A música ambiental tem, muitas vezes, a conotação de música terapêutica, pela serenidade e desenvolvimento lento que a caracteriza. A beleza dos timbres e os tons harmoniosos à qual é associada levou a categorizações simplistas e preguiçosas, meras pontas de um enorme icebergue. Esta preguiça menospreza/esquece a profundidade e a variedade que este estilo pode conter em si, desde os campos mais relaxados e meditativos às crateras ruidosas e dissonantes de alguma música drone com interferências de modelos mais exploratórios ou noise. As duas noites do Festival Serial foram, para quem ia com esses preconceitos, um abrir de olhos, uma afirmação de que a música ambiental e a música exploratória contêm uma infinidade de timbres, dinâmicas, sons e, também, contextos culturais.
“[Há] uma vontade imensa em colocar Évora na rota dos grandes festivais de música experimental em Portugal, descentralizando dos locais habituais Lisboa-Porto-Braga”, contou-nos Jorge Mantas, responsável pela curadoria do festival que pretende contribuir para o dinamismo cultural crescente que se vai passando na cidade, candidata a Capital Europeia da Cultura de 2027. O crescente interesse na procura de novos espaços e ofertas é visível- “Nestes dois dias tivemos, aliás, a presença de muito público oriundo de Lisboa e Porto, que se deslocou a Évora de propósito para assistir ao festival. Penso que é um sinal muito promissor sobre o interesse que estamos a despertar a nível nacional”, acrescentou.
O Serial representa mais um importante esforço pela música inovadora e exploratória em território nacional, expondo músicos de fora, e apresentando o que se faz dentro de portas, valorizando uma parte da cultura portuguesa que ainda se vê relativamente afastada da imprensa e dos olhos do público geral – o que é compreensível: a cultura mais desafiante tem dificuldade em atingir audiências de maior dimensão pelo seu carácter exploratório, mas não devemos tomá-la como inexistente pela sua marginalidade. Na mesma curta conversa com o curador, o mesmo confessa: “não acompanho atentamente o jornalismo musical português, mas, daquilo que tenho visto, parece-me que os festivais de música experimental em Portugal começam a ter alguma visibilidade na imprensa nacional, com coberturas muito pontuais sobre artistas de maior renome internacional. Contudo penso que ainda há muito a fazer…” São esses pontos que o Serial, o
OUT.FEST, o
Som Riscado e o
Semibreve querem combater: a centralização cultural e a indiferença perante a música mais desafiante.
Perto da Praça do Giraldo, uma pequena igreja no centro da cidade de Évora foi a nossa porta de entrada para o festival. A Igreja de São Vicente foi escolhida como palco para todas as actuações do evento, em contraste com o mais convencional Teatro Garcia de Resende, espaço escolhido para a primeira edição. Apesar das cadeiras de esplanada da sala e dos infelizes sons nocturnos de um bar no exterior, mesmo ao lado do monumento, ofuscarem o carácter imersivo das actuações, o tamanho da Igreja de São Vicente apelava à atmosfera intimista que vivíamos em comunhão com artistas, curiosos e apaixonados pelo som.
Tal como o princípio de uma audição num gira-discos em casa, a performance de
Vitor Joaquim começou com o som dos
crackles do vinil a dar vida à sala — e o primeiro sample ouvido sugeria uma melodia árabe. O músico setubalense vai trabalhando com vinis e fitas para procura de loops ou diferentes texturas e, gradualmente, adicionava várias fontes sonoras que confluíam num todo confuso, fazendo soar diferentes timbres em simultâneo. Nesta apresentação do seu último trabalho, o álbum
Nothingness, foi em momentos mais intimista e contido, etéreo e espacial – apesar da sua individualidade estética, conseguiríamos aproximá-lo de Huerco S ou alguns tons que se ouvem em
mono no aware, compilação fascinante da editora berlinense PAN. No entanto, a quantidade de fontes sonoras num mesmo tempo, como que sobrepondo imagens umas nas outras, fazia por vezes surgir
kicks e texturas mais sombrias.
A sua música parece, no fundo, ser uma contínua interacção entre samples –
found sounds,
field recordings, vozes ou material retirado doutros registos, como que saídos dum rádio qualquer –, sintetizadores e instrumentos digitais, colocados lógica e estrategicamente em diferentes momentos da execução, desencadeando estruturas e atmosferas. Enquanto tocava, Vitor Joaquim colocava caixas com ramos a rodar em movimento axial, e alterava a sua disposição ou formato, como que dividindo momentos da actuação, afirmando princípios meios e fins duma viagem contemplativa pela sua música.
Para um concerto completamente diferente,
Audrey Chen, a artista chinesa-americana trouxe um tipo de performance bastante visceral em que o corpo é o elemento fundamental para a produção sonora. Apesar de ter formação e ser violoncelista, o seu trabalho com a voz tem sido o centro da sua criação mais recente e isso tem-se reflectido tanto na sua discografia, com o último
Runt Vigor, de 2018, como no seu concerto. A exploração da voz é, então, a base da música, mas nem por isso é uma execução linear e simples, pois procura – pelas formas como excita as cordas vocais, pela posição da boca ou afastamento/aproximação do microfone – encontrar ininterruptamente novos sons e possibilidades com o instrumento mais humano de todos. Aliada à voz, a componente electrónica do concerto encontrou-se em alguns efeitos de processamento da mesma e no jogo com
feedbacks e
glitches, do que parecia ser um circuito eléctrico, numa produção sonora tímbrica e tecnicamente semelhante à de Rafael Toral. Desconfortável e desafiante como se de uma transformação se tratasse, Audrey diferenciou-se completamente dos outros actos do festival pela coesão da sua exploração do som.
E chegávamos ao último acto do primeiro dia com um pequeno problema técnico que interrompeu o princípio do concerto de
Ariadne. Christine Papania e Benjamin Forest são um duo americano de música sacro-experimental que, ao vivo, se dividem em duas secções: a primeira canta e processa o áudio da voz e o segundo trabalha a electrónica e o lado visual.
O aliar desse mundo electrónico e digital a outro mais arcaico e austero soou a uma marcha fúnebre pós-moderna. Nesta estreia em Portugal, a dupla demonstrou com exactidão como a sua música contempla uma aura nova e entusiasmante quando apresentada em concerto. O lado visual surrealista foi, sem dúvida, um acréscimo relevante, mas há outro destaque: a grande expressividade da voz de Christine e as variações dinâmicas que incitam ao mergulho total na performance.
No princípio do concerto, a semelhança com uma simulação audiovisual do comboio foi encontrar a sua paragem seguinte numa turbulência de sons com voz processada. Os
glitches, o contraste entre os graves sintetizados e a voz mais doce – que teve momentos incríveis quando harmonizada pelo seu processamento de efeitos – demarcaram grande parte do concerto, mas o caos destrutivo, alimentado por gritos e
feedback que ressoavam por toda a igreja, lembravam que esta música também é intensa e tenebrosa. Nem sempre meditativa e terapêutica.
Ao contrário de sexta-feira, o primeiro momento do festival no sábado aconteceu durante a tarde e com direito a entrada livre. E a abertura ficou a cargo de
Drunna Jaguar (o projecto do curador Jorge Mantas) acompanhado por
Dong Zhou, a prolífica e multifacetada compositora chinesa. Esta colaboração, criada em exclusivo para ser apresentada em Évora, ligou sons acústicos a electrónicos com uma solidez notável, dando a impressão que colaboravam há anos.
Em palco, Zhou percutia com um CD as cordas de um violino que tinha um microfone incorporado. Tal como Audrey Chen, Dong explora as várias possibilidades sonoras dum instrumento só. Jogando com o ataque e a proximidade do sensor, explorou timbres menos convencionais do instrumento (pelos harmónicos e percussão, por exemplo), que progressivamente se transfiguram naquela que é a sonoridade mais típica do violino – com o uso do arco. Aí, Jorge surgia a partir da síntese sonora, dando vida às frequências mais graves da actuação. Numa mesma passada, em metamorfose lenta, os músicos pareciam improvisar e ler os passos um do outro. Mesmo que Drunna Jaguar se ocupasse maioritariamente com os mantras que seguravam esta estrutura sonora, Zhou encontrava-se de quando a quando com o mesmo em movimentos melódicos mais alongados. Sensivelmente a meio da performance, ouviu-se pela primeira vez a voz da compositora, num registo mais silencioso, dedilhando o violino enquanto falava. A solo, Dong cantou uma melodia oriental acompanhada pela percussão do violino. Uma interacção mais caótica entre os músicos, com
glitches, sons de sintetizador ao longo do espectro, exploração de harmónicos e de glissandos, aproximou-os do fim deste concerto tão cheio de acontecimentos.
A exploração dos campos mais etéreos e misteriosos das cordas definem e marcam a música tocada por um par com já mais duma década de história a compor em conjunto.
Manuel Mota e
Margarida Garcia já têm muita experiência a trabalhar com outros músicos do registo da música experimental e improvisada, mas em duo parecem encontrar maior coesão facilidade em trabalhar, puxando pelo melhor que cada um tem para oferecer à música.
Começando pelos timbres, criados por Manuel com a sua Les Paul, que parecem de tal forma dissociar-se dos de uma guitarra, soando a uma orquestra sinfónica se ouvida de longe, enquanto Margarida ocupava-se com a definição estrutural, harmónica e dinâmica dos temas, e sempre mais ponderada na execução.
A atmosfera sonora enevoada construída por deste duo advém de muito processamento de áudio por via dos pedais: os delays, reverbs, chorus e distorções são servos de estruturas pouco palpáveis. Só quando nos aproximámos do fim é que nos apercebemos que as tripas deste corpo sonoro etéreo se compõem de momentos brumosos, agressivos, misteriosos, ruidosos e melódicos. É nas transformações e passagens entre atmosferas que se dá a inesquecível viagem de
feedbacks em uníssono e melodias longínquas, acusticamente falando, de Manuel e Margarida.
Regressando pela última vez à Igreja de São Vicente, a primeira interveniente era, também, uma interessante exploradora do som de um instrumento. As formas de execução e o processamento de efeitos, no entanto, foram apenas questões técnicas para falar da música harmoniosa e contemplativa de
Angélica Salvi. “Sinople”, faixa de
Phantone, disco no qual se centrou o seu concerto, introduziu-se suavemente com uma melodia que se dissolveu e desaguou num arpejo repetido e ecoado pelo tema. A harpista espanhola guiou-se por uma pauta, levando-nos a crer que pouco do que toca é improvisado, mas o processamento de efeitos arranja sempre uma maneira de nos surpreender…
A sua abordagem ao instrumento – que toca com clara mestria – é a de um tocador de harpa se quisesse criar arpejos num sintetizador. O uso de delays revertidos e chorus prolongou as notas e criou uma cama harmónica de beleza ímpar. Recuperando ecos e notas já tocadas, os timbres da harpa ganham novos contornos, um pouco à semelhança do que faz o colega de editora Filho da Mãe com a guitarra. Como no caso do músico português, a mestria aliada à beleza da composição, elevam a música no contexto performativo.
De uma exploração sonora mais académica, próxima da electroacústica e demais géneros de música laboratoriais começados na década de 40 do século passado,
Loïse Bulot retornou à síntese sonora mais pura, num excelente trabalho estereofónico. Típico da música acusmática, o trabalho ao vivo resulta mais da espacialização dos samples e sons lançados que da execução propriamente dita dos mesmos. A exploração do lugar de cada som e da percepção sonora são centrais na música de Loïse, mas o ritmo e o trabalho de dinâmica e harmonia não são esquecidos.
Como revelou numa performance no Ina-GRM, o importante Grupo de Pesquisa Musical francês, os samples de “Zenith” – um dos temas que tocou — vêm principalmente de registos de piano e de sintetizadores analógicos. Irreconhecíveis em grande parte nestas peças, dada a sonoridade tão digital, tanto das notas intermitentes como dos glissandos. Além do jogo rítmico, o trabalho de sampling traz ainda possibilidades de reverter e alterar a altura dos sons. Na actuação, os jogos mais constantes, apesar de tudo, estão na consonância versus dissonância, e na interferência entre o que são sons musicais e não-musicais. A harmonia e a melodia vão perdendo importância e no centro ficam as texturas e as dinâmicas. Assim, Loïse relembra-nos que a música tem muitos factores e componentes por onde pegar para inovar.
Estava na altura de fechar a edição deste ano do festival de uma forma contemplativa e emblematicamente catártica. Num registo subtil e cinematográfico,
Christina Vantzou, artista que actualmente vive na Bélgica, apresentou algum trabalho seu, inclusive do seu mais recente
No. 4, num tipo de execução semelhante da sua antecessora — apesar do timbre mais dramático e orquestral acabar por diferenciá-las. Subtilmente, Vantzou provocou o surgimento de graves de drones montanhosos que cresciam no sistema de som. O plano dimensional da sua música, mais etéreo e espacial, reverberado e ténue, é bastante visual e sugestivo, uma característica que poderá ter sido ampliada a propósito do seu trabalho em The Dead Texan, duo com Adam Wiltzie.
O tipo de timbres afastava-se dos mais electrónicos que antecederam, neste caso com samples de piano, cordas e alguns
field recordings, muito ecoados numa atmosfera que fazia lembrar alguns trabalhos da editora de ambient americana 12k ou o álbum
Krieg und Frieden (Music For Theatre) do alemão Apparat, por exemplo.
O foco no trabalho harmónico e nas dimensões de arranjo entre melodia e a presença de cada instrumento na mistura diferenciou-a doutros músicos do festival, em grande parte menos relacionados com a normalmente denominada “música erudita”. No entanto, momentos de maior sentimentalismo transformavam-se em tons mais sinistros: sons de vozes a falar e a rir, com uma cama tensa de cordas, metamorfoseavam a paisagem sonora e a emotividade tão palpável das suas criações. Um dos pontos altos do trabalho tímbrico durante o concerto foi a transfiguração do som da chuva num acorde, denunciando um trabalho de mistura inacreditável.
Compreendendo um espectro da música experimental mais ambient, a variedade estilística na selecção de artistas para o festival, diz-nos Jorge Mantas, “baseou-se essencialmente em dois factores: em primeiro lugar a qualidade dos artistas e a potencialidade de produzirem espectáculos que seduzam o público, não só os ‘entendidos’, mas também, e talvez sobretudo, o grande público que, não sendo conhecedor, tem curiosidade em experienciar outras formas de criar música; em segundo lugar, obviamente, a escolha tem o meu cunho pessoal, este prazer imenso em poder apresentar em Évora alguns dos artistas nacionais e internacionais mais relevantes da actualidade nestes géneros de música”. E sim, todos os artistas demonstraram inovação e qualidade a trabalhar o som, sendo notável, para além disso, a bem-conseguida representatividade de artistas no feminino.
Para rematar, o curador assume que houve uma grande profissionalização e melhoria em todos os aspectos do Serial na passagem para a segunda edição. “É uma experiência muito gratificante na qual se aprende imenso e nos ajuda a perceber melhor o longo caminho que ainda temos à nossa frente para melhorar e continuar a crescer de uma forma sustentada”. Passo a passo, sem pressas nem a urgência de responder ao que se passa em lugares
mainstream, as iniciativas como o Festival Serial são sentidas no presente enquanto momento de disrupção e, se tudo correr pelo melhor, serão revistas no futuro como alturas cruciais para o estabelecimento de um novo circuito que se fez nas margens para as margens e onde o único sobressalto seria aquele que era sentido na altura em que decorria um concerto. Até para o ano não é só um desejo; é uma necessidade.