[TEXTO] Miguel Alexandre
Tecidos padronizados cobrem os instrumentos, cabeças de bonecas preenchem os espaços vazios em palco e círios iluminam o pouco do que se consegue ver em redor. Este cenário quase minimalista brinca com uma estética ominosa, criando um ambiente pesado, ermo, mas ao mesmo tempo acolhedor. Quando o cantor Josiah Wise sobe ao palco, todos estes elementos se conjugam como um santuário para que ele e a sua audiência se sintam, de alguma maneira, em casa (ou então, pelos menos ele). Há um elemento quase energúmeno em serpentwithfeet, o seu nome artístico: a maquilhagem escura, o piercing no septo nasal, o pentagrama tatuado na sua testa juntamente com as palavras “Heaven” e “Suicide” (“céu” e “suicídio”, em inglês). No entanto, está na sua voz calma e serena a capacidade de espantar qualquer espírito presente e mostrar ao público que há, na verdade, alma na sua música.
E assim conhecemos serpentwithfeet: um jovem compositor oriundo de Baltimore, no estado americano de Maryland, que desde muito cedo frequentou a catequese, como, ao mesmo tempo, cantava no coro da igreja da sua cidade. A ligação com o profano e com o sagrado não é um território desconhecido na sua mestria e serve como premissa para o seu álbum de estreia, soil. Este novo trabalho é a pura e a mais sincera manifestação de alguém que se assume enquanto queer, pagão e activista, num mundo que ainda se mostra reaccionário a um tipo de amor sem padrões, sem medos, sem rótulos e sem géneros.
soil encontra-se algures entre as lamúrias frenéticas de Anohni, a serenidade soul rock de Terence Trent D’Arby e a honestidade hedonista de Frank Ocean. Esta dicotomia entre ser-se assumidamente gay, negro e cristão está presente de maneira intensa ao longo deste álbum, num formato espiritual, tal como mantras e abstracções. Músicas como “Cherubim”, o segundo single retirado deste projecto, exemplificam perfeitamente isto. “Boy, every time I worship you, my mouth is filled with honey/Boy, every time I build yor throne, I feel myself growing”: cria-se aqui a imagem de uma devoção sagrada, uma entrega de corpo a corpo, a outra pessoa, quer fisicamente como espiritualmente.
O que motiva na generalidade a escrita deste álbum é a resposta emocional aos acontecimentos da vida de Josiah; portanto, é cível que na sua visão, a partir do interior, este seja um disco com amarguras, desassossegos e frustrações. E elas estão lá realmente. Contudo, dificilmente o ouvinte incauto se concentrará nelas porque as suas identidades se mantêm intactas, devido a uma sonoridade espacial, uma voz calorosa e um ambiente geral melancólico.
Em contrapartida, faixas como “Fragment” ou “Mourning Song” representam o outro lado de quem ama: uma visão mais pessimista que dá voz ao amor não correspondido, ao amor perdido, e ao amor que nunca realmente foi. Na primeira, Wise reúne todos os ex-namorados do seu último amante de modo a sentir, pelo menos uma última vez, o sabor dele; a segunda mostra o cantor impetuosamente derrotado, celebrando a sua dor da maneira mais exuberante possível: “I don’t wanto to be small, small, sad. I want to be big, big, sad/I want to make a pageant of my grief”.
O ainda curto percurso de serpentwithfeet está longe de ser repetitivo. Até agora, é correcto afirmar que a sua marca autoral tornou-se de tal forma intensa que parece que reconhecemos a sua voz um pouco por todo o lado. É verdade que o artista apela aos novos horizontes do r&b alternativo, tal como muitos dos seus contemporâneos o fazem. Se continuarmos a percorrer as profundidades de soil, reparamos que canções como “Seedless” e “Waft” assemelham-se facilmente a estilos de Blackheart de Dawn Richard ou Aromanticism de Moses Sumney. Há um desvio na própria produção — esta encarregada por Clams Casino (ASAP Rocky, Vince Staples), Katie Gately e Paul Epworth (Adele, Florence + The Machine) – que, por vezes, apresenta-se demasiado circular, especialmente nos seus últimos momentos.
Em soil, o entusiasmo e os desencantos de relações rompidas, a partilha de intimidade e a imersão no crescimento são os momentos vais revigorantes e cristalinos da composição de Josiah Wise, amparados, ao mesmo tempo, por um som emocional composto pelo mínimo dos movimentos. Para serpentwithfeet, o amor não é fácil – e ele não o queria de qualquer outra maneira.