LP / Digital

Serpente

A Noiva

Tormenta Electrica / 2018

Texto de Nuno Afonso

Publicado a: 22/01/2019

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Ainda com a melhor memória possível de Rituais 101, surgiu já na recta final de 2018 o segundo take de Serpente. Numa fase ainda de balanços sobre o ano que passou, e com a sempre inevitável descoberta tardia de álbuns, A Noiva é um mais uma investida insular de Bruno Silva a exigir escuta e devoção numa altura em que a electrónica (e muita dela feita por cá) se apresenta como um viveiro fértil e a disparar por diversas direcções, como convém.

Numa toada mais minimalista que nunca, estas quatro novas composições de Bruno Silva são tecidas de uma noção quasi-techno, dissimulando a batida ceremonial que tudo originar o projecto. Cruzam-se ideias com a batucada ou a Santeria — e demais oferendas polifónicas — ensombradas pelo carimbo enigmático do autor. Ritmicamente complexo, A Noiva circula por quatro distintas visões, ou se preferirmos, estruturas alternas. Cada uma funciona como prisma em redor do tema central, e no seu conjunto, resulta um exercício ongoing de hipnose onde as luzes são propositadamente desligadas e os sentidos postos em alerta. É no escuro onde geralmente se desenham as paranóias ou as alucinações e A Noiva aproveita-se desse mood para beliscar o inconsciente e a imaginação. Em certa medida, trata-se de uma escuta profunda, onde existe sempre mais do que aparenta.

Os jogos de ilusões e sugestões que nascem deste disco em muito se sustentam dos ensinamentos do dub, mas também de um minucioso gosto em desintegrar e reunir peças de um todo. A imponência da inaugural “A Noiva (Approach)” desde logo anuncia o fogo lento que acompanha esta meia hora de entrega sonora. Plena de micro-organismos apenas ao alcance dos mais atentos, a sequência de movimentos segue para “A Noiva (Crença)” em que os ecos de uns Autechre ou Theo Parrish abrem fendas onde não se imaginaria — aka ganhos maiores.

A segunda parte arranca com “A Noiva (Renda)”, uma espécie de herança afro, fragmentária e crescente, que milagrosamente evoca Don Cherry e uma imensa selva de sons e outras coisas fora deste mundo. Termina em celebração acesa, indomável mesmo. Para um exercício que gravita à volta das possibilidades da percussão – e todas as suas marchas, manobras e epifanias — “A Noiva (Bless)” é a faixa final que ascende, por excelência. Acima de tudo, deixa no ar o sentimento de que estamos perante um objecto envolvente. E isso é dizer muito.


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