durante esse dia. “E como é que é, não sei quê” e eu “tranquilo, tranquilo”. Nunca falava sobre o quão triste eu estava. Apercebi-me que estava a fazer isso e pensei na frase “às vezes dói mas eu escondo”. Imediatamente, eu andava a brincar com a iMachine no iPad e agarrei naquilo, meti os fones, escrevi “às vezes dói mas eu escondo”, apanhei o BPM, encontrei um sonzinho… E fiz o beat para a ideia de letra e a partir daí escrevi e saiu tudo ali.
Muito bem. Vamos agora falar de uma outra questão e que tem mais a ver com a poética e com as mensagens que tu transmites. A ideia de que um artista tem um determinado tipo de responsabilidade é correcta? Tu sentes que tens responsabilidade perante ti próprio enquanto criador ou que o facto de saberes que há gente que te presta atenção carrega mais alguma coisa em cima dos teus ombros na hora de escrever?
Acho que é um bocado um pau de dois bicos. Acho que se fores tentar salvar o mundo podes acabar num discurso moralista que não te diz nada a ti nem diz nada às pessoas. E acho que se validares aquilo que tu sentes, mesmo não estando a pensar em ensinar imensas pessoas ou mudar a perspectiva delas, vais acabar por fazer isso.
Nunca deste por ti a riscar uma frase por pensares, “não, eu não posso dizer isto”?
Já. E já houve músicas inteiras que eu não ia lançar ou que estavam um bocado para lá do meu pudor ou do que eu gosto que as pessoas saibam sobre mim. Mas acho que também faz parte da evolução. Eu tenho vindo a dividir o hip hop especificamente em duas facções e acho que de um lado tens rappers que são maioritariamente narradores e rappers que são maioritariamente personagens no filme. E acho que do lado dos narradores tens, para dar um ou dois exemplos rápidos, um Kendrick Lamar ou um Jay-Z, e do lado das personagens tens um Drake ou um Kanye West. No lado dos narradores é muito difícil tu chegares a julgá-los. Eles estão sempre a olhar de fora para as situações, eles estão sempre a dar-te a moral, sempre a observar. Enquanto que aqui tu estás sempre a julgá-los, tipo um Kanye West ou um Drake, tu estás sempre… a aprendizagem que tu tiras de um Kanye West passa por dizeres que ele está errado, que ele é burro ou é otário. Ou que o Drake está a ser mesquinho ou está a ser invejoso. Mas tu estás sempre a retirar uma aprendizagem, certo? Enquanto pessoa que está na terceira pessoa.
Onde é que tu te vês no conjunto dessas duas facções?
Eu vejo-me até agora muito mais narrador, mas vejo o valor de poderes usar o vocalista enquanto personagem.
Eu vejo-te um bocadinho como o misto das duas coisas.
Sim, sim, eu acho que todos eles são um misto também…
Mas eu entendo a divisão que estás a fazer e acho que é muito inteligente. É uma maneira muito curiosa de olhares para isto.
Acho que todos eles são um bocado uma mistura, mas acho que claramente tendem para lados diferentes. E tenho vindo a dar um bocado de valor aos dois porque a posição de narrador tem limitações, não é? Tem essas limitações de eu não poder ser assim tão inconveniente. Tenho que ser algo politicamente correcto dentro do que é o meu próprio nível de pudor. De como é que eu quero que as pessoas me vejam ou o que é que eu quero que as pessoas vejam de mim. E sinto que isso são barreiras a ser destruídas. Sinto que quanto mais eu conseguir transmitir aquilo que eu sou na realidade melhor, e assim tanto melhor vai ser o meu serviço a mim próprio enquanto terapeuta e melhor vai ser o serviço que presto às pessoas enquanto artista honesto.
Olha, o rap ajudou a mudar o mundo? Estreitando a pergunta, o rap tem ajudado a mudar Portugal? Eu, por exemplo, e já o escrevi, acredito piamente que o Obama nunca teria chegado ao poder se não tivesse existido uma certa geração a ouvir um determinado tipo de música. Não quer dizer que todas as pessoas fãs do Jay-Z ou do Kanye ou do Nas foram votar no Obama. Não é isso. Tem a ver com o ir mudando a forma de comunicar e a forma de pensar de um próprio país através de uma cultura e que isso facilitou que algo acontecesse, nesse caso o Obama chegar ao poder. Eu quero acreditar que estamos a meio de um processo semelhante em Portugal, de uma transformação de mentalidades e que o rap em Portugal tem tido um papel importante nessa transformação. Como é que tu vês essas coisas?
Interessante… Muito interessante… De certeza que mudou, de certeza que transformou porque eu e a minha geração crescemos a ouvir hip hop e muita gente da minha idade ouviu álbuns inteiros do Valete, do Sam e eu pessoalmente cresci muito com isso e com essa noção “valetiana” de rebeldia e acima de tudo de valorização das próprias ideias. Eu acho que o Valete para mim sempre foi muito um símbolo do quanto eu podia acreditar naquilo em que acredito. Não sei se havia outro símbolo parecido que fosse tão empowering. Agora, em termos de mudanças concretas, eu não tenho bem a certeza. Teria que fazer um estudo sociológico [risos].
Claro que as nossas conclusões são sempre empíricas. Baseiam-se naquilo que nós próprios conseguimos observar e nós nunca conseguimos observar um país inteiro. Mas formamos uma impressão.
Uma das coisas que teve muito impacto em mim no hip hop e um bocado antes do hip hop, a produção da música electrónica onde o hip hop está inserido, é um bocado o movimento DIY. Sinto que nós somos um movimento com capacidade de fazer coisas de muito grande qualidade nos nossos quartos.
Já éramos todos start-ups antes do conceito ter aparecido.
E cada vez sentes menos diferença entre música de fora e música cá de dentro, em termos da qualidade dos aspectos técnicos, e nós conseguimos fazer isso por nós próprios. Tudo o que eu uso tu estás a ver aqui [risos] isto é uma sala grande mas não tens muita coisa…
Mas cabia quase num armário, não é?
Ya. E já esteve tudo no meu quarto. Eu acho que isso é um valor excelente que está a chegar muito bem a esta geração. E sinto que isso vai mudar muito coisa. Olho para os YouTubers e acho um exemplo excelente disso. Não sei, várias camadas de miúdos que há dez anos estariam só a jogar à bola, que seria uma das únicas actividades extra-curriculares que eles iam fazer, e hoje chegam a casa e estão a criar. São criadores. E vês, neste momento, que há canais de YouTube em que tens programas que podiam passar na SIC Notícias. Com esse nível de qualidade. Para dizer especificamente, eu acho que enquanto artista de hip hop represento muito isso. Represento muito o fazeres por ti próprio, não existirem barreiras, não haver necessidade de grandes editoras ou grandes coisas que não estão ao alcance de qualquer pessoa.
Para terminar, e voltando ao assunto das palavras, que palavras vais querer escrever no futuro num próximo álbum? O que é que anda borbulhar na tua cabeça? Tens cadernos e cadernos cheios de coisas ou ficheiros no telemóvel? Como é que tu estás a organizar aquilo que queres dizer no futuro?
Olha, honestamente neste momento estou a tentar limpar tudo. Estou a tentar ir ao zero.
Limpar a cache…
Ya, exactamente. Em que não há nenhuma ideia pré-concebida do que é que vai ser o álbum. Todas as que eu tinha no meu pós-álbum apliquei ou experimentei no álbum do Papillon, em termos de produção especialmente. E agora estou numa política de quero chegar ao silêncio, ao zero, não tenho nenhuma música que possivelmente irá entrar para o meu próximo álbum. E partir daí. Porque quero tanto chegar a uma linguagem com uma narrativa e sonoridade mesmo diferente. E para isso sinto que preciso de desconstruir. Acho que o meu maior medo é dar o álbum 1.1, que é uma cena que acontece a muitos artistas. O 1 corre bem e fazes o 1.1 ou 1.2. Eu não. Quero mesmo dar o 2.0. Estou a limpar em vez de estar a guardar ideias.
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* Texto originalmente publicado em Debaixo da Língua, livro que junta uma série de entrevistas realizadas a propósito do festival O Sol da Caparica