Da pequena ilha de San Simón para o mundo. O Rimas e Batidas encontra-se numa missão internacional, algumas dezenas de quilómetros a Norte da fronteira portuguesa, em plena Ria de Vigo, na região espanhola da Galiza. A ilha foi palco de batalhas navais, inspirou o escritor Júlio Verne para escrever o emblemático Vinte Mil Léguas Submarinas, foi usada como sanatório de leprosos e campo de concentração fascista. Nos dias de hoje, e já há mais de duas décadas, é também a casa e o recinto do festival Sinsal, cuja 23.ª edição arrancou esta sexta-feira, 25 de Julho — pela primeira vez, o Rimas e Batidas está em reportagem no certame galego.
O Sinsal afigura-se desde logo como um festival de música muito especial. Não só por acontecer numa pequena ilha inabitada, que só é possível visitar ao longo do ano quando lá se realizam eventos ou visitas guiadas oficiais, mas também porque o cartaz é sempre secreto. Todos os anos, 800 pessoas compram bilhetes completamente às escuras, confiando no bom gosto da organização tendo em conta a programação das edições anteriores, para embarcarem rumo à ilha de San Simón, onde ficam entre a hora de almoço e as últimas horas do dia, momento de retornarem a terra.
Com vários palcos espalhados pela ilha — que, na verdade, são duas, já que existe uma ilha ainda mais pequena, San Antón, ligada a San Simón por uma ponte — o ambiente é de uma tremenda liberdade e familiaridade. Afinal, a ilha é o recinto — e os festivaleiros podem (e devem) tanto escutar os concertos, vibrar e dançar ao som de músicas de todo o mundo, como explorar este património histórico e natural de uma beleza e tranquilidade ímpares. O cenário é idílico, com pequenos palcos enquadrados na paisagem, entre o verde da vegetação e o azul da ria.
Muitos dos músicos ficam hospedados na ilha durante o evento, pelo que é um daqueles festivais em que, depois de tocarem no palco, é comum vê-los a passear pelo recinto, em busca de comes e bebes ou, também eles, de descobrirem as maravilhas de San Simón. Essa singularidade do festival também é visível na reacção dos artistas, mais do que habituados a uma vida de estrada, mas que entendem o Sinsal como uma experiência diferente.
Musicalmente, falamos de um festival diverso que aposta em músicos de todo o mundo — embora não seja propriamente um festival de música tradicional, já que o foco está sobretudo na criação contemporânea, ainda que muitos dos músicos programados incorporem elementos característicos dos folclores dos seus territórios. A par disso, existe uma série de iniciativas e programas mais ou menos paralelos que se centram na memória, registo e celebração das tradições musicais galegas.
Assim que chegámos à ilha, depois de uma viagem de barco de 50 minutos a partir de Vigo, fomos recebidos pelas pandeireteiras de Escaravellas e Amigas, um grupo tradicional galego, região espanhola onde as pandeiretas têm um longo e ancestral historial. Porém, iríamos arrancar definitivamente a 23.ª edição do Sinsal com a dupla Cocanha, formada por Caroline Dufau e Lila Fraysse. Este é um grupo da Occitânia, um nome que pode soar estranho a muitos portugueses mas que corresponde a uma região que contempla a zona sul de França, uma parte de Espanha e até de Itália. A língua occitana é usada pelas Cocanha como reivindicação de um património cultural regional tantas vezes invisibilizado e canibalizado pelas línguas e culturas dominantes à sua volta, ainda mais num mundo hiper-globalizado.
A língua, profundamente poética, evidencia uma mistura entre o francês e o catalão — soa familiar e, ainda assim, diferente. As duas artistas tocam uma versão moderna do saltério, uma espécie de cítara rectangular que é tocada como um tambor de cordas, além de usarem os pés para percutir no género de um adufe eléctrico. Num concerto em que o ritmo tem uma importância tão vital, a percussão e as progressões melódicas são tão relevantes como o uso que as Cocanha fazem da voz — usam-na para passar mensagens relevantes, para fixar uma memória da cultura e do património occitano, para afirmar o feminismo e combater o medo, mas também a utilizam como um autêntico instrumento musical, como outro elemento rítmico que atinge o seu expoente máximo quando Carolina Dufau e Lila Fraysse intercalam e exploram de forma distinta, complementando-se, as suas expressões vocais.
As suas canções evocam um lado folclórico, ligado à terra e às raízes, com uma aura comunitária que é sugerida pelo uso colectivo da voz e pela maneira aparentemente simples como as duas protagonistas fazem música — parece um prolongamento das canções tradicionais do trabalho e do espaço público, neste caso de uma região concreta, como se qualquer pessoa comum pudesse ser (e pode!) protagonista de canções, rompendo com a ideia de que a música deve ser encarada somente como um acto profissional, uma mentalidade de razões compreensíveis mas que pode acabar por afastar muitos da sua prática, por diminuir a sua organicidade na vida quotidiana. Isso não retira qualquer profissionalismo às muito talentosas Cocanha, que apresentam uma performance vibrante e envolvente; pelo contrário, confere-lhes uma magia com a naturalidade e proximidade que emanam.
De seguida, embarcámos numa viagem para um mundo completamente antagónico, ao mergulharmos na (sur)realidade nipónica dos WaqWaqKingdom. Projecto do produtor e DJ Shigeru Ishihara, mais conhecido como Scotch Egg, e da cantora Kiki Hitomi, os japoneses tiveram de enfrentar os fortes raios de sol que se faziam sentir na Galiza para entregar uma performance intensa e irreverente.
Agindo como uma autêntica mestre de cerimónias, num concerto em que a sua voz é tão importante como a maneira performática como usa o corpo e os seus adereços fluorescentes, Kiki Hitomi vai debitando letras — imperceptíveis aos nossos ouvidos ibéricos — com a sua voz a ser manipulada e distorcida por efeitos digitais.
Por baixo, uma imensa cama tecida por Scotch Egg, feita de muitos lençóis e cobertas, numa fusão de natureza futurista que combina sons tradicionais do Japão com as bandas sonoras da Nintendo e os ritmos jamaicanos do dub ou do dancehall, que lhe conferem diferentes compassos, pesos e temperaturas. Exótico, por vezes bizarro, nalguns casos dançável e decididamente diferente.
Descendo para outro palco, continuámos pela Ásia mas com outras coordenadas de referência. Os Ali — banda de Jacarta, capital da Indonésia — são um grupo jovem mas que carrega uma estética vintage com sabor a clássico. Guitarra, baixo, bateria e percussões são os instrumentos que nos transportam numa viagem — sobretudo instrumental, mas com algumas letras pelo meio — de vários tons e aromas.
A música dos Ali, que lançaram este ano o EP Patterns, tanto é algo psicadélica como navega pelos sons do afrobeat. Percussões e linhas de baixo calorosas, que pedem o balançar dos corpos, e progressões de guitarra que constroem mundos e paisagens quentes à nossa frente. São canções cinematográficas que nos levam por selvas e desertos, por cidades em tons de barro, que tanto vai beber ao rock ocidental, aos polirritmos do afrobeat, como ao imaginário árabe que tem uma forte influência sobre a Indonésia. Serenos e compenetrados, quase misteriosos, os indonésios deixaram a ilha de San Simón a vibrar.
Mais uma vez — como rapidamente aprendemos que sempre acontece no Sinsal —, a proposta seguinte seria totalmente distinta. Era a vez de recebermos o cantor e compositor búlgaro Ivo Dimchev, um activista queer que desdobra o seu projecto artístico pela música, a performance, o teatro, a pintura, a fotografia ou o cinema. Um verdadeiro artista renascentista que se apresentou a solo, munido de um teclado e de backing tracks, para brindar o público com a presença da sua voz.
Ivo Dimchev é como que um crooner queer, uma figura carismática e divertida que oscila sobretudo entre dirty songs e canções melancólicas de romance ou (des)amor, mantendo uma elegância mesmo quando interpreta temas irreverentes que abordam com descomplexidade e humor a sexualidade, com instrumentais diversos mas que por vezes bebem dos sons tradicionais do leste europeu. Dimchev tem a aura de uma estrela que pede holofotes, utilizando essa exuberância de prima donna para estabelecer uma ligação com o público e apresentar-se como uma figura magnética e cativante.
Iríamos encerrar o primeiro dia do Sinsal de 2025 com um DJ set do tunisino AMMAR 808, que passa música tradicional do Norte de África, acelerando-a e misturando-a com componentes de produção electrónica e digital — mas, antes disso, assistimos a uma das performances mais impactantes do dia, do projecto sediado em Portugal mas conceptualmente cabo-verdiano que é Fidju Kitxora.
Lançou no ano passado o álbum de estreia Racodja, mas 2025 é que tem sido o ano de explosão deste projecto que tem percorrido o país — e vários outros territórios, como se pode ver — com a sua música enérgica e vibrante enraizada na tradição cabo-verdiana mas que a leva, sample a sample, composição a composição, por caminhos electrónicos de diferentes nuances e texturas.
Apresentando-se como um colectivo em que pouco importa a identidade individual, quebrando as fronteiras entre palco e público até como símbolo metafórico de uma nação crioula e tão transnacional como Cabo Verde — cuja população supera em larga escala o arquipélago africano e está espalhada pela Europa e pelos Estados Unidos da América, com as fronteiras territoriais particularmente desvanecidas face às tradições culturais e sociais que ultrapassam quaisquer limites políticos nestas comunidades em movimento —, Fidju Kitxora brindou-nos um concerto que surpreendeu o público galego e deixou a multidão a dançar efusivamente.
A notória química entre o guitarrista Henrique Silva e o baterista Juninho Ibituruna, a performance do corpo de Lukanu Mpasi, são tudo elementos que elevam uma actuação baseada em música electrónica que se torna num verdadeiro espectáculo — sobretudo quando, já numa recta final, o próprio público é convidado a fazer a festa em palco, algo que faz ainda mais sentido num festival de proximidade e familiaridade como o Sinsal.
Num mercado saturado em que a própria expressão “festival de música” se banalizou, numa altura em que os grandes festivais mainstream enfrentam dificuldades e parecem não conseguir conquistar o público como antes, ficamos de esperanças revigoradas ao estrearmo-nos na ilha de San Simón, com a certeza de que um futuro sustentável — em todos os sentidos — passa por ideias, práticas, valores e conceitos como este.