Pontos-de-Vista

Ricardo Farinha

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A chama mantém-se acesa.

Sinceramente: obrigado, Porto

Sempre gostei do Porto. Parte do meu ADN, das minhas origens familiares, vem da cidade Invicta. Admiro o espírito, a alma e a garra portuenses. E sempre achei que o rap do Porto tinha uma essência diferente. Nos últimos anos, isso ainda se acentuou mais. Se a maioria da Grande Lisboa foi engolida pelas sonoridades trap e pelas tendências actuais ditadas pela indústria americana — a melodia em detrimento da palavra, o materialismo, a superficialidade –, com as várias e devidas excepções (como é óbvio), no Grande Porto a evolução foi diferente.

Os grandes nomes no Porto continuam os mesmos, a estética mantém-se, o sentido de identidade é enorme. Não é que eu não goste de trap — porque gosto, e nalguns casos gosto mesmo muito, e nem sequer tem a ver com isso — ou de evolução no geral — pelo contrário, sempre fui um fã do vanguardismo artístico e da busca por novas expressões e sons –, mas é óptimo voltar às simples mas boas rimas e batidas. É como comida de conforto. Nem todas as músicas precisam de ter uma bridge, vários flows ou um grande videoclipe. Às vezes aquilo que sabe mesmo bem é uma faixa de rap, com um beat em loop e um MC a rimar por cima, embalado no groove.

Perdoem-me se levei este texto para um lado muito pessoal e para a questão dos gostos individuais, mas é esse conforto que encontro quando oiço Sinceramente Porto, compilação dirigida e produzida por Keso que foi editada oficialmente a 1 de Julho pela (pequena e ainda assim enorme) Paga-lhe o Quarto, apesar de já estar a ser lançada há vários meses, tema após tema.

Convenhamos, não é disruptiva nem particularmente inovadora. Mas também não precisa de o ser. Numa era em que tudo parece que tem de ser “a cena”, em que o objectivo é sempre “matar o game” e fazer mais com a máxima ambição possível, por vezes “a cena” é mesmo aquela que é feita simplesmente com amor e carinho, aquela cuja melhor qualidade reside na simplicidade, no minimalismo, na verdade, na essência pura de que é feita. E assim é Sinceramente Porto.

É um retrato do que é o momento do rap da Invicta — que, na verdade, não seria muito diferente se tivesse sido feita há cinco anos. Mas, como o próprio Keso admite, também acaba por ser uma “wakeup call” aos próprios artistas portuenses, para valorizarem a sua identidade, para contribuírem para a união, para não se deixarem apagar num panorama hip hop tuga que, por várias razões, se virou muito mais para Lisboa nos últimos anos. 

Do Porto para o mundo, esta compilação tem impregnada a estética que tem caracterizado o rap portuense durante tantos anos — é cinzenta, poética, densa, introspectiva, por vezes até melancólica. Ao mesmo tempo é cheia de garra e alma, com uma enorme identidade, com sotaque, carisma e calão próprio — a cultura do rap no Porto é um verdadeiro movimento, um grupo alargado de artistas que se identificam com uma certa linha estética, e isso sente-se num disco como este, que junta veteranos e novatos que os ouviam enquanto cresciam.

Depois de Ace, muitas vezes referido como o “padrinho” que abriu portas para muitos; e de Mundo Segundo, um enorme impulsionador da cultura hip hop no Porto (e não só) com o seu Segundo Piso; Keso agarrou com força a bandeira da Invicta para fazer acontecer. É de uma enorme generosidade do original marginal. É claramente um artista e pessoa maior, alguém com um sentido comunitário apurado, que tem visão e, acima de tudo, muita vontade e talento. Se há outros nomes que adoraríamos ter visto nesta compilação, tenho a certeza de que não foi por falta de tentativa. E é sempre um bom pretexto para um segundo volume daqui a uns anos.

O hip hop tuga vem de uma tradição de mixtapes e compilações – muitas das quais tiveram origem no Porto – e este é mais um marco nessa longa história, da qual fazem parte compilações notáveis como Roka Forte ou Lado Obscuro, entre outras. 

A maior diferença é que agora existem melhores condições para gravar temas, o lançamento pode ser digital e consegue chegar a mais gente, as cópias vendem-se numa loja online e não de mão em mão, e é possível aproveitar este admirável mundo novo de redes sociais para apresentar um trabalho como este e fazê-lo chegar mais longe. A essência? Essa está sempre lá, é incondicional. Viva o Porto e os seus.


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