pub

Fotografia: Iuri Policarpo e Direitos Reservados
Publicado a: 14/11/2021

A captar o coração e a consciência de uma cidade.

Ser-se Quarteira a tempo inteiro é uma missão para a vida

Fotografia: Iuri Policarpo e Direitos Reservados
Publicado a: 14/11/2021

“Foi no olhar de realização da Alicia [Rosa] e do Baby Creezy que reencontrei o que um dia me moveu para fazer música. Ressuscitei através deles! E só descansarei quando os sentir a viver da sua paixão”. As palavras fortes são de Dino D’Santiago e referem-se a dois dos mais imberbes talentos a despontar em À Moda Quarteirense, uma montra de novos talentos em forma de disco que finalmente aterrou nos serviços de streaming. 

Tentar definir o som de uma cidade pode ser tarefa complexa e passará sempre pela visão de quem projecta essa mesma ideia, tornando-se progressivamente mais complicada de concretizar de uma maneira justa e honesta se a base não for sólida. Esta linha de pensamento serve para começar a explicar a importância do que foi dito acima pelo autor de Mundo Nôbu e a forma como foi estruturado este álbum: em primeiro lugar, a compreensão que os mais novos, mesmo que mais inexperientes, devem ter a liberdade para explorar sem restrições para se ter o retrato mais fiel daquilo que é Quarteira à entrada de uma nova década, dando-lhes ferramentas para serem o melhor que conseguirem. Isto, claro, serve para complementar o peso da experiência dos veteranos, historiadores informais e locais que nos guiam desde o passado até aqui; em segundo lugar, a escolha de Dino, Mike Ghost e Holly para liderar um projecto desta envergadura. Os dois primeiros, filhos de Quarteira, são pessoas generosas, talentosas e pacientes, três coisas importantes para levar um barco a bom porto, ficando à responsabilidade do terceiro, produtor das Caldas da Rainha — que tanto trabalha com Bauuer e Machinedrum como com Wet Bed Gang e Slow J — o olhar exterior e competente para ajudar na missão. 

“Quarteira é uma cidade muito eclética no que diz respeito à música. Viajamos do punk ao kuduro numa questão de segundos. Temos no hip hop uma das nossas maiores referências, um legado que nos foi oferecido por Johnny Def no final dos anos 80, início dos 90s, mas também o jazz, fado, funaná e a kizomba fazem parte desta equação”, esclarece o cantor. ”Então, resolvi juntar dois produtores que abraçam a diversidade sónica que uma cidade como Quarteira abrange. O Mike é um filho da terra com uma enorme experiência no universo hardcore, punk ou grunge e o Holly é um mestre na arte do beat electrónico, tendo o hip hop como ponto de partida!”

Por trás de tudo, a Associação Beyond: o festival Sou Quarteira — por onde já passaram Kojey Radical, Carlão, Branko, Plutonio, entre muitos outros –,  a exposição e livro Heróis e o documentário #Sou365Dias são amostras fidedignas da dedicação e assertividade dos fundadores Naomi Guerreiro, Inês Oliveira, Claudino Pereira e Miguel Jacinto. 

Segundo Dino, “esta ideia de se fazer um álbum com os artistas” da cidade “surgiu do Miguel ‘Mouska’ [Jacinto]”, quando se apercebeu que muito dificilmente aconteceria o Festival Sou Quarteira — culpa da pandemia. “Quisemos, de alguma forma, manter o espírito artístico da cidade vivo, mesmo que por detrás de máscaras.”

A partir daí, as conversas foram acontecendo até que, a certa altura, se colocou um timing para as gravações. E, em bom português, era para ontem. “Foi engraçado porque eu, o Dino D’Santiago e o Holly estávamos a trocar ideias aqui e ali e, do nada, o disco tinha de ser [feito] na semana seguinte. Eu e o Holly passámos uma semana em troca de instrumentais em modo louco, chop aqui e ali, gravar instrumentos, e depois dou por mim a montar estúdio num apartamento junto à praia. Acho que foi aí, por mais doido que isto possa parecer, que os instrumentais começaram a ganhar esse pulso, envolvidos no cheiro, no sol, na brisa e no próprio apartamento”, confessa-nos o artista também conhecido como Fantasma. O setup? Um computador, um interface, um microfone, duas colunas, dois colchões e edredões. (N.R.: Quando terminaram as gravações do álbum, o material foi entregue à Associação Akredita, com sede no Bairro da Abelheira, para ser usado com as/pelas crianças, que na sua maioria são da diáspora africana ou de etnia cigana.)

O andar, localizado num edifício entre o Hotel Quarteira Sol e o Dom José Beach Hotel, torna-se, assim, parte importante desta história, mas não foi o único sítio utilizado nos dias de gravações em Junho de 2020. Várias ruas acima, OG Cream, produtor próximo de Baby Creezy e LLtheSavage, abriu as portas de casa (que ainda estava em obras) e, lá dentro, encontrávamos um pequeno estúdio em que cabiam pouco mais de cinco ou seis pessoas ao mesmo tempo. 



Foi aí que, por exemplo, ouvimos Sacik Brow a gravar os seus versos de “Abelheira” — e se já lhe conhecíamos as qualidades, não há nada como vê-lo em acção, a poucos metros de nós, na cabine. Provavelmente dos MCs mais subestimados do panorama nacional. Outro dos nomes que nos surpreendeu pela positiva foi Reztrikto: quando Mike disparou o instrumental, o rapper rimou como se a sua vida dependesse de um primeiro take irrepreensível e a sala ficou em suspenso até ao final. Um daqueles momentos especiais que voltam de imediato à memória quando ouvimos a versão de estúdio de “Alsol”. 

Neste caso, o todo é, realmente, o mais valioso, mas Mike destaca, quando questionado sobre a sua favorita, “Rosa Branca”, canção que junta Biex, rapper que trabalha como peixeiro no Mercado de Quarteira, e a cantora Isa de Brito. Num conjunto de faixas carregadas de melancolia, esta é daquelas que emana a energia solene e carregada de vidas (umas mais felizes, outras mais trágicas) da cidade algarvia, sempre com o batimento das ondas a servir de metrómono.

Dino, pelo seu lado, destaca o colectivo: “O que mais me marcou em todo este processo foi a entrega de todos os artistas que se envolveram neste álbum! A diversidade e qualidade inquestionáveis. A velocidade com que as canções eram desenhadas, as histórias que cada um trazia do seu beco. Enfim… todo este processo foi muito marcante a título pessoal por ver a nossa cidade a ganhar uma banda sonora multicultural.”

Holly coloca a cereja no topo do bolo: “Adoro! Principalmente porque, embora não tenha nenhuma relação directa com Quarteira, este álbum ensinou-me bastante sobre a cultura e história da cidade e consigo sentir o cheiro, as texturas das ruas através da música que fizemos assim, [tal] como conheci pessoas incríveis e histórias únicas através desta viagem.”

Ainda a dar os primeiros passos depois do primeiro confinamento, a equipa tinha ao seu dispor menos pessoas, mais máscaras, mas também menos confusão e, talvez, uma maior necessidade de se mostrar serviço; na verdade, ainda pouco sabíamos sobre o futuro e aquilo que nos reservava, por isso mais valia gastarmos os cartuchos em questões que eram realmente importantes. 

Durante a nossa estadia, o bom senso reinou quanto ao respeitar das regras. Dino, Alicia e Mike foram as personagens mais recorrentes no apartamento — os dois primeiros a desenharem refrões, melodias e harmonizações, desempenhando os papéis de mestre e de aprendiz, respectivamente; o último a servir de engenheiro/sensei, não deixando que a energia saísse fora do sítio, por mais diferentes que fossem as pessoas que por lá passassem. 

Individualizar músicas na hora de tentar explicar é uma dor de cabeça porque todas importam. E não é um lugar-comum, é a realidade pura e dura. Agora, falemos de algumas das canções: a energia rap-rock em “Asa Branca” a unir dois rappers de gerações diferentes, a do jovem Low K (a recorrer a uma narração “auto-tunizada”) e o veterano e reivindicativo Perigo Público (a reclamar mais atenção — não percam a oportunidade de (re)ouvir Porcelana); nostalgia no instrumental, refrão etéreo de Bertílio e dedo na ferida do hiper-consciente Sacik em “Abelheira”; tal como na segunda faixa do alinhamento, um encontro de vozes com currículos diferenciados em “Dunas”, com o newcomer Baby Creezy e o membro dos APC Miranda Eloquente a encontrarem terreno comum em balanços diferentes; “Checul” com Lady N (a autoridade) e Alicia Rosa (a voz que vai ser grande) num dos registos mais descontraídos e leves. Ou “Cavalo Preto”, a carta definitiva de amor a uma terra. 

Continuemos: o épico-rap de “Poeta Pardal” (ancorado na voz de Dani) poderia muito bem ser o tema introdutório — que está bem entregue a “Levante” de Mouska –, trazendo no seu título a referência a um anfitrião involuntário: Manuel de Brito Pardal. “Os samples são do pescador Poeta Pardal, lobo-do-mar quarteirense, uma figura marcante da história e cultura da cidade”. A certo momento, tal como nos explicam, surgiu a ideia de gravar pessoas locais a falarem para termos interlúdios e samples e momentos, mas alguém sugeriu, em conversa, um filme-arquivo do Poeta Pardal que estava nos arquivos da RTP. 

Entre quem ainda vive por Quarteira e outros que por lá passaram, mas que seguiram para outras paragens, esta embarcação apanhou ainda Subtil, Mascote, Elísio e Lígia Pereira, Bruno Mariano, JV8125, Fragas, Edna Oliveira, LLtheSavage, Carla de Sousa, Iniciado, Puto Rucca, Jaydas e Menor. E ficaram reservados uns lugares-extra para Virgul e Yuri da Cunha, dois cantores com tarimba no mercado lusófono, ou Gonçalo Neto, guitarrista mais ligado ao universo jazz. 

Por mais palavras que se escrevam sobre o À Moda Quarteirense e de como foi o seu processo de criação, a audição é a única maneira se aproximar realmente daquilo que se rima, canta e expressa nas 16 canções. No meio de uma pandemia, um grupo de velhos conhecidos e novos comparsas juntou-se para mostrar aquilo que foi, é e vai ser Quarteira. Dos corpos que sucumbiram, dos amigos que se fizeram para a vida e das crianças que um dia poderão ir à terra dos pais e orgulharem-se do que vêem: da matéria dos sonhos que não se concretizaram, daqueles que se estão a concretizar e daqueles que ainda vão acontecer. 

Ainda sobre os que estão a começar e sobre aqueles que precisam de um empurrão para sair de Quarteira para o Mundo. “A intenção da [Associação] Beyond desde o início sempre foi a de dar um passo que alavancasse o potencial dos artistas da nossa cidade. Eu sempre disse que vinha de uma cidade onde a arte acontece a todos os instantes. Os primeiros manifestos já começam a surgir, Sacik Brow realiza-se ao assinar com a Sony Music, a Alicia Rosa já veio comigo para a estrada e encontra-se a gravar o seu primeiro EP. Também temos falado com promotores para levar o concerto para fora da cidade, sei que levará o seu tempo, mas grande parte dos artistas envolvidos terão uma carreira tão ou mais sólida do que a minha!”, atira o sempre optimista Dino.  

Este domingo, pelas 18 horas, mais um passo importante para o projecto: um showcase acústico com alguns dos protagonistas do disco. É, pode-se dizer, a segunda etapa desta empreitada que, se tudo correr bem, ainda agora vai no adro.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos