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Fotografia: Cris Padín
Publicado a: 27/07/2025

O segundo dia de missão na ilha da descoberta.

Sinsal’25 — dia 2: uma bomba chamada Throes + The Shine e os cantares tremolos de Sahra Halgan

Fotografia: Cris Padín
Publicado a: 27/07/2025

Não há palavra que melhor descreva o festival Sinsal, que todos os anos ocupa a pequena e inabitada ilha de San Simón — na Ria de Vigo, na Galiza, em Espanha —, do que “descoberta”. É precisamente isso que propõe o pequeno evento, que acolhe cerca de 800 pessoas por dia, que compram um bilhete às escuras, só conhecendo os músicos que vão actuar quando chegam à ilha. Além disso, o festival nunca repete artistas, sendo certo que todos os anos haverá dezenas de estreias e actuações irrepetíveis.

O conceito do festival é essencial para atrair a San Simón um público interessado, curioso e com uma pré-disposição rara para ouvir — e descobrir, lá está — música nova de todos os cantos do mundo. Das actuações mais vibrantes e aceleradas às performances contemplativas, o mesmo público corresponde como poucos àquilo que cada momento pede. 

A descoberta também se aplica a esta ilha, que só é possível visitar quando se realizam eventos ou visitas guiadas oficiais — são vários os festivaleiros que aproveitam momentos do dia para simplesmente desfrutar da paisagem natural, da estadia temporária numa ilha com uma aura pacífica e de plenitude, ainda que carregue um historial pesado, como descrevemos na reportagem do primeiro dia de festival.

A memória dos lugares é fulcral e deve ser preservada. Porém, o Sinsal também representa um acto de beleza ao utilizar um lugar que foi lazareto — local de cura e de controlo, de esperança e de medo — e também campo de concentração político, com tudo o que isso implica, ao reivindicar a luz deste sítio, não ignorando mas mitigando as trevas. São múltiplas as memórias associadas a esta ilha — incluindo imaginadas, com toda a mitologia de Júlio Verne e do Capitão Nemo, de Vinte Mil Léguas Submarinas — pelo que o Sinsal desempenha um importante papel de a ressignificar, de a trazer para um lugar de celebração e comunhão, precisamente contra as opressões e obscuridades do passado.

O segundo dia de festival começou ao som de Dasom Baek, artista sul-coreana que utiliza instrumentos de sopro ancestrais — tradicionais do seu país — para criar paisagens sonoras contemporâneas, gravando em directo segmentos de diferentes instrumentos, como o sogeum e o daegum, para ir acrescentando camadas em loop. A evolução tecnológica revolucionou a música em todos os aspectos, mas é muito interessante reparar como revitalizou a música tradicional, aproximando os rituais ancestrais e folclóricos da modernidade, dando-lhe possibilidade de novas vidas, refrescando-a.

É precisamente isso que Dasom Baek faz com a sua música contemplativa, com as composições do seu álbum de estreia Mirror City (2023), que nos abraçam com conforto ao mesmo tempo que nos levam por territórios desconhecidos, tendo como pano de fundo a incrível paisagem da Ria de Vigo, que só acrescenta a um estado de espírito meditativo, erguido pelas frequências sul-coreanas dos sopros da instrumentista. Uma maneira sublime de iniciar um dia de festival que se viria a revelar intenso.



Rapidamente embarcaríamos noutra viagem, desta vez através da música dos britânicos Good Sad Happy Bad, que anteriormente davam pelo nome de Micachu and the Shapes. Não é fácil — nem é suposto ser — definir o som deste quarteto formado num mundo pós-géneros musicais. 

O espírito da improvisação e da experimentação está embrenhado nas composições melancólicas e misteriosas — que também combinam com a mística de San Simón, mesmo num radiante dia de sol — e que navegam pelas águas da pop, do rock e do jazz com uma abordagem exploratória, indie, alternativa, muitas vezes poética, com uma notória densidade e carga emocional. Consigo trouxeram na bagagem o mais recente disco, All kinds of days, editado em 2024.

Depois da Ásia e da Europa, iríamos rumar a África para o concerto de Sahra Halgan, cantora da Somalilândia — estado independente, embora não reconhecido internacionalmente, que desde a década de 90 se separou da Somália, na costa Este do continente africano.

Foi ao viver muitos anos em França, enquanto refugiada política, que Sahra Halgan encontrou as ferramentas para erguer uma carreira internacional no circuito das músicas do mundo, acompanhada por três instrumentistas franceses — um guitarrista, um baterista e um teclista. São eles que tocam uma música de tons quentes, próxima do rock mas também com influências da tradição da África Oriental, que serve de base para os cantares da artista de 53 anos.

A forma como usa a sua voz é bastante diferente para os padrões dos nossos ouvidos. Com uma voz aguda mas certeira, Sahra Halgan faz uso do tremolo, a técnica de variação do volume das notas, o que dá um efeito de tremor às melodias que entoa. A sua música está enraizada na reivindicação do seu património cultural, na apresentação da sua tradição pelo mundo, na afirmação identitária e activista da sua nação não reconhecida — daí que Halgan envolva o seu microfone na bandeira do seu país, que nunca larga da mão. Foi a performance que deu o mote para uma tarde (e noite) dançável que só iria acelerar o ritmo a partir daqui.



Os processos de descoberta prosseguiam com a actuação de Guedra Guedra, produtor marroquino em modo DJ set, que cruza os polirritmos africanos — sonoridades do Norte de África, mas também de outras coordenadas do continente — com batidas electrónicas. Bem mais contemporâneo do que tradicional, Guedra Guedra transformou o Sinsal numa pista de clube underground ao pôr-do-sol, com a sua bass music e instrumentais de diferentes balanços e tempos a utilizarem melodias quentes de África como trunfos valiosos. O artista apresenta-se com uma máscara em palco, evocando as suas tradições e essa “música futura do passado”, como a descreve, tocando os diferentes singles e remixes que tem vindo a lançar desde o longa-duração Vexillology (2021).

Por fim, iríamos reencontrar-nos com uns velhos conhecidos, os Throes + The Shine — que seriam protagonistas, arriscamos desde já, do concerto mais agitado da edição de 2025 do Sinsal. Muito dificilmente alguém conseguirá ultrapassar a energia do MC e kudurista angolano Mob Dedaldino e dos produtores e instrumentistas portugueses Marco Castro e Igor Domingues

Poderíamos dizer que não jogavam em casa, uma vez que se trata de um festival espanhol e que esta performance até marcou a sua estreia na região da Galiza. Porém, este tipo de eventos têm sido mesmo a casa dos Throes + The Shine — um projecto com uma forte presença internacional, com uma música que agarra na sujidade e crueza do kuduro mas que a leva por soluções sonoras mais apelativas e acessíveis, e que incorpora vários outros elementos da música global electrónica, com espaço para texturas (e letras) mais latinas que naturalmente ressoam em Espanha. E o palco, provavelmente até mais do que o estúdio, é o seu habitat natural — esta é uma banda de performance, que de facto se concretiza ao vivo.

A tal pré-disposição para a descoberta, característica do Sinsal como referimos antes, torna-se no melhor ingrediente para uma performance destas. Mas no palco deparámo-nos com um autêntico monstro chamado Mob Dedaldino. O angolano é o artista perfeito para operar como MC dos Throes + The Shine — com uma rapidez, uma agilidade (tanto física quanto mental), uma vivacidade e um carisma verdadeiramente impressionantes. 

Constantemente a puxar pelo público num castelhano fluente, que se viu encantado com a figura magra e frenética de Mob Dedaldino, o MC angolano levou o Sinsal à beira da explosão, com centenas de pessoas a saltar, a fazer mosh, a subir para cima do palco ou a ampararem-no num momento glorioso de crowd surf

O concerto dos Throes + The Shine é energia pura — uma “festa selvagem”, como o próprio Mob descreveu numa declaração de interesses, mostrando ao que vinha — e o Sinsal estava nas melhores condições possíveis para acolher esse furacão, o que só impulsionou a intensidade da actuação. Músicos e público estavam visivelmente encantados, de forma mútua, com a energia gerada entre ambos. Quando assim é, só podemos regozijar e guardar o momento com carinho. Mais uma vez, como sempre em San Simón, a importância da memória — e da descoberta.


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