Com a ilha de San Simón — na Ria de Vigo, na Galiza, em Espanha — percorrida de lés-a-lés por diversas vezes, com muitas caras já familiares entre as 800 pessoas que se foram repetindo ao longo de muitos concertos, chegámos ao terceiro e último dia do festival Sinsal com a sensação de estarmos em casa — e já a antever a nostalgia das memórias que perdurarão connosco após regressarmos a terra.
Talvez este terceiro dia — um domingo, antes de mais uma semana de trabalho — tenha tido a programação menos estimulante, mas ainda assim fomos presenteados com uma série de performances marcantes e diversas, prolongando a descoberta de música exploratória e original de todo o mundo.
O dia começou cedo, pela hora de almoço, com a actuação de Rocío Guzman. Na última década, Espanha afirmou-se como um dos países com um output musical mais interessante. Existem diversos factores que podem ajudar a explicar o fenómeno: a ascensão do castelhano como língua global da cultura pop, muito graças à América Latina e à explosão do reggaeton; e o próprio historial de Espanha enquanto país que consome significativamente a sua própria música e cultura, que valoriza tremendamente a sua língua e tradições, são dois dos principais argumentos.
Depois do fenómeno mundial Rosalía, que teve contributos indispensáveis de C. Tangana, têm sido vários os artistas espanhóis — tal como em Portugal e noutros países — a apostar no cruzamento das suas tradições musicais locais com elementos modernos e mais globais. Há quem o faça certamente em busca do estrelato, mas também quem veja nestes híbridos o seu propósito artístico e até humano.
Rocío Guzman encaixará certamente nesta última categoria. A artista multidisciplinar da Andaluzia iniciou o seu percurso musical há meia dúzia de anos e, embora ainda esteja numa fase bastante precoce da sua carreira, mostra sinais de que poderá ser um valor seguro neste movimento disperso.
Ao contrário de muitos dos seus pares, porém, as suas canções não são explosivas nem são apresentadas num formato performático pop. É antes uma música delicada e frágil, baladas de lamentos e inquietações que exigem tempo, foco e espaço. No Sinsal, numa hora de enorme calor e ainda a recuperar da bomba do dia anterior, o público estava morno ainda que curioso com esta artista que pertence definitivamente a uma outra Espanha — mais quente, com uma influência árabe e cigana que está entranhada no flamenco.
Com uma voz marcante e uma presença dócil embora vulnerável, Rocío Guzman interpretou temas do seu mais recente disco, o EP ETC CANTE VOL.1 (2024), construído a meias com produtores como Bromo ou a banda Califato 3/4, que contribuíram para conferir uma roupagem electrónica a melodias e ritmos tradicionais. Talvez a performance pedisse outra vivacidade (e quiçá um palco com lugares sentados), mas a beleza é notória nas canções subtis de Guzman, alguém que certamente iremos manter no radar daqui em diante.
Como sempre acontece no Sinsal, iríamos mergulhar de seguida num universo musical de outro espectro, desta vez numa viagem à Escandinávia com os suecos BITOI — grupo do baixista Cassius Lambert, com ascendência etíope, e das cantoras Alexandra Shabo, Lise Kroner e Anja Tietze Lahrmann.
O baixo eléctrico de Cassius Lambert funciona como base, dando vida a melodias e ritmos que servem como alicerces para as vozes das vocalistas. Apesar de o baixo ser por um lado o rei — BITOI significa, literalmente, “Bass Is The Original Instrument” —, este é um espectáculo sobretudo vocal, mas com preponderância para o som e menos para as palavras — as três artistas emulam o chilrear dos pássaros, usam pequenos instrumentos para gerar sons da natureza, despertam sensações com a maneira sensorial como utilizam as cordas vocais para nos transportar entre diferentes estados de espírito.
A performance experimental atinge níveis intensos, e as vozes mais as vestes simples em tons claros levam-nos imediatamente para o imaginário cinematográfico de Midsommar — o filme de Ari Aster, que se passa numa comunidade remota na Suécia, centrado nos rituais pagãos em torno do solstício de Verão, que são tão visuais quanto sonoros. Contudo, com os BITOI nunca nos sentimos ameaçados nem arrepiados; pelo contrário, fomos bem recebidos pela postura simpática com que demonstraram em palco, mesmo que também houvesse estranheza — e é precisamente nessa vertigem que se dão os processos de descoberta.
Noutra ponta da ilha de San Simón, iríamos assistir depois à performance intensa dos Arsenal Mikebe, trio de percussionistas do Uganda. Vestidos de fato e a formar um triângulo em torno de um sistema de percussão caseiro — desenhado pelo escultor Henry Segamwenge e inspirado pelo funcionamento interno da Roland TR-808 — é como se os três músicos operassem como um só, uma orquestra percussiva transformada num único ser.
O concerto exige uma coordenação impressionante e é, claramente, muito desafiante do ponto-de-vista físico — os Arsenal Mikebe fazem uma ode aos polirritmos africanos ao combinarem uma série de cadências em simultâneo, entre instrumentos mais orgânicos e outros mais digitais, sendo que as suas vozes arrastadas e em reverberação são os únicos elementos melódicos que vão pontuando a actuação.
Falamos de uma música agitada e transgressora que, por um lado, nos impede fisicamente de estarmos quietos; por outro, com os seus múltiplos polirritmos, se torna um desafio à dança e ao balançar dos corpos. Trata-se de um concerto exigente, não suscetível aos ouvidos mais padronizados. O grupo ugandês tem um único disco, DRUM MACHINE (2024), que aqui apresentou no Sinsal.
O festival galego tem como regra não repetir nomes de umas edições para as outras, mas historicamente o terceiro e último dia de evento — o domingo — repetia artistas dos dias anteriores, que haviam ficado na ilha. O Sinsal abandonou entretanto essa tradição, apostando numa programação completa e sempre diferente ao longo dos três dias, mas abriu uma excepção para os Dog Race — que actuaram duas vezes nesta edição.
Num festival dedicado a música de todo o mundo mas com uma abordagem mais contemporânea do que puramente tradicional, talvez a melhor maneira de representar o Reino Unido seja com uma jovem banda que se apresenta como herdeira de um legado imenso do rock britânico e dos seus muitos derivados.
Com um único disco no currículo — o EP Return The Day, editado em Junho — os Dog Race carregam influências punk mas também são autores de uma música com nuances góticas. Trata-se de uma música urgente, algo abrasiva, mas também poética e abstracta, que reflecte tensões e provoca calafrios. À frente da banda, a peculiar vocalista Katie Healy é uma figura sofrida e misteriosa, com uma voz que remete para uma melancolia desassossegada. Não sendo algo totalmente novo, os Dog Race afirmam-se como um grupo a ter em conta na nova geração do rock britânico.
Da Grã-Bretanha para o Fin del Mundo. Assim se chama esta banda argentina de quatro jovens mulheres, com raízes na Terra do Fogo — daí o nome do grupo — e criadoras de um pop rock cantado em castelhano que naturalmente ressoa em Espanha. Ainda numa fase inicial, mas já com um EP e dois álbuns no currículo, trouxeram sobretudo na bagagem o álbum Hicimos Crecer un Bosque (2024), que coincidiu bem com um palco envolto em árvores altas e entre a vegetação de uma ilha.
Com uma cumplicidade evidente e a diversão em palco típica de uma jovem banda, as quatro artistas têm canções poéticas e contidas sobre temáticas universais, com um pulsar pop rock que torna as faixas apelativas e de fácil acesso, ainda que por vezes possam soar genéricas. A estreia na Galiza motivou rodas de dança e muitos ouvidos atentos entre a multidão, que tornou San Simón num outro Fin del Mundo, fazendo com que as argentinas se sentissem no seu habitat natural.
Ainda com duas performances pela frente antes de nos despedirmos desta “isla bonita” que poderia ter sido aquela cantada por Madonna, era a vez da austríaca Uche Yara, de origens nigerianas, se estrear em Espanha. Com um percurso impressionante para a tenra idade, com muitas datas em festivais pela Europa fora e tendo já aberto um concerto para os The Rolling Stones, esta artista sediada em Berlim transporta muito do espírito da capital germânica para o seu projecto artístico.
Carismática, Uche Yara é uma figura alta e vistosa com o perfil de uma actriz ou modelo. A sua música é definitivamente pós-géneros, misturando pop, rock e a música urbana contemporânea como uma salada de frutas — talvez demasiado misturada, já que, entre tantos sabores e aromas, torna-se difícil encontrar uma identidade e um som próprio. Acompanhada por uma banda competente, ainda assim Uche Yara é uma performer nata, tocando guitarra e cantando com a teatralidade típica de uma estrela, com canções de calibre pop que certamente a poderão fazer chegar longe na geração TikTok.
Por fim, encerrávamos o Sinsal de 2025 com um concerto particularmente tradicional, mas com a inovação e ousadia de inverter os papéis de género. Dos desertos de Marrocos, das comunidades gnawa — descendentes de escravos trazidos da África subsaariana — Asmâa Hamzaoui lidera as Bnat Timbouktou, com quem forma um quinteto de sons tradicionais e celebratórios oriundos directamente das dunas do Norte de África.
O coro de vozes é o grande elemento deste colectivo de cinco mulheres vestidas com trajes tradicionais — e o elemento disruptivo é o facto de a frontwoman Asmâa Hamzaoui tocar o guembri, um instrumento de cordas historicamente apenas tocado por homens durante as cerimónias típicas. Um símbolo de emancipação feminina que, ao mesmo tempo, celebra os rituais ancestrais e as vivências dos povos do deserto. Foi a descoberta definitiva para, de seguida, embarcarmos rumo a terra firme, três dias depois.
Até sempre, San Simón e Sinsal — foi um prazer e um privilégio descobrir a pequena ilha que é grande o suficiente para comportar toda a música do mundo.