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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 18/02/2022

Uma obra a três camadas.

Sensible Soccers na Culturgest: dar uma demão, outra de câmara e redesenhar com som

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 18/02/2022

Ao entrarmos esta quarta-feira no Grande Auditório da Culturgest, sentimos estar a viajar no passado quando nos deparamos com uma tela gigante e um conjunto de instrumentos virados para ela num fosso. A ideia de uma orquestra a acompanhar um filme parece ter caído em desuso, e as que ainda existem pouco fogem aos moldes mais clássicos e que acabam por soar a datados, de uma era que já não é a que vivemos, com música que já não é a que ouvimos. Este cenário faz sentido quando sabemos que o espetáculo que vamos ver é uma reinterpretação sonora de duas obras de Manoel de Oliveira, Douro, Faina Fluvial, de 1931, e O Pintor e a Cidade, de 1956, por parte dos Sensible Soccers

A diferença entre Manoel e os espectáculos mencionados anteriormente é que o primeiro é desprovido de violinos, trompetes, contrabaixos e outros instrumentos clássicos; estes foram substituídos por sintetizadores, teclados, baixos, guitarras e percussões, elementos que são muito mais presentes no nosso dia a dia e nos quais podemos identificar emoções mais próximas das que sentimos. Manuel Justo, André Simão e Hugo Gomes chamaram os seus colegas do costume, Jorge Carvalho e Sérgio Freitas, e, na maior sintonia entre os músicos, os filmes, e as energias, deram-nos uma hora de uma experiência única onde vimos obras com quase um século serem reapropriadas e homenageadas com uma estética contemporânea pela banda com, arriscamos nós, a sonoridade mais particular em Portugal.

Com início em Douro, Faina Fluvial, vimos as diferentes vidas que nascem do Rio Douro, desde as aves, à vegetação, às pessoas e aos seus barcos. Todos estes foram apresentados com momentos musicais diferentes, o que permitiu criar fortes narrativas audiovisuais bastante distintas entre elas: desde a contemplação serena das águas do rio ao som de “Cantiga da Ponte”, à tensão que “Barcos” criou na pintura feita às peixeiras e aos pescadores que vivem do rio, ao ritmo apressado e citadino que uma faixa rítmica e acelerada não presente no álbum pintou pelas ruas do Porto. As músicas deram vida e cor a um filme que é a preto e branco e criaram momentos tensos, contemplativos, misteriosos e melancólicos, misturados com alguns sons que replicavam os objectos nas imagens, como foi o caso do comboio que era incorporado nas composições.

Entre o fim do primeiro filme e o início do segundo, as atenções viraram-se da tela para os músicos, que tiveram pela primeira vez o foco principal. Através de uma composição minimalista onde cada um dos membros ia entrando progressivamente, entrámos num estado meditativo-melancólico enquanto ouvíamos a voz de Manoel falar sobre a ligação entre a palavra, o som e a música. Este momento foi em si um corte entre Douro, Faina Fluvial e O Pintor e a Cidade, mas acrescentou também uma nova dimensão ao espectáculo onde a conversa via arte com o realizador vai além da imagem e se torna também filosófica.

O segundo filme, que criou paralelismos entre a visão cinematográfica de Manoel de Oliveira e as pinturas de António Cruz ao sobrepô-las, apresentou um ritmo mais acelerado, movido pelo comboio que percorre o Douro ao som de malhas mais mexidas como “Avenida Brasil”. À medida que acompanhamos o pintor a andar pelo Porto com as suas telas por pintar, os Sensible Soccers voltavam a criar narrativas sónicas que diferenciavam substancialmente os vários momentos, momentos esses que poderiam ter sido interpretados de forma completamente diferente. Ao contrário do primeiro filme, o ritmo tornou-se mais presente e preponderante na composição, o que nos fez deixar o lado emocional mais de parte, partindo desta vez para o mais emocionante. 

Durante o espetáculo, eram muitas as vezes que nos esquecíamos que estávamos a ver um concerto, não só pelos músicos estarem escondidos na penumbra do fosso, mas também pela naturalidade com que o som e a imagem se fundiam. Este elo permitiu elevar a obra de Manoel de Oliveira a uma nova dimensão, e é esse o poder que este formato tem. É-nos permitido olhar para um filme de há muitas décadas por uma óptica contemporânea, e o que resulta desta conversa entre o realizador e a banda é uma obra intemporal, onde a imagem é contextualizada para tempos mais modernos pelo som e o som é empurrado para trás no tempo pela imagem.

É também de notar o desenvolvimento da composição da banda, que parece soar cada vez mais limpa nos seus sons, mais metódica, e mais concreta nas suas ideias. Apesar do disco Manoel ser uma obra por si só, conseguimos finalmente receber o enquadramento completo neste espectáculo, que eleva a carga emocional das músicas a uma nova dimensão, e também a intensidade destas, sendo que muitos momentos não constam sequer no álbum (é sempre bom receber algumas prendinhas ao vivo que não se recebem em mais lado nenhum).

A sala esgotada da Culturgest não se conteve nos aplausos quando o espetáculo terminou, estando todos conscientes que acabáramos de presenciar um momento especial dedicado à vida natural, urbana, arquitectónica, paisagística e artística do Norte. Assim como António Cruz pintava a cidade que via, e Manoel de Oliveira gravava o artista que via, os Sensible Soccers acrescentaram uma terceira camada de observação na mesma obra, pintando também eles um quadro com os olhos do século XXI, quadro esse que ressoa em nós e na actualidade. Talvez seja este o método para se conseguir que gerações mais jovens sintam interesse pelo cineasta; talvez o caminho oposto tenha sido feito e gerações mais antigas tenham conhecido desta forma os Sensible Soccers. E é esta a beleza de fusões tão improváveis que correm tão bem como esta.


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