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Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/08/2025

Poesia sonora em curto-circuito.

Simão Costa, o alquimista que torna audível o invisível

Texto: Vítor Rua
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 21/08/2025

[O Som Que Pensa]

Simão Costa não compõe: escava. O seu labor é o de um arqueólogo das frequências, um escultor do invisível, um poeta do som que se escreve em tempo real sobre o corpo e a escuta. Nascido em 1979, com formação clássica brilhante entre o Conservatório Nacional e a Codarts de Roterdão, Costa não se deixou encerrar na moldura do piano ou da pauta. Abandona o pedestal do instrumento e transforma-o em organismo sensível, pronto a ser dissecado, distorcido, multiplicado.

[Circuitos, Curvas, Curto-Circuitos]

Desde as primeiras incursões, como IAVI\METRO4#1 (2007) ou TT_ano (2006), percebemos que a electrónica em tempo real não é um mero adorno técnico, mas um elemento ontológico da sua linguagem. Costa dobra o som sobre si próprio. Não se limita a fazer música: faz sistemas, corpos com pulmões de código e ossos de feedback. As suas obras são territórios em que a música é também ideia e a ideia não pode ser pensada fora do corpo e da matéria sonora.

[π e os Ecos do Início]

A série π_ano não é apenas um projecto: é uma confissão matemática. Ali, Costa encontra um número irracional para falar de uma racionalidade poética. Entre o gesto pianístico e a resposta maquínica, emerge uma terceira entidade: a do som em metamorfose constante, como em π_ANO PRE·CAU·TION PER·CU·SSION ON SHORT CIRCUIT (2014), obra que encena a queda de um sistema sobre si mesmo, uma autópsia sonora do próprio dispositivo de composição.

[Dançar a Escuta: O Corpo no Centro da Frequência]

O corpo surge em SubLinhar (2018), SYN.Tropia (2017) ou Projeto continuado (2015) como espelho da sonoridade. O gesto dançado não ilustra a música, mas nasce da sua respiração interna. Nestes solos para corpo e som, Costa permite que o tempo escópico da escuta se torne visível, que a coreografia se inscreva na escultura sonora. A electrónica, longe de ser desumanizadora, encarna uma nova ecologia da percepção.

[Do Teatro dos Sons à Polifonia dos Dados]

Em obras como Esta é a minha Cidade e eu Quero Viver Nela #1 (2009) ou Quando Eu Nasci (2009), Simão Costa funda um teatro do som em que a voz se dobra sobre o ruído, o texto sobre o algoritmo. O que emerge é uma dramaturgia sonora expandida. Em Beat With Out Byte – (un)learning Machine (2021), questiona a inteligência maquínica não como distópico futuro, mas como presente que ainda não sabemos traduzir.

[O Ouvido é o Órgão da Compaixão]

Simão Costa oferece-nos uma escuta que é também uma postura política: abrir-se ao que não se compreende à primeira audição. Cada obra é uma proposta de convivência entre o que é humano e máquina, gesto e erro, silêncio e ruído. A sua obra não propõe soluções, mas instala perguntas: Que som faz uma cidade a fugir de si mesma? Que gesto resta quando tudo é algoritmo? Que piano pode ainda resistir ao colapso do tempo?

[Esculpir o Ar, Habitar o Som]

Simão Costa não compõe para ser ouvido. Constrói espaços para habitar a escuta. Os seus projectos são tectónicas invisíveis, placas sonoras que se movimentam sob os pés da percepção. Como um sismógrafo estético, Costa não busca apenas som, mas as suas implicações: sociais, afectivas, ecológicas. A sua música é o som de um mundo que ainda não aprendemos a escutar.



[Beat With Out Byte: A Máquina que Desaprende o Corpo]
Ensaio poético-musicológico sobre a resistência do gesto acústico em tempos de algoritmos

[A insurgência do som analógico]

Em tempos em que tudo se dobra ao algoritmo, Simão Costa ergue-se como um escultor de matéria sonora bruta, recusando o conforto da digitalização para relembrar o que é tocar sem mediações. Beat With Out Byte é uma obra que não só se posiciona contra a automatização musical como também a disseca — uma espécie de ecografia invertida da máquina. Cada faixa (ou melhor, cada acto) é uma tomada única, sem cortes, sem montagem, sem anestesia. O piano torna-se organismo acústico em conflito com a ideia de software.

[Cordas, ímanes, memória]

Ao recusar bytes e abraçar o beat como vibração pré-digital, Costa convoca ímanes e cordas como agentes expressivos. O som não é programado, mas induzido. E essa indução — tanto eléctrica como poética — oferece uma nova gramática do gesto. O piano, tornado dispositivo sem código, não executa: ouve, ressoa, resiste. Aqui, cada ataque é também uma escuta, cada reverberação uma hipótese de erro fértil.

[O corpo na era do machine learning]

Não há aqui inteligência artificial: há inteligência sensível. O projecto dialoga com o universo do machine learning, mas em modo invertido: o que está em jogo não é ensinar a máquina a parecer humana, mas reaprender o humano a escutar como máquina falível, nervosa, viva. Simão Costa entrega-nos assim um corpo-performer que desaprende os automatismos e se abre ao erro como horizonte de sentido. Cada take é um risco — uma escrita no ar que se nega à repetição.

[A política do som nu]

Produzido com rigor artesanal e cúmplice colaboração (José Grossinho, Marta Cerqueira, entre outros), este disco é também um manifesto de produção ética: sem pós-edição, sem overdubs, sem afectação digital. É um corpo sonoro íntegro. A política estética aqui é radical: tornar o som vulnerável, e por isso mesmo, verdadeiro. O gesto é final. O som é aquilo que sobra quando não há filtro.

[Silêncios que resistem ao processamento]

Beat With Out Byte é mais do que música: é uma cartografia da escuta no seu estado mais cru. Não há aqui sedução melódica, nem harmonias reconfortantes. Há fricção. Há magnetismo. Há silêncio entre cada impulso. Há um artista que se despe da técnica para expor o impulso antes da forma. Neste desnudamento, o ouvinte é convocado a escutar como quem assiste ao nascimento do som. Sem tutorial. Sem preset. Só a vibração que ainda não foi nomeada.

[Conclusão: o som como território de resistência]

Simão Costa escreve — com ímanes e dedos — um tratado sobre a urgência do toque. Um disco que, ao recusar o byte, devolve ao beat a sua dimensão existencial. Porque resistir à programação é, hoje, talvez o gesto mais profundamente musical que se pode ter.

[Epílogo: onde o som recusa o esquema]

No fim — ou talvez no centro — de Beat With Out Byte, resta-nos o que escapa: o som que não pode ser repetido, o erro que se transforma em estética, o gesto que não cabe num algoritmo. Simão Costa não compõe para agradar, nem sequer para ordenar. Compõe para escutar o que resiste: a tensão entre o ferro e o dedo, entre a memória acústica e o delírio sintético do século XXI.

Este disco não pede interpretação: impõe escuta. Uma escuta demorada, desautomatizada, que não quer converter-se em playlist, mas em presença. A máquina, aqui, não é serva — é adversária. E a música nasce do embate.

Nesse embate, o que ouvimos não é o futuro da música, nem o seu passado. É o seu agora — frágil, ruidoso, vital. É a vibração última de uma arte que, mesmo rodeada de silício e instruções, escolhe ainda a matéria viva para dizer: estamos aqui. E ainda há som.


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