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Fotografia: Bernardo Infante/Guilherme Braz
Publicado a: 17/12/2020

Soulful Purpp para mexer (ainda mais) com 2020.

Sippinpurpp: “Cresci com hip hop tuga e só não queria fazer a mesma coisa que já tinham feito. Queria fazer uma coisa nova”

Fotografia: Bernardo Infante/Guilherme Braz
Publicado a: 17/12/2020

Se tivéssemos de nomear, sem pensar muito, um rapper português que tivesse levado pancada desde o primeiro momento em que entrou em cena, facilmente chegaríamos ao nome de Sippinpurpp.

Desde o lançamento de “No meu copo“, single publicado em Março de 2017, o artista de Ovar tornou-se numa espécie de saco de boxe dos mais conservadores, a punchline preferida para quando se queria falar nos problemas da nova geração, a cara de uma escola maldita que vinha abalar as estruturas bem definidas daquilo a que chamamos hip hop tuga.

Mas, afinal de contas, o que é isso do hip hop tuga? André Vaz respondeu-nos a essa pergunta em entrevista pelo Zoom, mas não só, navegando pelos problemas que enfrentou aquando do seu aparecimento, o seu novo single “1000 Jogos” e a sua vontade de experimentar (mais) o caminho da representação.



A primeira impressão com que eu fiquei ao ouvir o “1000 Jogos” foi que tinhas coisas dentro do peito que precisavas de soltar cá para fora. E a minha primeira pergunta é: foi o beat que o benji te mostrou que te puxou por isso ou, pelo contrário, tu sabias que querias fazer um som com estas características e foste à procura de um beat que te permitisse fazer isso?

Fui eu que falei com o benji e pedi-lhe para ele me fazer este tipo de beat. Eu pedi-lhe um boom bap, ele fez-me um boom bap e eu cuspi em cima desse beat. Eu fiquei a ouvir essa demo durante uma ou duas semanas e achei que não era bem aquilo e pedi-lhe para ele fazer um beat mais jazzy. E até fizemos esse beat em conjunto. Foi ele que fez o beat mas comigo a ajudar a escolher o sample, etc. Mas fui eu que me cheguei à frente e disse-lhe, “quero fazer isto, quero fazer este tipo de som”. E era isso: eu tinha coisas dentro do peito que queria dizer de uma certa maneira, e que transparecesse para as pessoas de uma certa maneira. 

Isto não é ir comprar uma roupa já feita ao pronto-a-vestir, é ir ao alfaiate e pedir um fato à medida, não é?

Claro, exactamente. Mas isso é uma coisa que nós na Think Music sempre fizemos, pelo menos comigo. Os meus beats nunca foram beats que me mandaram e eu disse “vou gravar neste”. Foram sempre beats feitos à medida para mim. 

Já passaram três anos desde que lançaste a “No Meu Copo” e em Setembro de 2018 largaste a “Sauce”, e eu acho que esse foi um momento muito importante para ti. Olhando para trás, achas que foi o tema que te permitiu reclamar uma certa autoridade dentro da nova escola?

Sim, acho que foi. Eu comecei em 2017 com a “No meu copo”, estava lá na minha zona, em Ovar, e fazia umas coisas no quarto, eu e um amigo, o Alessandro, que era um colega meu que estudava cinema e era DJ. Ele não tinha nada a ver com hip hop mas conseguia ajudar-me. Começámos com a “No meu copo”, foi a minha primeira música e era como eu me sentia na altura e como me queria expressar na altura. Depois avançámos e entre a “No meu copo” e a “Sauce” tive dois ou três temas que me ajudaram a crescer. Na “Sauce” é isso que tu disseste, acho que foi o tema que me ajudou a sobressair das outras pessoas que começaram a fazer música na mesma altura que eu. Acho que representei os jovens e a vibe que estava a crescer na altura em Portugal. Mas, como tudo, eu cresci e foi o meu pé na porta do rap. Mas agora estou noutro mood e o passado é passado, o futuro é o futuro e o presente é o presente.

Tu tens óbvia noção de que… se calhar se não tivesses tido sucesso isso não teria acontecido, mas felizmente tiveste sucesso, e quando uma pessoa conquista sucesso também se torna num alvo. E para uma série de vozes, digamos, mais conservadoras dentro da cena hip hop tuga, tu tornaste-te numa espécie de símbolo daquilo que eles achavam que estaria errado com o rap da nova geração. Essa ideia afectou-te de alguma maneira ou o facto de estares incluído numa família como a Think Music deu-te a protecção certa para lidares com esse tipo de críticas?

Sinceramente, afectou-me. Não vou estar com coisas nem com histórias. Afectou-me porque nós, como seres humanos, procuramos ser aceites naquilo que estamos a fazer, não é? Procuramos ser aceites pelos nossos pares e eu sempre vi o hip hop como uma maneira de expressar e uma maneira de sermos livres. Quando eu comecei a receber esse backlash e essas opiniões, eu fiquei triste e acho que até a minha maneira de expressar mudou. Comecei a pensar duas vezes antes de fazer um tipo de música ou antes de dizer uma coisa na música. Eu sinto que até a minha maneira artística de me expressar foi afectada pela opinião das outras pessoas. Mas também não digo que seja uma coisa má porque às vezes nós também estamos errados e precisamos de mudar alguns comportamentos que temos. Mas, no final do dia, eu acho que não me deviam ter julgado só pela minha aparência ou só por aquilo que eu estava a dizer porque é o que este som vem mostrar: eu cresci no (e com o) hip hop tuga, eu só não queria fazer a mesma coisa que já tinham feito. Eu queria fazer uma coisa nova. Apesar de ter feito uma coisa nova e ter sido aceite, eu sinto que, sei lá, eles na altura deles, essas figuras mais velhas do hip hop, os gatekeepers, sofreram no passado isso que eu sofri. Não vivi nessa altura, mas acho que eles sofreram o que eu sofri. E eu no futuro não quero ser essa pessoa que vai julgar os putos que estão a fazer outro estilo de música. Eu não quero ser essa pessoa que afecta… é que afectou-me pessoalmente e a nível artístico, eu deixei de fazer certos estilos de músicas porque achei, “epá, se calhar as pessoas vão achar que isto é ignorante ou que isto é burro”. Mas não é por uma coisa ser mais simples ou com menos estruturas rimáticas ou silábicas que é menos arte ou menos interessante que uma coisa mais elaborada. Acho que tem de haver um equilíbrio. 

Só não respondeste se foi importante para lidares com esse backlash, como tu referiste, estares incluído numa família como a Think Music.

Sim, foi importante, claro. Porque, apesar de tudo, foram eles que estiveram sempre na minha back, o Benji principalmente. O xtinto e o Finix estiveram sempre na minha back a dar-me apoio e a dar-me o valor que às vezes até eu achava que não tinha. Eles sempre foram as pessoas que me valorizaram quando eu senti que se calhar não valia tanto. Essas opiniões fizeram-me duvidar do meu valor, fizeram-me sentir… não sei explicar bem, mas fizeram-me duvidar do meu valor como artista, nem é como rapper. 

Certamente que já estavas na posse da informação que todos conhecemos há uns tempos, da extinção da Think Music. Como é que reagiste?

É assim, acho que era uma coisa que ia acabar por acontecer. Nós já estávamos a sentir que depois desta situação do COVID-19, não haver concertos, não haver dinheiro a ser gerado, acho que estávamos todos a concordar que a melhor coisa a fazer era meter um ponto final e sair por cima do que deixar desaparecer a marca em si. Eu reagi… sei lá, não estava mesmo à espera, mas por outro lado também já previa o que ia acontecer. E também sinto que é uma oportunidade para mim para poder construir a minha marca e o meu caminho sozinho e fazer o que tenho a fazer.

“Debaixo destas grillz só há dentes brancos/ Eu não fiz sorrisos amarelos mas já vi tantos”. Encarei estas linhas como reacção àquilo que o Regula diz na “Júlio César” — “Grillz na boca para tapar os dentes estragados”. Mas imagino que seja mais uma reacção àqueles que disseram que ele estava a falar para ti mais do que uma reacção ao próprio Gula.

No final do dia, eu não sei se ele estava a falar para mim ou se estava a falar para outra pessoa. E é o que eu digo: eu cresci a ouvir Regula, eu cresci a ouvir Tira-Teimas, eu cresci a ouvir Kara Davis. A minha alcunha na minha zona era Kara Davis porque toda a gente sabia: eu só ouvia mixtapes do Regula. É assim, se falares de gatekeepers, é a pessoa com quem eu mais me identifico a nível de lírica, a nível de vibe. Das pessoas mais velhas, é o Regula com quem mais me identifico. Mas isso aí é uma resposta às pessoas que falam das grillz. É que não é só o Regula que fala das grillz, as grillz sempre foram um problema desde que eu comecei a usar. Foi sempre um tema de conversa. É uma resposta em geral. 



Também perguntas “o que é hip hop tuga, mesmo?”, por isso eu redirecciono, adaptando, a pergunta para ti: para ti o que é que é isto do hip hop tuga e qual é que achas que é o teu lugar nesse cenário? Acabas por ser um pioneiro de um certo estilo.

Sim. Eu sinto-me como um pioneiro do trap ou do novo rap, o que lhe queiram chamar. Mas o que é que é o hip hop tuga…? É o que eu digo: “Eu sou hip hop tuga mesmo”. Eu acho que o hip hop tuga é o que nós quisermos que seja. Se uma pessoa em Portugal está a cantar [rap], é hip hop tuga. Se ele se sente hip hop tuga, quem sou eu para lhe dizer que ele não é hip hop tuga, percebes?

No teu ainda curto percurso já fizeste uma série de coisas extra-música: já desfilaste para a Alexandra Moura ou entraste num anúncio da WTF, por exemplo. Qual é a próxima coisa extra-musical que tu adorarias fazer? Já houve convites para filmes ou algo assim?

Eu fiz uma curta-metragem, não sei se posso falar nisto ou não. Eu gostava de explorar essa área também. Sempre deu para perceber que eu gosto da minha imagem e gosto de tratá-la, acho que podia explorar um bocadinho essa parte de desfilar e até se me convidarem para fazer um filme ou uma novela eu estou pronto para isso. Eu quero experimentar coisas novas. Manter a música como o meu foco principal, mas se existirem outras oportunidades eu estou pronto. Quero poder voar e explorar a minha parte artística, não só a música. Sei lá, eu tenho tido contacto com algumas pessoas que estão ligadas a novelas e elas falam-me e contam-me as cenas, e eu fico, “pá, se calhar não me importava de ir ali a uma novela fazer do gajo mau” [risos]. Fazer esses papéis. 

O que é que me podes dizer sobre essa curta-metragem? Obviamente ainda não estreou, mas é uma coisa para televisão ou para a Internet?

Acho que é para a Internet e acho que é para levar a uns festivais de curtas-metragens aí na Europa. Entro eu e mais um ou dois rappers, não tenho a certeza. Isto sai em 2022, foi o que tinham falado.

“Criado a ouvi-los, tinha nos phones tipos/ Que envelheceram mal, não são como vinhos”. E falando daqueles que envelheceram bem: certamente que há uma série de referências, e já falaste no Regula aqui, que continuas a manter próximo do coração. De que outras é que podes falar quando falas de hip hop tuga?

Também ouvia muito Valete. Já vi Valete ao vivo duas ou três vezes quando era mais novo. Era uma pessoa que eu ouvia regularmente. Era Valete, Regula e Dealema. Se meteres aí “Sala 101” a dar, eu canto aqui a letra toda. Como um gajo é do Norte está mais ligado aos Dealema. Ouvia também Barrako27, por incrível que pareça. Mas os meus favoritos eram Valete e Regula, eram aquelas pessoas que eu ouvia religiosamente. 

Muito bem. Este som é um som solto para fincares o pé ainda em 2020 ou já antecipa algo maior que há-de vir aí para 2021?

É assim, eu sinto que este som faz parte de 2020. Nós tivemos uma discussão sobre se o som saía em 2020 ou 2021 e eu disse mesmo, “este som faz parte de 2020, este som tem de sair em 2020”. Este som é um statement, é uma afirmação que eu estou a fazer. Estou a abrir o meu peito para as pessoas, não por completo, mas um bocadinho, e de uma maneira diferente. Mas também é para marcar um novo início do que vem em 2021. Não estou a dizer que em 2021 vou só fazer boom bap, mas é para marcar um ponto de mudança, onde eu cresci, onde a minha música cresceu também. Eu acho que, para mim, é uma afirmação que eu tenho de fazer e depois disto eu vou-me sentir mais leve comigo mesmo e vou conseguir ter um approach diferente com a vida, que é também o que eu estou à procura. 

Já tens na tua cabeça desenhados ou planeados os passos que queres dar em 2021?

Na minha cabeça já tenho pelo menos mais dois sons prontos para sair em 2021 e o que eu quero fazer é não parar, estar sempre a trabalhar, gravar som, gravar videoclipe. Posso não lançar mas ficam as coisas já guardadas para quando for preciso lançar no momento certo.

Estamos mesmo a acabar este ano estranhíssimo. Como é que foi este ano para ti? Olhando para trás, que balanço é que fazes deste 2020 esquisito?

Eu lancei a minha mixtape no final do ano passado e pensava que ia tocá-la, estava a sentir-me mais confiante em palco e a conseguir atingir os meus objectivos. E depois isto acontece e parece que o ano não aconteceu. Para mim, este ano não aconteceu. Foi uma luta pessoal que eu fui tendo este ano. Pontos altos, pontos baixos, mas foi uma luta pessoal dentro de mim. Nem consigo expressar bem o que se passou. 

Para terminar, imagino que já te tenhas visto no papel de uma figura que está a inspirar gente mais nova do que tu, miúdos que estão a começar, a querer dar os primeiros passos e que te têm a ti como um modelo. É frequente essas pessoas virem falar contigo e pedirem-te conselhos? O que é que tu tens a dizer a alguém que pensa, “ok, 2021 vai ser o meu ano, vai ser aí que eu me vou lançar”?

O meu conselho é: antes de tudo, acreditem neles. Olho para trás e, quando comecei, eu acreditava em mim e acreditava 100% que era aquilo que eu queria fazer. Por isso, o mais importante é acreditarem neles. Segundo, terem minimamente noção do que é que querem fazer, do estilo de música que querem fazer, e depois é tentar da melhor maneira possível, apesar de estarem a começar… quando comecei, eu tentei executar as coisas da melhor maneira que eu conseguia. Eu acho que é importante só isso, pode não ser a melhor maneira do mundo, mas é o melhor que eles conseguirem. Se for uma coisa diferente daquilo a que as pessoas estão habituadas a ouvir, vão leva muitas críticas, muito backlash, vão ouvir coisas que não querem ouvir, mas o importante é manterem-se focados e continuarem. E se o primeiro som não correr bem, passem para o segundo e continuem a insistir porque foi o que eu fiz e deu certo. Quando eu lancei o meu primeiro som, eu tive mais dislikes do que likes e recebi montes de críticas. Na altura eu queria entrar para dentro do computador, mas eu agora olho para trás e penso que compensou passar isso. A mensagem que eu tenho a dizer aos jovens e às pessoas que quiserem começar a fazer música é: acreditem na vossa música, as críticas só aparecem quando vocês estão a fazer alguma coisa de inovadora e continuem, não se deixem abalar pelo que as pessoas dizem porque mais tarde ou mais cedo elas vão-vos perceber. Ou vão-se identificar com alguma coisa que vocês estão a fazer. 


* Artigo escrito em colaboração com Alexandre Ribeiro.

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