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Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 19/03/2024

Em viagens simultâneas de oscilações e vibrações.

Shiva Feshareki no Theatro Circo: ondas atractivas, centrípetas, em expansão

Fotografia: Adriano Ferreira Borges
Publicado a: 19/03/2024

Shiva Feshareki no Ciclo Contraponto, em estreia absoluta em Portugal para apresentar uma peça tão reveladora da sua música — Transfigure. Feshareki é compositora desconhecida de muitos, mas já por outros premiada pela música actual e pioneira, como na Inglaterra que a viu nascer em 1987. Feshareki num “gira-disquismo” no ciclo de concertos de outros compositores deste século e do anterior, em contraponto à música de Messiaen — pioneiro do serialismo. Programada entre outros pioneiros, à música de indeterminismo de Feldman, ao impressionismo de Debussy ou ainda ao modernismo de Stravinsky. Assim revelada a tornar-se imprescindível de escutar, e para mais importa contar que Transfigure apenas pode ser experienciada em concerto, exclusivamente de forma presencial como nos esclareceu em entrevista concedida dias antes da actuação. É uma peça escrita para gira-discos, electrónica ambisonic ao vivo, com voz, harpa, contrabaixo e clarinete.

Ao Theatro Circo, Feshareki faz-se acompanhar por jovens instrumentistas locais, da Universidade do Minho, a soprano Daniela Baptista, a harpista Catarina Araújo, a contrabaixista Luana Fonseca e a clarinetista Jael Cohen, como a sublinhar o forte pendor site-specific desta composição, que conta ainda com uma instalação sonora ambisonic na sala de concerto de forma a incluir a identidade acústica do lugar, única em cada sítio. Há colunas de som dispostas ao longo das coxias longitudinais do Theatro, permitindo a fruição das ondas sonoras vindas de todas as dimensões. A secular arquitectura do Circo parece ter-se desenhado para esta acústica, esperando estes anos para tal ocasião. A configuração em plateia circular potencia com relevância este dispositivo na extensão das ondas sonoras, que viajam até à cúpula da sala. A música de Feshareki é hoje feita muito pelas, e para, interacções entre o espaço e o tempo. 

Em palco, os pontos de luz querem individualizar cada espectro sonoro em cada um dos quatro elementos acústicos alinhados. Como pontos de ressonância contam-se: a soprano, a harpa, o contrabaixo e o clarinete. À boca de cena as ferramentas electrónicas e gira-discos, paramentas na mesa posta à medida da compositora e manipuladora sonora, maestrina de frente e de olhos ao público. Este, ainda que na aparente passividade como ouvintes, tanto haverá de importar na interacção da própria acústica da sala. Todos somos elementos integrantes da acção. 

A voz colocada em primevo instrumento, a ressoar primeiro a desencadear o que vem. Projecções contínuas, em música tocada em contínuo, em crescentes ondulações que agitam, os instrumentos velados pela luz, tocados por em si, e alimentam a electrónica que capta e convoca ao centro. São os elementos acústicos que melhor definem as dimensões da composição em redor, o hipocentro fica em rotação. Os hipnóticos glissandos da harpa, a subir e a descer, a definição do espaço. Os estonteantes pizzicatos no contrabaixo, invariavelmente a marcar o tempo, numa métrica de pêndulo. A vibrante palheta a desbravar a amplitude tonal de cada nota desmedida no clarinete, a desenhar as vibrações. E a voz soprano num contínuo vocal, a respiração elemental e vital da sonoridade que se propaga. É uma música definida em partitura, contudo plena de inesperado, o improviso para além do controlo das instrumentistas, a acústica do espaço a revelar-se. Feshareki traz esta dimensão ao gira-discos, num habitat rotativo e profundo, servindo-se da condução centrípeta da agulha para canalizar e devolver ondas que atraem e expandem em simultâneo. O movimento sonoro faz-se num perpétuo viajar, encadeando fraseados sonoros como centelhas. O espaço oscilante feito de subidas e descidas, interagindo e gerando períodos imprevisíveis de onda. O efeito é vibrante e conduz a um interior — do som, do elemento, do eu que escuta —, sendo transfigurado pela crispação sonora à superfície. 

O som apenas se propaga na matéria, o lugar de existência, fundamental para que haja interacção. No fim dos trinta e algo minutos da peça gerou-se um inusitado vazio, assim revelado pela inexistência do som — a anti-matéria. Ou afinal foi somente a inércia momentânea prévia à ovação rendida.


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