Bruno Silva, o prolífico produtor português que assina como Ondness e Serpente – e que ainda faz parte de Sabre e trabalha com Sei Miguel – lançou no dia 6 de Agosto o seu mais recente álbum, novamente pela Ecstatic.
Fé/Vazio alude, mas só no título, ao split LP lançado em 1982 pela Dischord, Faith/Void, já que não há nenhuma relação estilística, conceptual ou mesmo de reapropriação de ideias via sampling com o disco. Este trabalho habita um prisma só seu, difícil de situar, tal como Bruno nos tem vindo a habituar.
Editado com a assinatura do pseudónimo com o qual explora os seus “impulsos mais rítmicos”, Fé/Vazio é uma expressão contínua, ritualística, espiritual e catártica sobre a polirritmia, albergando eclecticamente ideias de jazz, derivados de música electrónica – do jungle ao IDM, do techno ao broken beat –, de olho em Detroit e no Reino Unido, ou ainda timbres de percussão que remetem para o hemisfério sul, com o devido aperto de mão a Jon Hassell (influência também sentida em alguns sintetizadores) e ao seu tão referenciado Quarto Mundo.
As várias referências temporais, geográficas ou estilísticas não chegam para situar as coordenadas exactas para a criação de Bruno Silva, que além de fazer interagir correntes diferentes e dispersas pelo globo, cruza timbres e ideias no pretérito perfeito, recontextualizando-as numa produção muito actual e com uma visão futurística do que é a música e convivência entre estilos. Para algumas pistas, podemos sempre recorrer ao timbre, no qual se sente particularmente este híbrido entre o electrónico e o acústico. Essa versatilidade é sentida na facilidade com que podemos passar de ouvir Fé/Vazio (mas também outros trabalhos seus) no quarto com auscultadores, numa sala maior com um sistema de som de invejar (Lux, preparem os caracóis) ou numa pista de dança de olho em universos experimentais ou ritualísticos.
Bruno Silva desvendou alguns detalhes sobre a concepção do seu último trabalho em conversa via e-mail com o Rimas e Batidas. Na mesma, não deixou de expressar o seu fascínio pelo timbre e ainda pormenores quanto a lançamentos futuros.
Já tinhas falado desta questão do espaço mental em cada trabalho e como isso define com que nome assinas. O que é que te levou a assumir a pele de Serpente desta vez?
Serpente e Ondness são duas entidades mais ou menos paralelas, com premissas diferentes, e cada vez mais demarcadas na minha cabeça. Talvez ajude clarificar um pouco isso: Serpente é o portal para onde canalizo os meus impulsos mais rítmicos, é fundada e orientada em torno da percussão, em várias dimensões – tímbricas, rítmicas, texturais, etc – e nasce de um interesse e fascínio crescente em torno desta ao longo dos últimos anos. Acto contínuo, convergem nesse fluxo noções vagas de ritual, dança ou hipnose, que talvez passem para o outro lado; em Ondness, a percussão surge como um elemento com igual papel no tecido harmónico. É a minha encarnação solo mais duradoura e continuada, lida mais directamente com determinadas obsessões e anseios meus num momento particular, sendo por isso o scope mais expansivo. Igualmente intuitivo, mas mais disperso. Agora, é natural que haja algum overlapping, embora acredite que seja cada vez menor – Meio Que Sumiu foi um ponto de cisão importante, e recuando uns anos a coisas como o Death Weekend/Rituals consigo descortinar lá sementes para a Serpente. Mesmo uma esfera de influência comum como o jazz é encarada de maneira diferente, com Serpente alinhada com ideais de êxtase e elevação e Ondness a adoptar uma postura mais formal, em termos de arranjos, gestão de silêncios e fricções. Penso nelas como merdas diferentes, o que me ajuda a focar. A génese do Fé/Vazio foi sempre da Serpente.
Qual foi a semente para a criação de Fé/Vazio? Qual é a influência, ou até a presença, do Faith/The Void (lançado pela Dischord em 1982) neste teu trabalho? Surgiu dum convite por parte da Ecstatic?
A semente para o Fé/Vazio foi lançada quando conjurei “Rainhas” e “Razia”, e ficou, desde logo e nessas duas feras, mais ou menos clara uma dicotomia/complementaridade entre uma dimensão comunal de crença, ou se pudermos assim dizer, mais luminosa ou sentiente à luz, e uma outra mais alinhada com uma certa paranóia urbana, de abandono. Idealizar uma utopia de liberdade acarreta sempre consigo uma ideia de vigilância latente nos tempos que correm? Talvez, não sei. Mas a ideia de acto de Fé e imersão num Vazio trazem-me uma espécie de confronto e congregação, ou uma continuidade, como se um se abatesse no outro, e assim por diante. E já aos anos, ao pensar no título do disco da Dischord – sempre relevante e especialmente revelador no estertor extático dos Void – e apesar de serem apenas os nomes das bandas, magicava esse subtexto. Era uma questão de tempo até me servir disso. Aqui estamos.
Usaste algumas ferramentas além do computador para a produção do disco? Foram de alguma maneira escolhidas com esse disco em mente?
Não. Foi sobre esse coitado que se abateu novamente a responsabilidade de levar isto a um fim possível.
Não só neste trabalho, mas ao longo da tua discografia, sente-se um interesse em criar uma estética que absorve sonoridades mais electrónicas a outras acústicas. Aliás, o timbre da tua percussão é exactamente a expressão desse híbrido. Até que ponto é que essa escolha é racionalizada?
Interessa-me bastante o timbre, sim. Culpe-se ou abençoe-se o Sei Miguel por isso estar cada vez mais enraizado. É racionalizada até certo ponto, mas deixo sempre levar-me um bocado pelo instinto, não há grandes conceptualizações para além de coisas bem práticas que me ajudam a “triggar” certas ideias e dar-lhe um enfoque. Regra geral, não existe um lado muito consciente que me leve a procurar um equilíbrio electroacústico, interessa-me mais o modo como os elementos percussivos interagem entre si – sejam eles sacados a caixas de ritmos ou de natureza orgânica – e sublimar as suas particularidades – timbre, mas também tom ou textura. O processamento que uso, e que não é assim tão abundante, serve exactamente para ressalvar uma dada característica do som.
Além disso, a tua música joga com uma curiosa noção de tempo, conjugando samples ou ideias do passado, correntes do presente e estruturas ou timbres futurísticos. Onde sentes que a tua música se posiciona, com todos estes contornos tão mal vincados relativamente a noções de tempo, espaço geográfico ou até estilo musical?
O presente está continuamente assombrado pelo passado e pelo futuro, não é? Pá, é-me sempre muito difícil perspectivar a minha própria música e posicioná-la num determinado contexto. Não que ela seja única, e não creio que o seja, nem que ela apareça imune a referências, porque elas existem e não estou aqui a criar ruptura com tudo o que está para trás nem a projectar ideias para o futuro. Estamos aqui e agora a fazer os possíveis. Tendo em conta uma parcela algo significativa de electrónica hi-def hiper-real quase impenetrável no seu onslaught de informação, a minha música até soa bem pobre por comparação. Por um lado, algumas dessas minhas referências são tão pessoais e enviesadas que provavelmente não farão sentido a qualquer outra pessoa – beauty is in the eye of the beholder, etc –, por outro existe um número de pares com os quais sinto empatia e um certo sincronismo de ideias mas que não soam particularmente parecidos, nem comigo nem entre si. Sei lá, neste momento acho que é mais fácil para quem está de fora alinhar-me numa determinada corrente ou situação, e estou de boa com isso. Mas gosto de ler que todos estes contornos estão “tão mal vincados relativamente a noções de tempo, espaço geográfico ou até estilo musical”. Grato por isso.
Cheguei a ver-te na ZDB no ano passado, e fiquei fascinado com o resultado desta exploração polirrítmica, ambiental e club em simultâneo em palco. Quando compões tens em mente como tudo funciona nos headphones ou em palco?
Bem, esse concerto foi um happening especial, pois trabalhei uma fera em conjunto com o Gabriel Ferrandini, onde o equilíbrio que mencionas acima entre o acústico e o electrónico estava mais evidente. Tivemos em conta factores que não existem quando toco a solo. Posto isto, os concertos servem para revelar um work in progress e assim assentar ou descartar ideias para futuras feras e discos, e sempre que possível, são assumidos de acordo com o seu contexto – espaço, vibe, horas, etc. Raramente toco feras já “terminadas”. Ou seja, o processo dilui um pouco essas duas dimensões, com o concerto como um fluxo de projecções que vão sendo progressivamente mais lapidadas, a seu tempo e com os poucos meios que tenho para tal: headphones, umas colunas meio merdosas e auto-rádio. Quando avanço para um disco, a composição per se costuma ser relativamente rápida e fluída, mas a mistura e o encadeamento tendem a ser cada vez mais morosos. Faz parte. Antes deste colapso, tinha já assente e desenhada a ideia de apresentar Serpente ao vivo como um trio, mas agora resta-nos não desesperar por dias melhores.
O que tens planeado para o resto deste muito estranho 2020? O que estão Ondness, Sabre ou também Serpente a preparar?
Pois, nos melhores dias 2020 tem sido um impasse, nos restantes um sufoco. Andamos para o lado para não cair e o panorama social e político está tão assustador que pensamos no quão fútil pode ser tudo isto que estamos para aqui a falar. Nem sei. Adiante. Um novo álbum de Ondness pela Holuzam chamado Megadawn. Está gravado e masterizado faz algum tempo e estamos agora a trabalhar num suporte físico que tem sido um quebra-cabeças bem gratificante por estes lados. Novo álbum de Serpente ao cair do pano. Duas longa digressões assentes naquilo que andei a tocar em Inglaterra no final do ano passado. Vai-se chamar “Irmãs”.